A equipe do PAD sai do HU para mais
um dia de visitas: conforto e atenção a domicílio
Na terça-feira da semana passada, dia 5, a vida
de Terezinha Maria Tecchio de Souza, 50 anos, sofreu mais uma mudança
importante. Ela finalmente voltou para sua residência depois
da internação no Hospital Universitário (HU)
da USP e do período em que ficou na casa da irmã,
no bairro Raposo Tavares, zona oeste de São Paulo. Em março,
Terezinha teve um acidente vascular cerebral (AVC) que afetou o
lado direito de seu corpo justamente aquele que mais utilizava,
já que não possui o antebraço esquerdo em função
de uma má-formação congênita chamada
focomelia.
Antes de retornar ao apartamento da Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano (CDHU) em que reside, Terezinha recebeu, ainda
na casa da irmã, a primeira visita da equipe do Programa
de Assistência Domiciliária (PAD) do HU. No quarto,
foi atendida primeiramente pela enfermeira Elisabete Finzch Sportello
e pelo médico Cláudio Sakurada, coordenadores do programa.
Em seguida, foi a vez da fisioterapeuta Ana Sílvia Reinacher,
que avaliou os movimentos que a paciente pode fazer e os exercícios
mais indicados para o caso. Ana Sílvia trocou informações
com a terapeuta ocupacional Silmara Nicolau Pedro da Silva, a quem
passou a bola para a fase seguinte do atendimento. Enquanto
Silmara conversava com Terezinha, a enfermeira Elisabete já
dava instruções para a cuidadora contratada pela família.
Elisabete vai enumerando à cuidadora suas novas funções:
Você é forte para ajudar? Tem que cuidar de tudo,
desde alimentação e higiene, tirar da cama para a
cadeira, levar para o banheiro, dar banho, cuidar da roupa, da comida...
A seguir, a cuidadora acompanha atentamente as explicações
da fisioterapeuta Ana Sílvia sobre os movimentos e exercícios
que deve fazer diariamente em Terezinha. Os outros membros da equipe
seguem conversando com a paciente e seus familiares e preenchendo
os prontuários, enquanto começa a ser preparada a
remoção da paciente, numa cadeira de plástico,
pela íngreme escada que leva para a rua. Dali, conduzida
de carro pela irmã, Terezinha sairia para seu apartamento
e para uma nova etapa em sua vida: viúva que teve o marido
assassinado há cerca de dez anos e mãe de quatro filhos,
um deles morto num acidente, a dona de casa tinha ainda a aguardá-la
ansiosamente um neto de dois anos. Para a equipe do PAD, provavelmente
será a filha de 17 anos que vai se transformar na cuidadora
familiar da mãe.
Conforto
Um doente em casa muda completamente a dinâmica da família.
Em geral, alguém tem que deixar de trabalhar para cuidar
dele, diz o doutor Cláudio Sakurada, coordenador do
PAD. Se a família não está bem estruturada
e não se dá bem, a tendência é as relações
piorarem. As mudanças na rotina da casa e na vida familiar,
Liana Sucupira conhece bem. Seu pai, Sandoval, hoje com 84 anos,
sofreu um AVC e ingressou no programa em janeiro de 2001. É
um dos primeiros pacientes integrados ao PAD, que completa cinco
anos de existência em maio.
Nos primeiros tempos em que seu pai exigia atenção
total em casa, Liana dividia as tarefas com a mãe, dona Cândida,
hoje com 82 anos. Mas em 2002 também a mãe sofreu
um AVC, e Liana passou a ser cuidadora em tempo integral dos dois,
totalmente dependentes. Aprendi tudo com a equipe e faço
tudo que uma enfermeira faz, relata. Liana teve que deixar
o trabalho, e diz que recebe ajuda apenas de uma irmã para
o cuidado com os pais e a manutenção financeira da
casa, que se dá principalmente com as aposentadorias do casal.
A outra irmã no momento não pode contribuir e o irmão
não participa do esforço.
Liana tem uma cuidadora contratada, indicada pelo PAD, que dá
assistência durante o dia, mas recebe com nervosismo a notícia
de que terá que acordar durante a noite para trocar a posição
da mãe e fazer curativos numa ferida que está surgindo
nas suas costas. Fumando e com expressão de angústia,
ela diz: Bom, já agüentei muita coisa que achei
que não iria agüentar, mas se não puder dormir
bem minhas oito horas, não sei. Enquanto se acostuma
com a idéia afinal, feridas podem se transformar em
infecções que acabam levando ao óbito ,
Liana reconhece que as visitas da equipe do PAD são
um conforto em todos os sentidos.
