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O
nde fica o hospital do ouvido?

A pergunta, feita numa tarde de junho, durante breve intervalo de um sinal fechado na avenida Pereira Barreto, em Santo André, indica como também pode ser conhecida popularmente a Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformidades Crânio-Faciais (Funcraf). Fundada em 1985 para apoiar as ações do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP – o popular Centrinho de Bauru –, a instituição está presente com atendimento ambulatorial pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em três cidades: Campo Grande (MS), Itararé e Santo André (SP).

E é ali, bem perto da capital paulista, que milhares de pacientes do Grande ABC, além de São Paulo e Baixada Santista, têm acesso facilitado, desde março de 1997, a um atendimento ambulatorial humanizado para quem nasceu com deficiência auditiva e fissura (fenda) de lábio e de palato (céu da boca). Na prática, trata-se de uma forma de descentralização dos serviços prestados pelo Centrinho desde 24 junho de 1967.

Logo na entrada do prédio de quatro andares, no número 792 da mesma avenida Pereira Barreto, uma inscrição bem visível, estrategicamente colocada num painel lateral da recepção, sugere uma saudação que, ao mesmo tempo, esclarece numa frase quem é o público atendido pela fundação: “Bem-aventurados os que compreendem o meu estranho passo a caminhar” (“Oração da criança diferente”).

“O Bruno é um menino de 11 anos que, quando estamos na rua, tem de ser chamado do lado esquerdo”, comenta Regina Maria Célia, mãe de um paciente que nasceu com a orelha direita completamente fechada. A anomalia poderá ser corrigida com intervenção cirúrgica. “Já enviamos fotos a Bauru (onde são realizadas todas as cirurgias encaminhadas pelas subsedes) e aguardamos com otimismo o chamado.” Para Regina, o trabalho da Funcraf é fundamental. “Aqui, aprendemos como lidar com naturalidade com a diferença. Passamos por enfermeiros, dentistas, otorrinolaringologistas, fonoaudiólogas, psicólogos... Foi a nossa salvação.”

Desafio

De fato, trata-se de um trabalho interdisciplinar de fôlego. “Todos os dias temos um novo desafio a enfrentar”, conta a coordenadora administrativa da unidade, Maria Aparecida Ribeiro Campos Cavarsan. “Isso ocorre porque trabalhamos diretamente com a expectativa e a ansiedade dos pais. É preciso equilibrar o que eles esperam com as questões de demanda e prioridades.” Nesse aspecto, a Funcraf cumpre seu papel: a fila de espera para a instalação de aparelhos auditivos (que já foi de quase mil pessoas) está praticamente zerada e o atendimento a fissurados segue seu curso com a análise de cada caso novo para dinamizar o tratamento.

Até hoje, já foram atendidos pela subsede do ABC 5.728 deficientes auditivos e 3.781 fissurados – total de 9.509 matriculados. A unidade, a exemplo das outras duas co-irmãs, só não faz cirurgia. Em contrapartida, mantém ativa a equipe interdisciplinar de quase todas as áreas da saúde para prestar o chamado atendimento ambulatorial sem custos ao paciente. “Já pensou se, para qualquer avaliação de um otorrino ou dentista, eu precisasse ir até Bauru?”, indaga Cristina Trindade Ávila Lins, de Santo André, mãe de Natali, de 4 anos, que tem fissura de lábio e palato. “Comecei a trazê-la até a Funcraf com oito meses e, depois de toda a preparação aqui mesmo, a primeira cirurgia foi feita com sucesso em Bauru, quando ela completou um ano de idade.”

“Comigo foi mais complicado”, relata Rosemeire Ferreira Silva, mãe de Poliana Rosler, de 15 anos, deficiente auditiva, moradora de Suzano. “Eu nem sabia que a Funcraf tinha sido criada na nossa região. Poliana estava numa instituição que só faz audiometria (exame que detecta os níveis da perda auditiva) e fiz sua matrícula na fundação assim que soube do seu funcionamento, em 2003.” A troca valeu a pena? “Vou responder assim: nos outros lugares por onde passei, diziam que o problema dela era cera no ouvido, mas também nunca fizeram lavagem. Foi só chegar à Funcraf e consegui o atendimento correto e o aparelho auditivo, que Poliana usa desde os 14 anos.”

