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Duncan Grant e John Maynard Keynes, em 1911

Katherine com turbante árabe em Rottingdean, na Inglaterra, em 1910 Katherine Mansfield e seu marido John Murry, em foto datada de cerca de 1920



Virginia amava Leonard. E amava Vita. E amava Katherine. E odiava Katherine, que também amava e odiava Virginia. Em seus 58 anos de vida a escritora inglesa Virginia Woolf – autora de Orlando e Um teto todo seu, entre outros – cultivou amores, rancores e um desequilíbrio mental crescente que acabou por levá-la ao suicídio, em 1941. Foi casada por três décadas com Leonard Woolf, teve um tórrido relacionamento amoroso com a aristocrática Vita Sackville-West e manteve uma relação intelectual ambígua com a também escritora neozelandesa Katherine Mansfield. Ao mesmo tempo que admirava o talento de contista de Katherine – tendo, inclusive, publicado um de seus primeiros livros pela editora Hogarth Press, que ela e o marido haviam fundado –, nutria um ciúme quase patológico pelos escritos da colega. “Katherine acaba de publicar um novo livro. Como ela escreve bem! Eu a odeio!”, registrou Virginia em seu diário a respeito de uma nova edição de contos da rival/amiga.

Essa rivalidade e, ao mesmo tempo, proximidade, entre duas das principais autoras de língua inglesa do começo do século 20 pode ser posta à prova agora, com a edição simultânea dos volumes que reúnem os contos completos de Virginia Woolf – incluindo o até agora inédito “Um diálogo no monte Pentélico” – e uma seleção dos contos de Katherine Mansfield, extraídos de livros como Numa pensão alemã, de 1911, Felicidade e outros contos, de 1920, e A festa no jardim, de 1922. As coletâneas são obra da CosacNaify e trazem duas das principais marcas registradas da editora paulistana: o apuro gráfico dos volumes e um cuidado editorial traduzido nos alentados apêndices que encerram os dois trabalhos – no de Virginia, organizado por Susan Dick, há informações sobre a produção e a recepção dos contos, relacionando-os ainda entre si e com a própria biografia da autora. Já se disse certa vez que tudo o que se escreve tem um quê de autobiográfico. A partir do apêndice elaborado por Susan pode-se ver como esse axioma, em Virginia Woolf, ganha tonalidades de verdade. E, para não se perder a conexão, também em Katherine Mansfield, cuja seleção de contos recém-publicada foi aquinhoada com um apêndice que reproduz excertos de seus diários comentando cada história escrita.


Virginia: a condição feminina em
tempos pós-vitorianos
Virginia e Leonard Woolf, em 1912

Tempos modernos

É importante situar a obra de Virginia e Katherine no contexto de sua época e em que condições isso se deu. Afinal, estamos falando de duas mulheres que nasceram e se criaram em um ambiente vitoriano – com tudo o que de vetusto e opressivo isso possa significar – e desenvolveram sua literatura e suas ações sociais justamente na contramão do que era apregoado pela hipocrisia vigente. De várias formas elas inauguraram uma modernidade na cultura britânica, e não se está falando unicamente de literatura. O próprio triângulo amoroso às claras entre Virginia, Leonard e Vita já seria o suficiente para chacoalhar as estruturas da velha a aristocrática Albion. E Katherine não ficava atrás. Amante de perfumes e roupas caras, ela namorou muito – homens e mulheres –, ficou casada por apenas um dia (o nome do noivo desafortunado se perdeu na história, mas o fato de ela tê-lo abandonado no dia seguinte da cerimônia, não) e acabou se envolvendo, e depois se casando a sério, com o crítico literário John Middleton Murry. Ou não tão a sério assim, já que vida conjugal não a impediu de continuar dando seus pulinhos, como em seu envolvimento com o autor francês Francis Carco – o que chocou seu amigo D. H. Lawrence, que era capaz de escrever histórias impublicáveis (mesmo, já que nenhuma editora inglesa ousava editá-las), mas intimamente prezava a santa e tradicional instituição da família. Como aponta uma nota no apêndice do volume de contos de Katherine, esse romance extraconjugal é retratado, segundo alguns biógrafos, no conto “Uma viagem indiscreta”, no qual Katherine reproduz literariamente uma visita sua a Carco, incorporado no serviço de correios do exército francês durante a Primeira Guerra Mundial. Mas esses casais eram modernos, lembram? Por isso, nem Leonard nem Murry abandonaram suas esposas saltadoras por causa de uns arrulhos a mais. Leonard Woolf continuou na vida de Virginia até o dia em que ela amarrou pedras na cintura e deu sua última caminhada em direção a um lago, e afundou. E Murry se incumbiu de editar as obras póstumas da mulher – que morreria de tuberculose aos 34 anos – e de zelar por sua memória.