Até
o final
O PAD tem como objetivos diminuir o tempo de internação
do paciente, otimizando a utilização do leito hospitalar;
prevenir reinternações; orientar o cuidador e familiares;
reinserir o paciente no meio sociofamiliar; melhorar a qualidade
de vida do paciente e de seus familiares e proporcionar a formação
de profissionais de saúde. Para ingressar no programa o paciente
deve ser usuário matriculado no HU e pertencer à comunidade
USP ou residir na região da Subprefeitura do Butantã,
uma área com população de cerca de 430 mil
habitantes. Também é preciso reunir condições
para ser atendido em casa e ter um cuidador domiciliar escolhido
pela família. Os benefícios são incalculáveis
para os pacientes e as famílias, diz a enfermeira Elisabete.
Para o doutor Cláudio, a assistência domiciliária
não pode ser adotada se as condições de atendimento
em casa forem piores do que aquelas no hospital. Dentro do
possível, emprestamos equipamentos às famílias,
como camas, cadeiras de rodas, cadeiras sanitárias, bengalas
etc.
Atualmente são 70 os pacientes atendidos pelo PAD, 90% deles
idosos. O AVC é a ocorrência mais comum, presente em
47% dos casos. Crianças também são atendidas.
Entre elas, os casos mais comuns são de paralisia cerebral
ou problemas de pulmão e coração que exijam
que elas fiquem ligadas a tubos de oxigênio. O Programa de
Oxigenoterapia Domiciliar, iniciado em 2002, atende hoje 20 pacientes,
sendo dez crianças.
A equipe
realiza uma média de cinco visitas por turno, de segunda
a sexta-feira. Na terça-feira, dia 5, quando a reportagem
do Jornal da USP acompanhou os profissionais na van da equipe, estavam
previstas quatro visitas. Entretanto, a ida à casa da irmã
de Terezinha Tecchio de Souza foi a segunda e última da manhã.
Uma não foi realizada porque o paciente tivera que voltar
para o hospital, e a outra foi cancelada porque o doente morrera
na noite anterior. Em 80% dos casos acompanhamos o paciente
até a morte, diz a enfermeira Elisabete.
Na volta ao HU, enquanto a van da equipe serpenteava por ladeiras,
becos e ruelas de bairros carentes e favelas nos quais concentram-se
muitos dos pacientes do PAD, a terapeuta ocupacional Silmara Pedro
da Silva já planejava que espécie de órtese
poderia fazer para Terezinha. A própria terapeuta molda o
equipamento na casa do paciente, que precisa fornecer apenas água
e luz para uma panela elétrica. Ela tem força
e articulação no braço. Vou tentar uma órtese
acoplada ao coto com pontas em velcro para trocar buchas ou ganchos,
de acordo com a função que ela for executar,
diz. Silmara e a fisioterapeuta Ana Sílvia acreditam que
o prognóstico de progressos no tratamento é bom, e
pode melhorar quando o fator debilitante a depressão
da paciente também for abordado pela equipe nas próximas
visitas.
Após a consulta, cada profissional preenche um prontuário
em duas vias com os procedimentos e observações do
dia. Um dos formulários fica numa pasta na casa do paciente,
o outro volta com a equipe para o hospital. As pastas têm
cores diferentes, de acordo com o bairro em que o paciente mora.
Se algum doente integrado ao programa precisar de um atendimento
de emergência no Pronto Socorro do HU, basta que o familiar
apresente a pasta e um integrante da equipe do PAD, que já
conhece o histórico do caso, será chamado para acompanhar
o atendimento.
Aprendizado
Para quem trabalha no PAD, a satisfação vai além
da realização profissional. O doutor Cláudio
Sakurada faz uma autocrítica pouco comum entre seus colegas
ao dizer que sair do consultório é deixar um ambiente
que o médico domina. Quando você vai à
casa do paciente, é ele que domina aquele ambiente, e você
tem que fazer cerimônia, pondera. Na casa você
tem muito mais informação. Conhece a dinâmica
familiar, vê como ele vive, se é bem tratado, se está
limpo. Do ponto de vista humano, de aprendizado, é uma experiência
muito rica.
