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Ontes das 8 horas, Eduardo Sued já está diante da imensa tela branca. Há 50 anos, ele vive o mistério dos caminhos que a sua mão irá percorrer. E a certeza de que irá aportar em um espaço sob muita luz. Passa minutos, horas pensando, buscando. De repente, o pincel encontra as cores na palheta. E vai compondo a silhueta de um sonho, de uma paisagem ou de uma história.
“Eu nunca sei o que vou pintar. Muitas vezes, chego no ateliê com algumas idéias claras. Mas de repente vejo que não é nada disso.” Sued confia na sua intimidade com a luz, na mão acostumada às cores desde criança. “Sempre gostei de desenhar. Ficava fascinado com o envelope cheio de folhas coloridas que a professora distribuía para os meninos recortarem.”
Arte do menino que hoje, às vésperas de completar 80 anos, está de volta nos quadrados coloridos ou nas colagens de metal que brincam nas telas. “Você vê? Os papéis e os tecidos com que eu me divertia recortando estão representados ali. É engraçado. Nunca tinha pensado nisso. Mas estou retornando. Voltando à infância, com o direito de fazer o que gosto, sem preconceitos.”

Enquanto pinta, Sued deixa as lembranças, a vida e o sol entrar. O ateliê em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, projetado por Luiz Paulo Conde (urbanista e ex-prefeito do Rio) há quase 20 anos, recebe toda a luz do dia. Uma luz filtrada por nove domos distribuídos em pontos estratégicos na sala ampla, com cinco metros de pé-direito. A mão do artista vai se deixando conduzir assim. Sem regras, livre. Sem se preocupar com o tempo. A hora de parar de pintar é lá quando o sol também vai se recolhendo. “Para mim, o tempo não existe. Nunca fico na agonia de fazer isso ou aquilo. Vou fazendo.”
Aí ele organiza os pincéis, as tintas e pega o rumo de Ipanema, onde mora. Gosta de ver o pôr-do-sol andando pelo calçadão junto com a mulher, Marília Valls, apreciar as ondas correndo brancas, verdes, cinza pela areia. O tempo em que “pegava jacaré” no Arpoador e se embevecia com o plano do mar e do céu está presente na linha do horizonte de seus quadros.
Cabelos brancos com jeito de estarem sempre ao vento, camiseta, bermuda, sandália, Sued, filho de imigrantes sírios, orgulha-se do seu Rio de Janeiro. Mas prefere deixar as noites da cidade com suas luzes e segredos em suas telas. E dorme cedo para levantar às 6 e viver o dia.


Luzes e mistérios
– As telas despertam e quem entra no ateliê, cercado por um jardim muito bem cuidado, tem a nítida impressão de ser surpreendido por um abraço. Ou por uma onda. Os planos em branco, verde, vermelho, amarelo, azul, cinza, que se movimentam em pinceladas vigorosas, convidam a um mergulho. Mas o que mais intriga o olhar é a técnica como o artista maneja o preto. E descobre infinitos tons de negro. É como se de repente o céu escurecesse e, quando os olhos vão se acostumando, o escuro clareia aqui, ali e é possível ver no negro outras cores, outras luzes.
Por essas luzes e mistérios, a obra de Eduardo Sued intriga. Ele mesmo observa: “Vários artistas trabalharam com tons de preto. Não sou um especialista, só procuro distingui-los entre si. Na Europa, observando Soulages, percebi uma série empolgante de negros vazados por brancos repentinos”.
Sued tem razão. Mas os tons de negro que ele encontra são diferentes. Não é o negro trágico do espanhol Goya. Também é diferente do preto de Manet, Matisse ou dos contornos de Picasso. Os quadros negros de Eduardo Sued não têm uma referência histórica, óbvia. Ou talvez tenham. Quem sabe as noites do Rio de Janeiro, com todos os seus movimentos, com as ondas do mar, as luzes dos barracos nos morros, o Corcovado, os sonhos dos poetas. Um universo ao seu dispor que ilumina a sua trajetória com tons de alegria e esperança. Como as suas telas, Sued acolhe a todos com humor. “Vocês não reparem. Gosto de tomar café na minha caneca, que é especial para acomodar o meu nariz”, diz brincando. “Está vendo essa janelinha aqui na cozinha? É um passa-pernil. Ainda está sem uso, mas bem que eu pensei em ajeitar o ateliê para melhor servir os amigos.”
Apesar desse universo, Sued não se acomoda. Entre uma tela e outra, há sempre um espaço desconhecido que procura encontrar. Uma inquietação que vem crescendo desde meados da década de 1940, quando abandonou a Escola Nacional de Engenharia para se dedicar à arte. Na época, ele se distraía lendo os livros dos grandes pintores nas livrarias Francesa e Askanasy. Ficava impressionado com a criatividade e liberdade de Paul Klee e admite a sua influência, aliada às imagens de sua infância, na forma como maneja o cinza e o prata. “Ganhei um álbum de Klee de um amigo que estudava com Heidegger. As reproduções eram prateadas e eu ficava com os dedos cheios de purpurina quando o manejava. No prata está a presença do invisível.”
Sued foi morar em Paris, de 1951 a 1953. Conseguiu viajar graças à venda de duas aquarelas. “Tive a oportunidade de conhecer importantes obras, dos primitivos aos modernos, que foram essenciais para a minha formação.”