Mas basta de histórias de alcova. Afinal, elas não ficaram famosas pelo que fizeram – apesar de isso dar um colorido especial às suas vidas –, mas sim pelo que escreveram. E como escreveram (e aqui não cabe a alusão de que Virginia, a exemplo de Hemingway, só escrevia de pé). E a modernidade, ou o modernismo, que elas – mais Virginia, é verdade – ajudam a criar se traduz na reinvenção da narrativa, procurando quase sempre fugir da descrição linear de uma ação. Ao subverter os cânones até então vigentes da literatura, Virginia Woolf mistura observações próprias e narrativa ficcional, redistribuindo falas, ações e pensamentos de seus personagens, criando uma atmosfera inovadora e, ao mesmo tempo, próxima para o leitor. Como em “A apresentação”: “Oh, era feito de um milhão de coisas, todas diferentes dela; a abadia de Westminster; a sensação de que eram enormemente altos e solenes os prédios em derredor; e a de ser mulher.

Essa era talvez a que se tornava evidente, a que permanecia, e era em parte o vestido, mas todos os pequenos gestos de cavalheirismo e respeito da sala de visitas – tudo a fazia crer que ela saía então da crisálida para ser proclamada o que na confortável escuridão de sua infância nunca tinha sido – essa frágil e bela criatura diante da qual os homens se curvavam, essa criatura limitada e circunscrita que não podia fazer o que bem quisesse, essa borboleta com milhares de facetas nos olhos e uma delicada e fina plumagem, com dificuldades e suscetibilidades e tristezas inúmeras; uma mulher.” Ao mesmo tempo que fala de sua personagem, Virginia fala da condição feminina naqueles tempos pós-vitorianos – mas ainda eivados da ideologia da rainha que impôs à Inglaterra não um estilo de reinado, mas um estilo de vida. Esse questionamento, além de sua construção frasal, sua arquitetura do texto, sua pontuação por vezes elíptica e sua dicção peculiar, são alguns exemplos do que Virginia estava construindo, como ela estava erguendo seu prédio literário e como aquilo ficaria para a posteridade. Isso, pode-se avaliar bem melhor com a leitura atenta e prazerosa dos 46 contos do volume, bem traduzidos pelo poeta Leonardo Fróes.

Já Katherine Mansfield, mais prolífica que Virginia – publicou mais de uma centena de contos –, talvez não tenha sua modernidade imediatamente identificada por leitores menos atentos. A própria inspiração autobiográfica em seus textos, de certa forma, impediu esse reconhecimento imediato. O que denota de pronto nos contos de Katherine é o viés poético que emerge inicialmente deles, a premência do instante. Mas é justamente nesse instante que muitas vezes a autora se detém que reside seu toque de modernidade. A intensidade narrativa de pequenos acontecimentos, como que para registrar definitivamente os pormenores que a vida acaba por nos fazer esquecer – mas que são justamente aqueles que têm o condão de mudar uma vida inteira –, é a sua característica principal como contista, deixando os entrechos romanescos menos explorados. Ela é uma grande contadora de histórias, mas não necessariamente uma fabulista ou uma pintora de grandes quadros.

Talvez, sim, uma precursora do minimalismo – com todas as aspas que a palavra possa requisitar nesse caso –, se detendo no detalhe, e não no todo. Há o recorte, e não a grande-angular. Em uma época em que o grande painel do romance era quase que uma exigência, inverter as mãos e procurar um deus muito peculiar no detalhismo da ação – ou até mesmo da falta de ação – era querer ser moderna. E conseguir, seja lá o que essa tal modernidade, afinal, possa querer traduzir.

Virginia e Katherine se tangenciam em vários pontos. E mesmo quando se afastam é, para em um movimento circunférico, se encontrarem outra vez. Pode ter sido mera coincidência a CosacNaify publicar seus volumes de contos ao mesmo tempo. Mas poucas coisas fariam tanto sentido.

 



Vozes brasileiras e femininas

O século 19 produziu no Brasil uma legião impressionante de grandes autores, desde, entre outros, Castro Alves, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis, a estrela mais fulgurante dessa constelação. Todos eles, cada um a seu modo, ajudaram a alicerçar o que chamamos hoje de literatura brasileira e a dar uma nova dimensão à língua portuguesa. Mas um porém nessa lista que acaba de ser citada (e que poderia ser acrescida de muitos outros nomes): os autores listados são todos homens. Então, afinal, não havia escritoras no Brasil dos oitocentos? A sociedade brasileira de dois séculos atrás, tão reconhecidamente machista, não permitia que letras femininas chegassem ao livro impresso? A resposta a essas perguntas pode ser encontrada nos dois volumes de Escritoras Brasileiras do Século XIX, organizados por Zahidé Lupinacci Muzart e, não coincidentemente, publicados pela Editora Mulheres, em parceria com a Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul, de Santa Catarina.