A fisioterapeuta Ana Sílvia chegou a duvidar de que a proposta
funcionaria Saímos da faculdade achando que
só nós podemos fazer as coisas, diz. O tempo
mostrou que os familiares e cuidadores podem aprender a realizar
de maneira correta as mobilizações, mudanças
de posição, transferências e outros procedimentos.
Nem todos os profissionais participam de todas as visitas, pois
cada um elabora uma escala de acordo com as prioridades e necessidades
dos pacientes. Quando um não está presente e nota
que há alguma questão que merece a atenção
do especialista de outra área, passa o recado
imediatamente ou nas reuniões semanais de avaliação.
Aprendi muito com todos aqui e por sorte a gente formou uma
equipe em que todo mundo tem esse pensamento, diz Ana.
A terapeuta ocupacional Silmara faz coro. Com esse programa
você vê a real condição do paciente e
as limitações do que a família pode ou não
pode fazer. O caso de Terezinha é um exemplo claro:
se o atendimento fosse feito apenas no hospital ou no consultório,
uma das recomendações seria prover uma rampa para
facilitar o deslocamento da paciente, o que a equipe verificou,
in loco, que não haveria condições de construir
na casa em que ela estava. O vínculo terapêutico
e de confiança é muito maior, assim como a aderência
às observações do profissional, completa
Silmara. Para Kátia Neumann, aluna de pós-graduação
em Fisioterapia na USP, acompanhar as condições do
paciente e da família em casa mostra a realidade do seu sofrimento,
para o qual o profissional também tem que estar preparado.
A dentista Márcia Delbon Jorge diz que no PAD exercita a
odontologia criativa, que inclui desde a confecção
de moldes até a realização de pequenas cirurgias
na casa dos pacientes. A maioria deles, por ser de famílias
carentes, já tem problemas desde antes do ingresso no programa.
A prevenção é muito importante, pois
a boca é a porta de entrada para tudo, afirma. Um quadro
delicado pode se complicar ainda mais com o surgimento de endocartites
e até pneumonia. Para ela, um trabalho dessa natureza é
também um exercício concreto de amor ao próximo.
Tanto que Márcia, quando visita famílias que compartilham
uma única escova de dentes ou mesmo sequer a utilizam
, compra escovas, pasta e flúor com seu próprio
dinheiro. Divido meu salário com elas, diz, com
a satisfação de quem se considera muito feliz pelo
trabalho que faz.
Cuidadores
também precisam de atenção
É
duro, viu? O desgaste físico e emocional do cuidador
é muito grande. É uma exigência de 24
horas, e às vezes há uma história prévia
da família que influencia muito, diz o doutor
Cláudio Sakurada. Temos uma atenção,
muitas vezes, até maior com quem está cuidando
do que com o doente.
A situação das cuidadoras familiares foi o tema
da dissertação de mestrado que Elisabete Sportello
defendeu na Escola de Enfermagem da USP em 2003. Ao
prestar assistência domiciliária percebi, através
dos sentimentos e relatos das cuidadoras familiares, que o
ato de cuidar não era voluntário ou dom, mas
que sobrava para elas pelo fato de serem mulheres,
esposas, solteiras ou filhas, diz. O fato de ser familiar
abrange vínculos, angústias e mágoas,
diz a enfermeira, que também constatou que muitas cuidadoras
acabam abrindo mão não só do trabalho,
mas de outras atividades de sociabilidade e lazer.
Na pesquisa da enfermeira com 38 cuidadoras, 81,6% acabaram
relatando algum problema de saúde atribuído
à função de acompanhar um familiar doente.
As queixas vão de dor lombar e cansaço a hipertensão
arterial e edema nas pernas. Manifestações psicológicas
incluem depressão (referida por 42,5% das entrevistadas),
nervosismo e tristeza. Damos todo o suporte e orientação,
com respaldo espiritual e psicológico, para essas cuidadoras,
diz Elisabete. Em sua dissertação, a enfermeira
defende que é necessário implantar políticas
públicas e redes de suporte social e institucional
para que as cargas de trabalho das cuidadoras sejam minimizadas,
além de dar maior reconhecimento ao seu papel.
Dentro dessa perspectiva, o PAD preparou um vídeo de
50 minutos que apresenta orientações sobre como
proceder com o doente em áreas como alimentação
e higiene, além de ensinar a identificar sintomas e
sinais que podem indicar agravamento do seu estado de saúde.
