PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



A
base documental que o jornalista norte-americano John Dinges usou para escrever o livro Os anos do Condor – Uma década de terrorismo internacional no Cone Sul impressiona. Dinges usou 24 mil relatórios sobre o Chile e 4 mil sobre a Argentina, escolhidos dentre os documentos desclassificados durante a administração do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton e que por muito tempo ficaram em poder da CIA, a agência de inteligência norte-americana. Cópias de correspondências entre a CIA e a Agência de Inteligência do Chile (Dina), além do Archivo del horror, descoberto em 1992 no Paraguai, e de outras 2 mil páginas liberadas por agências norte-americanas a pedido do próprio jornalista, respaldado pela Lei da Liberdade de Informação daquele país, completam o material. Tudo isso sem contar as 200 entrevistas com envolvidos diretamente nos fatos, sejam eles opositores ou militares que protagonizaram as ações sangrentas sob a égide da Operação Condor – assim chamada em alusão ao nome da ave-símbolo do Chile, país de onde foram orquestradas as táticas militares no contra-ataque terrorista.

Apesar das duas horas de atraso, ocorrido por problemas no aeroporto que o forçaram a entrar no Brasil através da Argentina, a palestra que proferiu sobre a obra – seguida de debate com a participação dos professores Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, e Rafael Antonio Duarte Villa, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – lotou o miniauditório do Departamento de Antropologia, na segunda-feira, 6 de junho. A edição em português, da Companhia das Letras, tem informações que não haviam sido publicadas na versão em inglês, como, por exemplo, a de que o braço da Operação Condor no Brasil foi o ex-presidente João Baptista Figueiredo.

Para Sérgio Adorno, o livro certamente se tornará referência para os que pesquisam o tema. “Durante os anos em que morei no Chile, de 1972 a 1978, nunca me senti ameaçado durante o governo de Salvador Allende, mas na era Pinochet vivi uma fase de grande terror”, contou na palestra Dinges, que na época trabalhava como colaborador do jornal Washington Post e outros veículos. “Vasculharam minha casa duas vezes e me levaram preso para interrogatório. Levaram a mim, minha esposa e outras duas pessoas para a Via Grimaldi, o campo de tortura mais importante do Condor naquele momento.”

 

Modelo socialista

No clima do ideário social-marxista que tomava conta do Chile nos anos 70, o líder Allende subiu ao poder em 4 de setembro de 1970 com apoio de Fidel Castro, para desespero dos Estados Unidos, dos capitalistas e das oligarquias. Há relatos de que a CIA tentou evitar a posse do presidente. Mas este sobe ao poder e declara-se socialista, dando início ao desemprego em massa, com a fuga de capital estrangeiro e das grandes mineradoras norte-americanas. “É preciso entender que a Operação Condor aconteceu durante esse momento de radicalizações. No início eu achava que a experiência militar do Brasil era coisa do passado e que o Chile, sim, iria experimentar um regime diferente, que favoreceria os pobres e que seria um modelo socialista. Mas isso representava um perigo que os Estados Unidos não conseguiriam suportar”, disse o jornalista, que é também professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. O governo de Allende foi derrubado em 11 de setembro de 1973 pela Força Aérea e o Exército chileno. A ditadura de Pinochet durou mais de 16 anos.

“Porque lançar corpos no Rio La Plata está criando problemas para o Uruguai, como a aparição de cadáveres mutilados nas praias, fornos crematórios dos hospitais do Estado estão sendo usados para a incineração de subversivos capturados” (Documento da Força Aérea Brasileira, 1977).

A famosa campanha repressiva internacional do Condor, promovida entre as décadas de 60 e 80 através de uma conexão entre as polícias políticas do Chile, Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai, teve seu vôo final em 1980, numa ação envolvendo guerrilheiros peruanos. “O Peru tinha abandonado seu governo militar de inclinação esquerdista e, em 1980, era o membro mais recente do Condor”, relata o livro. Entre os prisioneiros desta que é provavelmente a última operação estava a famosa ativista política argentina Noemi Gianotti de Molfino, uma das fundadoras do grupo Mães da Plaza de Mayo.