Giotto, Rembrandt, Mondrian, Cézanne. Há quem aponte as lições dos mestres na sua pintura. Só que Sued não se preocupa com definições e não se deixa enquadrar em escolas, estilos. “Aprendi com Picasso que contrariar ou destruir é muito importante. É preciso inventar e reinventar outras soluções na pintura. Ir sempre além.”
Nesse ritmo, o artista vai descobrindo pinceladas com o movimento e a harmonia dos sons. “Eu gosto muito de música, especialmente de Mozart e Vivaldi, com sonatas cheias de energia.” Sued afirma que costuma ouvir as cores para fazer a estrutura cromática de suas telas. “As cores falam baixinho e às vezes demoram a falar, por isso o pintor precisa estar com o ouvido atento para escutar as suas telas. Perceber as suas exigências. Quando fico em dúvida do que pintar, eu encosto o meu ouvido na tela.”
Ouvido exigente. E inspirado. Sued compõe na tela uma noite infinita. Com todas as estrelas, sóis e luas.


A aventura da cor

Eu “pegava jacaré” no Arpoador, ou seja, pegava ondas, surfava. Via o plano do mar, diante da linha do horizonte, e outro plano, o do céu. Isso deve ter mexido comigo. É sério! Durante
anos esses planos ficaram dentro de mim.
É essa aventura entre planos e cores que o livro Eduardo Sued, lançado pela CosacNaify, está apresentando. Sob a organização de Ligia Canongia, crítica e pesquisadora de arte, pontua os 50 anos da trajetória do artista em diversas fases. Além da observação de Ligia sobre o desenvolvimento de sua pintura, traz textos de Rodrigo Naves, Ronaldo Brito e Paulo Sergio Duarte. A edição, muito bem cuidada, com imagens coloridas, contou com o patrocínio da Petrobras.
“É impossível ver uma tela de Eduardo Sued sem que o olho não trabalhe junto com a cor ou com a luz, em velocidade, tentando acompanhar sua superfície descontínua, ou o lugar cambiante que essa cor e essa luz estão sempre a agitar. Ali nada é estático, embora possa haver uma aparência serena”, diz Ligia. “Ele faz a cor fluir
no tempo e vibrar na
intensidade, em ritmos estrategicamente irregulares.”
Na análise da pesquisadora, as cores impressas nas obras estão relacionadas pelos contrastes. Cada uma guarda sua identidade cromática própria, com o valor luminoso que lhe é particular. Os contrastes são às vezes até gritantes, como se certas áreas colidissem com outras, ou fossem forças cromáticas invasivas dentro de uma superfície que parece estender-se sem perturbações. “O fazer, a materialidade e os gestos do artista dão à cor um tônus sensorial e envolvente, que nos arrebata. As telas pintadas a partir dos anos 1990, mergulhadas nos negros, nos brilhos, nos rasgos e nas palpitações de toques espessos, mobilizam em nós submundos inomináveis.”

Grande colorista – O livro mostra Eduardo Sued enveredando por uma estrutura de planos, fazendo o espaço vibrar. “Grande colorista, com uma sensibilidade inquietante e vital, faz da tela um campo de pulsação cromática singular em nossa história”, analisa Ligia.
O Eduardo Sued pensador, como define o crítico Rodrigo Naves, o maior da pintura brasileira, se deixa fluir na seqüência das obras. “A sua pintura é discreta”, afirma Naves. “Embora seja um mestre na cor, suas telas não se resolvem exclusivamente no campo da visão. O seu não é um mundo de coisas penetráveis, regido pelo signo da transparência. Nem sua ética é uma pregação das delícias da felicidade. Longe das soluções finais e dos utopismos, seus quadros, essas presenças sem origem, simultâneas e coordenadas, afirmam uma realidade que precisa ser sustentada constantemente.”
Presenças sem origem. É esse mistério que envolve o público. E o faz mergulhar em seus planos de negro, amarelo, cinza. Para quem quiser conhecer mais sobre o pensamento do artista, Ligia integrou na edição uma entrevista exclusiva que fez com Luiz Camillo Osório e Roberto Conduru. É uma grande conversa em que os críticos vão analisando seu percurso e Sued, na sua calma infinita, vai respondendo com espontaneidade. E lembrando:

Uma vez fui a uma pizzaria e vi o sujeito fazendo a pizza, com aquela pá especial, que é de metal, com o cabo de madeira e a parte de aço, com a qual se alisa a massa. Eu comprei essa espátula numa loja, que nos quadros aparece muitas vezes.


Os entrevistadores riem. E o artista continua:

É uma massa, e quando aparece uma parte lisa, de repente é a espátula da pizza que está ali. Então vem o pincel, e você vê que surgem alguns sinais, como numa escritura antiga, sinais desconhecidos. A superfície de antes, tão pacata, tão calminha, mudou.

Apesar da intimidade com as tintas, Sued conta que, muitas vezes, um trabalho pode não dar certo.

E não adianta forçar, melhor pegar o trabalho e separar. Às vezes, fica assim um mês, dois meses, ou anos. Aí o bichinho começa a me chamar. Uma tela tem sempre um lado aberto, esperando, de repente, ela se abre. Estou falando de uma coisa parecida: que a hora da felicidade aparece na horinha do descuido. Aí eu retomo a tela.

Eduardo Sued é questionado sobre o que sente diante da tela em branco. O que fala mais é a relação com a natureza, a relação histórica com a pintura ou os dados concretos do métier?

Bom, a tela está lá, diante de mim. E é necessário que seja vitalizada. Porém, o impulso em direção a ela tem um respaldo, uma plataforma, que é a mistura, a conjunção da memória histórica, das coisas que vi da pintura, do que vi da natureza, das luzes. A história, as lembranças e a necessidade de expelir algo me fazem exercer uma ação contra essa superfície branca, plana. É quase uma atitude agressiva: vou alterar o estado da brancura da tela, modificar sua continuidade.

Eduardo Sued,
de Ligia Canongia (organizadora), Editora CosacNaify, 272 páginas e 150 imagens em cores, R$ 95,00

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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