Os próprios integrantes da equipe aparecem dando as
orientações no vídeo, que serve como
fonte de consulta e treinamento constantes. O material foi
produzido com acabamento profissional e patrocínio
de um laboratório e está disponível nos
formatos de VHS, DVD e CD-ROM.
O PAD também realiza encontros semestrais de cuidadores,
nos quais há momentos de troca de experiências
e de lazer. As famílias que perdem o doente continuam
sendo acompanhadas pelo Programa de Atendimento a Famílias
Enlutadas (Proafe), que oferece apoio emocional e psicológico.
As famílias avaliam de forma bastante positiva o suporte
prestado pelo PAD até porque nem todas as experiências,
claro, terminam mal. Faz parte dos arquivos do programa um
caso em que o marido acabou se casando com a cuidadora que
a família contratou para tratar de sua esposa. Detalhe:
enquanto ele estava na casa dos 60 anos de idade, a cuidadora
e nova esposa estava na casa dos 20.
Fazem parte da equipe do PAD também as médicas
Marina Buarque de Almeida e Cecília Gusukuma, a assistente
social Márcia Pereira Santos, a enfermeira Ivanise
Pereira e as secretárias Marli Gonçalves e Roseli
Prates consideradas, ao lado da equipe de motoristas,
fundamentais para o bom funcionamento do programa. A fonoaudióloga
Laís Yassue Taquemori, embora não seja funcionária
do HU, presta serviços como voluntária. A equipe
de psicólogas é coordenada pela professora do
Instituto de Psicologia da USP Elisa Maria Parahyba Campos.
O PAD também recebe estagiários de vários
cursos da Universidade,
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Sakurada: Na hora da morte, o paciente tem
coisas a dizer à família
Morrer no conforto do lar
O
médico Cláudio Sakurada participou em março
da fundação da Academia Nacional de Cuidados
Paliativos (ANCP), que reúne profissionais de todo
o País. Cuidados paliativos é uma
expressão que se refere ao tratamento de pacientes
considerados sem possibilidade de cura. A reflexão
sobre a morte e os procedimentos que devem ser adotados em
relação a pacientes terminais tem estado presente
na mídia com a repercussão de casos recentes
como o da americana Terri Schiavo e o do papa João
Paulo II, que optou por não ser transferido para um
hospital em seus últimos dias de vida. A seguir, o
doutor Cláudio fala sobre morte, eutanásia e
cuidados com pacientes terminais:
Sou católico, religião que é frontalmente
contra a eutanásia. Acho que não se deve apressar
a morte do doente mas também não se deve
prolongar esse processo com medidas que vão impedir
a morte natural. Tenho acompanhado a evolução
do sofrimento da família e do próprio doente
internado. Quem cuida do paciente terminal também sofre
muito.
No HU faço esse trabalho, que não conheço
em outro hospital público, de ver os doentes em estado
mais grave, e conversar com eles e com a família para
elaborar uma lista de desejos para o seu tratamento.
Se ainda está consciente, perguntamos se ele quer ser
entubado, se quer ir para uma UTI etc. Isso fica registrado
no prontuário para que o médico que for tratá-lo
não faça o que o doente não quer. É
um programa novo que visa a fazer com que o doente, na hora
da morte, tenha o mínimo sofrimento possível.
Hoje, 80% das pessoas morrem em hospital. Ou seja, quem não
morre em crimes ou acidentes morre no hospital. O sinônimo
de morrer bem virou morrer em hospital. Por volta de 1930
a proporção era inversa. Morria-se em casa,
junto à família. As pessoas tinham mais contato
com a morte.
Antigamente os enterros passavam na rua, eram públicos.
Hoje não, as coisas são mais escondidas, as
crianças não são mais levadas a um enterro.
Um doente fora de possibilidade de cura geralmente é
abandonado no hospital, ninguém mais quer vê-lo.
A família acaba escondendo o seu doente
justamente na sua fase mais difícil, em que ele mais
precisa de apoio, que é o fim da sua vida. O próprio
médico sente a morte de seu paciente como uma derrota
profissional e tem suas defesas para não encarar o
fato. Na medida do possível temos tentado mandar o
doente para casa, para morrer junto à família.
O doente, na hora da morte, tem coisas a dizer para a sua
família, tem coisas para resolver.
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