“Essas mães e esses pacientes sabem muito bem o que querem”, comenta a coordenadora Maria Aparecida Cavarsan. “Não há, portanto, nenhuma demagogia em afirmar que o foco de todo o trabalho não pode ser outro que não o usuário dos serviços.”

“Uma coisa já aprendi: abandono de tratamento, nem pensar”, emenda Patrícia Venâncio César Silva, de Osasco. Mãe de Rodnei Vieira, de 3 anos, Patrícia sabe dimensionar com precisão a relevância de um atendimento interdisciplinar para casos como o do seu filho. “Temos acesso a pedia-

tras, psicólogos e uma série de profissionais. Um completa o trabalho do outro.” Com abertura total de palato e fissura bilateral, Rodnei já passou por duas cirurgias e se recupera bem. “No início, fiquei tão apavorada que pensei: ‘Ele não vai sobreviver’” Depois a gente se acalma e vê que a vida é mais forte.” Questionada sobre o que diria a uma mãe que acaba de descobrir que terá um filho “diferente”, Patrícia responde com segurança: “Confie no médico, no profissional de saúde. Seu neném vai ficar bem. Tudo é cansativo e corrido, mas uma criança com necessidade especial não faz as coisas sozinha. Aposte no tratamento e não se arrependerá”.

Retorno à sociedade

Foi, inclusive, pelas idas e vindas de um tratamento tão longo quanto necessário que o destino de duas amigas se cruzou no ABC. Na Funcraf, a cirurgiã-dentista Ana Lúcia Pereira Leite Simão, de 35 anos, cuida de pacientes enquanto a técnica de prótese dentária Renata Chirico, de 31 anos, trabalha com aparelhos ortodônticos e prótese dentária em laboratório. O detalhe é que Renata – nascida com fissura pós-forame (de palato) – também é, há tempos, paciente de Ana Lucia. “Depois de concluir o curso de prótese em Bauru, fiz estágio no Centrinho, onde já recebia tratamento da Ana Lúcia, então residente do hospital”, relembra. “Quis o destino que a gente se reencontrasse profissionalmente na Funcraf.” Ana Lúcia – que concluiu residência no Centrinho de Bauru nas áreas de Prótese e Implantodontia – vê graça na dupla coincidência. “É uma responsabilidade a mais ter como paciente uma colega de trabalho, mas também é muito gratificante.” Segundo Ana Lúcia, a equipe de dentistas da Funcraf é coesa. “Somos em nove e o trabalho é realmente harmônico.”

“Algo importante a ser dito é que o nosso paciente, quando senta na cadeira do dentista, já traz consigo uma carga forte de exames e de outras cirurgias. Apesar de subjetiva, essa harmonia que procuramos preservar entre os profissionais ajuda a tranqüilizar quem mais precisa da gente durante o tratamento”, avalia a odontopediatra Crissen de Arruda Barbirato. “Assim, qualquer receio inicial logo é rompido.” Para Leila Velar, que trabalha no agendamento, a relação de confiança entre instituição e paciente é construída por meio de um diálogo aberto e objetivo. “Os pais são naturalmente ansiosos, mas logo compreendem que para tudo há uma hora certa. Nada é feito de forma apressada”, diz.

A integração entre os quase 60 funcionários da unidade se reflete na qualidade dos serviços prestados à população de São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo, Osasco, São Caetano, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, numa média superior a 100 atendimentos por dia em 40 salas de consulta. Algumas mudanças na estrutura da subsede estão em curso, o que não vai afetar o trabalho no Grande ABC. “A partir de agora, desejamos esclarecer melhor às comunidades dessas e outras subsedes tudo aquilo que podemos oferecer e que nem sempre é devidamente difundido”, comenta a diretora-presidente da Funcraf – cuja sede fica em Bauru –, Telma Flores Genaro Motti. Ou, como disse o jurista e ex-reitor da USP por duas vezes, Miguel Reale: “A Funcraf é uma prova de que as fundações são úteis e podem retornar à população, na forma de serviços, o conhecimento que é acumulado na Universidade”.