Os dois volumes da antologia reúnem cerca de uma centena de autoras – nomes pouco ou nada conhecidos, como Georgina Mongruel, Honorina Galvão Rocha e Julieta de Melo Monteiro – que mostram, sim, que havia vozes brasileiras e femininas no século 19 – só que elas eram pouco ouvidas ou estavam abafadas por vozes mais tonitruantes que cantavam Capitus e Moreninhas. “E quem disse que não havia mulheres escritoras no Brasil do século XIX? Ali estão elas, surgindo em voz direta, nos textos que compõem a seleção, ou por via indireta, nos textos que as apresentam e que, por vezes, contêm considerações de caráter analítico, crítico e interpretativo”, escreve em sua apresentação ao segundo volume da coletânea a professora da USP Nádia Battela Gotlib. “Se há transcrição dos textos das escritoras, é porque, seja do ponto de vista estético, seja do ponto de vista sociopolítico, têm realce e importância no trabalho implícito de luta pela afirmação de uma mentalidade emancipatória da mulher, ciente da necessidade de se livrar dos jugos de violência e dominação patentes no contexto social brasileiro
de seu tempo.”

A professora tem razão. Na maior parte dos textos, vê-se uma preocupação das autoras com sua condição feminina – e que não confundamos esse conceito com algum protofeminismo –, com os cuidados com o lar e com a moral, mas também com uma aceitação aos apelos da ação social. Dentro desse universo cultural multifacetado, a produção artística dessas mulheres se diversifica em poemas, contos, ensaios, artigos, peças teatrais, romances. Muitas vezes, essas mulheres deixam de ser apenas autoras para serem também objetos de seus escritos, em uma auto-reflexão de sua própria condição social. Elas tinham consciência que o Brasil ainda não estava preparado para ter uma George Sand ou uma Lou Salomé. Mas nem por isso deixavam de escrever, mesmo que fosse para destilar uma certa ironia amarga, como fez a piauiense Luísa Amélia de Queirós (1838-1898), considerada a primeira poeta de seu Estado:

A mulher que toma a pena
Para em lira a transformar
É, para os falsos sectários,
Um crime que os faz pasmar!

 

 


Francis Birrell, Lytton Strachey e Saxon Sydney: o grupo de Bloomsbury discutia
sobre tudo e sobre todos

 

Quando Londres era uma festa

Em um livro célebre de memórias, o americano Ernest Hemingway escreveu que Paris nos anos 20 era uma moving feast – uma “festa móvel”, onde nomes como Pablo Picasso, F. Scott Fitzgerald e Gertrude Stein viviam se trombando. Mas não era só na Cidade Luz, na década de 20, que grupos de intelectuais das tendências mais diversas – mas com alguma coisa em comum – acabavam se sentindo atraídos uns pelos outros para um gole de absinto e um papo-cabeça. Nova York, por exemplo, produziu o grupo do Hotel Algonquin, onde despontava a apimentada Dorothy Parker, que varava noites em tertúlias intelectuais e comentários mordazes sobre tudo e todos. E em Londres também. Só que, noblesse oblige, o grupo formado em torno de Virginia Woolf, sua irmã Vanessa Bell, o escritor Lytton Strachey e o economista Maynard Keynes, entre outros, era um pouco mais, digamos, comportado. Pelo menos para consumo externo.

O grupo de Bloomsbury, como ficou conhecido – em homenagem ao bairro londrino onde morava Virginia e na casa de quem muitas reuniões aconteciam –, era um emaranhado de opiniões discordantes e posturas ideológicas conflitantes, mas que a tudo tratava de maneira franca e afetuosa. Talvez nenhum grupo literário, instituição acadêmica ou corrente filosófica tenha exercido tanta influência sobre as artes do Ocidente, no início do século 20, quanto Bloomsbury – seus componentes, de várias maneiras, ajudaram a inaugurar o que chamamos de modernidade nas mais variadas manifestações artísticas e culturais. E justamente devido ao tratamento amistoso de idéias diferentes. Isso explica sua importância e influência. Em Bloomsbury acreditava-se, de fato, que podia haver discussão pacífica e racional – para não dizermos civilizada – a respeito de qualquer assunto. Se não fosse assim, como explicar o assento à mesma mesa de duas figuras tão antagônicas quanto o genial, idiossincrático e assumidamente homossexual Strachey e o contido e pragmático Keynes? Nenhum de seus integrantes desconhecia o aspecto por vezes irracional e violento das relações pessoais e sociais, mas reagia contra ele, fosse ridicularizando-o, fosse tentando encontrar uma forma de contê-lo.

O grupo de Bloomsbury – que, diferentemente de outros, adorava sair para convescotes no campo e não se restringia às quatro paredes de seus encontros urbanos – pontificou em Londres até estourar a Segunda Guerra Mundial. Nos anos 40, ele perdeu sua força e saiu de moda, muito devido às mortes de Strachey, Roger Fry e Virginia Woolf. Muito, também, porque aquele mundo que gerara o círculo de amigos intelectuais da capital inglesa estava se metamorfoseando de forma radical, e talvez não houvesse mais espaços para discussões intrincadas e piadas sarcásticas. Bloomsbury, como grupo, deixou de existir – mas suas idéias acabaram por entrar na história.

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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