A Operação Condor conseguiu êxito em todas as metas a que se propôs, disse Dinges. Entre seus principais efeitos, o jornalista enumera, além das mortes de políticos e importantes líderes de esquerda, o medo imposto aos exilados – “Qualquer exilado ou membro de esquerda sabia que não estava mais seguro em nenhuma parte do mundo”, disse – e o desmantelamento da Junta Coordenadora Revolucionaria (JOC), grupo organizado e com verba para lançar uma guerra de guerrilha em quatro países.

“Iremos até a Austrália, se necessário, para pegar os nossos inimigos” (Manuel Contreras, ex-diretor da Polícia Política de Pinochet, citado pela CIA).

O assassinato do influente ex-embaixador do Chile em Washington, Orlando Letelier, morto por atentado a bomba em seu carro em território norte-americano, mostrou que as asas do Condor pairavam livremente fora do Cone Sul, como também ficou demonstrado em ousadas ações no continente europeu. Um ex-presidente da Bolívia e dois dos mais proeminentes líderes políticos do Uruguai são alguns exemplos, entre os cerca de 30 mil torturados e mortos pela coligação militar, incluindo exilados sob a proteção da ONU.

Nos anos do Condor (1973-1980), a pecha de “terrorista” e “subversivo” caía sobre os opositores às ditaduras anticomunistas da América Latina, que haviam chegado ao poder com forte colaboração dos Estados Unidos. Apoio técnico e liderança estratégica eram a principal ajuda dos norte-americanos, como parte de uma “proposta política continental dentro da Guerra Fria”, segundo Márcia Guena, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da USP, onde apresentou a dissertação de mestrado “Operação Condor: uma conexão entre as polícias políticas do Cone Sul da América Latina entre as décadas de 60 e 80” (leia o texto ao lado).

“[O ministro das Relações Exteriores da Argentina] Guzzetti foi aos Estados Unidos esperando certamente ouvir algumas reprimendas fortes, firmes e diretas sobre as práticas de violação dos direitos humanos de seu governo. Em vez disso, retornou num estado de júbilo, convencido de que não há problema real com os Estados Unidos a respeito dessa questão” (embaixador Hill, num telegrama criticando o então secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger).

 

“Quem aqui acredita que Allende foi assassinado?”, perguntou Dinges à platéia. Como resposta aos que levantaram o braço, respondeu: “Ele se suicidou e isso está comprovado historicamente”. Para o jornalista, esse episódio é um exemplo de como a história cria mitos a partir de fatos incompletos ou inconclusos. Segundo ele, a verdadeira extensão da atuação da CIA na Operação Condor ainda repousa numa aura de mitos.

Sobre a CIA e os Estados Unidos terem efetivamente concebido e financiado a operação clandestina internacional dos governos militares do Cone Sul, Dinges insiste que esse é mais um mito. “Falo muito sobre isso no livro. A CIA participou dando treinamento aos agentes da Dina, fornecendo aparato técnico, especialmente sistemas comunicacionais, e integrando o grupo de Inteligência na troca de informações. Não acho que ela seja responsável pela criação da Operação Condor. Para mim isso é uma criação do Chile. O importante é enfatizar que os assassinos eram os latino-americanos. A CIA não chegou a matar pessoas”, defendeu.

Para Dinges, a política ambígua exercida pelos Estados Unidos nos anos do Condor revela um aspecto importante para entender a política norte-americana. “Os Estados Unidos não impulsionaram os assassinatos em massa, não há evidências de que fomentaram aquelas ações. Há evidências, porém, de que tentaram barrar algumas operações. Houve tentativas, mesmo débeis, de proteger os direitos humanos”, afirmou, ao responder a uma pergunta sobre as responsabilidades dos Estados Unidos em relação às vítimas do terror.

Em abril de 1975, os relatórios de inteligência mostravam que Contreras era o principal obstáculo para uma política razoável de direitos humanos dentro da Junta, mas um comitê formado por diversos órgãos governamentais orientou a CIA a manter relações com Contreras. Alguns membros da CIA recomendaram estabelecer uma relação remunerada com Contreras” (Relatório Hinchey).





Dinges avalia que o Brasil conseguiu sair relativamente “limpo” da Operação Condor, pois ele não encontrou documentos comprovando que o País efetivamente tomou parte nas ações que classifica de fase 3, a que envolvia assassinatos propriamente ditos. “Eu diria que o Brasil foi muito sutil e diplomático e tomou parte especialmente no fornecimento de informações. A inteligência brasileira funcionava incrivelmente bem, tanto que treinou os agentes da Dina. Não há documentos provando que tomou parte nos assassinatos do Condor. Há nomes de brasileiros citados nos documentos, entre eles o ex-presidente João Baptista Figueiredo”, disse.

O Chile, que administrou tudo, conseguiu sair da coligação com o saldo de 3 mil mortos, um contraste gritante em relação aos seus vizinhos. Das 100 mil pessoas detidas para interrogatórios naquele país, em torno de 3 mil foram mortas. “Enquanto no Chile morriam entre 5% e 10% dos que eram detidos, nos outros países quase todos os interrogados morriam após tortura. Na Argentina, havia uma probabilidade de que 80% dos detidos fossem mortos. Isso se explica pelo fato de que os outros países aperfeiçoaram o que o Chile desenvolveu. Por isso Pinochet ainda merece ser o símbolo da violência”, disse.

Para o professor Sérgio Adorno, além de obra de referência, Os anos do Condor é uma oportunidade para reavivar a memória e revelar fatos que, embora praticados há décadas, ainda fazem parte do presente. “Os elementos autoritários da cultura ainda não foram superados. Não é só uma questão de atribuir responsabilidades, mas de estarmos alertas ao fato de que Auschwitz sempre pode retornar”, disse. Dinges coloca algumas de suas descobertas no site www. johndinges.com/condor. Grande parte dos documentos que pesquisou está disponível no endereço eletrônico do Freedom Information Act – programa de acesso a informações do Departamento de Estado norte-americano (www. foia.state.gov).

 










O jornalista John Dinges: milhares de documentos e centenas de entrevistas para compor o livro que revela
as ações de governos latino-americanos contra militantes de esquerda nos anos 70

 


Obstáculos para a verdade

O fato de grande parte dos documentos de alto grau de sigilo ainda permanecer resguardada não permite que a história das ditaduras recentes do Cone Sul seja contada de forma completa, segundo a pesquisadora Márcia Guena. Márcia é autora da dissertação de mestrado “Operação Condor: uma conexão entre as polícias políticas do Cone Sul da América Latina entre as décadas de 60 e 80”, apresentada em 1998 ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da USP. “O que fazemos é um entrecruzar de informações a partir do que está disponível. Muitos documentos ainda permanecem censurados, inclusive nos Estados Unidos”, afirma Márcia, citando como exemplo o site do Freedon Informatiom Act (Foia), do Departamento de Estado norte-americano (www.foia.state.gov). Nele, há documentos de seis páginas em que aparece uma tarja preta e apenas duas linhas disponíveis para consulta. “Não temos ainda uma história completa sobre os acontecimentos.”

Na sua dissertação, Márcia estudou 400 documentos do Archivo del horror, descoberto em 1992 no Paraguai. “Meu objetivo foi mostrar a participação brasileira na Operação Condor a partir da documentação paraguaia”, diz. Em seu estudo, o papel brasileiro aparece mais ligado ao “fornecimento de informações e à aliança de inteligência”, afirma Márcia, concordando com as investigações feitas pelo jornalista John Dinges. “Não encontrei nenhum documento referindo envolvimento do Brasil nos assassinatos promovidos pela Operação Condor. Uma possível exceção foi o episódio do casal uruguaio Lílian Celibert e o marido, preso em Porto Alegre. Mas isso não está documentado nos arquivos e sim relatado pelo grupo Tortura Nunca Mais.”

Além disso, da mesma forma que Dinges, Márcia conta que não encontrou documentos provando que a CIA era financiadora das operações. “A ligação da CIA e de outros órgãos do governo norte-americano está mais relacionada ao envio de informações. Mas não podemos pensar na Operação Condor num contexto diferente da Guerra Fria. Os Estados Unidos promoveram várias operações de cunho clandestino e esta foi só mais uma, envolvendo as ditaduras militares do Cone Sul, com a conivência da CIA, do FBI e do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Diretamente, não se pode comprovar a coordenação dos Estados Unidos, mas se pode
provar isso indiretamente”, afirma Márcia.

 

ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]