 

 

Amadurecimento marca trajetória

Ao longo de seus 20 anos, a Funcraf (Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformidades Crânio-Faciais) – ligada ao Centrinho de Bauru – conseguiu abrir três subsedes e se aproximar ainda mais da população. Considerada de utilidade pública, a fundação tem mais de 16 mil pacientes matriculados nas áreas de fissura labiopalatal e deficiência auditiva. Só no ABC, houve crescimento de 48% no volume de atendimentos a fissurados em 2004, em comparação a 2003, e de 28% em deficiência auditiva, no mesmo período. Na esfera científica, a Funcraf apóia ainda os cursos de pós-graduação do Centrinho com custeio de viagem e permanência de docentes em Bauru. Na cidade, ajuda a viabilizar o projeto Extramuros, que leva saúde bucal a comunidades carentes. E está à frente de cursos de Libras (Língua Brasileira de Sinais), que capacitam professores da rede pública de ensino, além de também agir em projetos de prevenção às malformações.

 

 

“Agora ela ouve chuvisco e latido”

“Poliana tem perda de audição. Demorou para identificar a deficiência e, quando isso aconteceu, a gente não conseguia o aparelho auditivo. Precisava ser sem pagar, mas minhas tentativas não surtiam efeito. Tudo realmente mudou ao conhecer a Funcraf. A primeira coisa que Poliana ouviu, depois do aparelho instalado, foi a chuva. Antes, só tinha sensação auditiva se caísse um temporal. Agora, qualquer chuvisco desperta a sua atenção. Ela está na 7a série, gosta de Educação Física e Matemática, mas agora anda reclamando um pouco do cachorro. Diz que ele atrapalha na hora de fazer a tarefa de casa porque late demais” (Rosemeire Ferreira Silva, mãe de Poliana Rosler, 15 anos, deficiente auditiva).

 

 

A filha que ensinou a resistir

“Aprendi mais com a Natali do que ela comigo. Depois que começamos o atendimento com os especialistas da Funcraf, numa manhã de 20 de outubro de 2000, ela passou a me ensinar o que significa resistir e superar. Natali também tem alterações cardíacas e, no começo, o desespero foi enorme. Só fui saber como lidar com isso na fundação. Soube, por exemplo, que existe uma mamadeira com bico especial para crianças como a Natali. Sou uma mãe de sorte: ela é esperta e tem bom apetite. Só não gosta muito de tomate porque gruda nos dentes” (Cristina Trindade Ávila Lins, mãe de Natali, 4 anos, que tem fissura labiopalatal).

 

 

Núcleo aposta no surdo. Todos ganham

Assim como ocorre em Santo André, também em Bauru a Funcraf realiza um extenso trabalho em favor da sociedade. Desde 1991, o Núcleo Integrado de Reabilitação e Habilitação (Nirh) da Funcraf, por exemplo, se dedica ao desenvolvimento das habilidades de pessoas surdas, com idade entre 7 e 30 anos, devidamente matriculadas no Centrinho. Atividades pedagógicas, ensino de Libras (Língua Brasileira de Sinais) – inclusive com a formação de um coral que utiliza as mãos como instrumento de comunicação e arte –, além de um curso de preparação para o mercado de trabalho, são algumas das ações de rotina na unidade. As aulas – ministradas a 40 alunos – ocorrem de segunda a sexta-feira, no período da tarde.

No curso preparatório para o mercado, adolescentes acima de 16 anos participam de atividades em grupo em que são abordados aspectos de autoconhecimento, informações sobre o mundo do trabalho e escolha profissional. Assim, recebem desde orientações sobre cidadania e leis trabalhistas até recursos para obter documentos pessoais. Depois do curso, os pacientes vão conhecer a prática do trabalho em empresas conveniadas com a Funcraf.

O Nirh é, portanto, um importante braço de apoio da Funcraf. Assim, também desenvolve atividades culturais, recreativas e educativas para fins de reabilitação e ressocialização de jovens e adolescentes com grande perda auditiva. Na unidade, o lema é “respeitar as diferenças individuais e atuar em grupo na busca do resgate de cada cidadão”.

Com o tempo, o Nirh passou por algumas modificações para atender melhor as pessoas. Uma amostra disso foi o que ocorreu entre 1999 e 2001. Até 1999, o Nirh promovia atividades voltadas a portadores de fissura labiopalatal, de deficiência auditiva, visual e mental. Em 2000, o programa foi reavaliado e passou a ter como público-alvo prioritário o deficiente auditivo. Detalhe: a equipe interdisciplinar – que envolve as áreas de psicologia, pedagogia, fonoaudiologia, fisioterapia e serviço social – optou por desenvolver um trabalho mais interativo com os educandos e seus familiares. Resultado: um serviço mais eficiente, objetivo e humanizado.
Elaine de Sousa e João Pedro Feza

Mais informações podem ser obtidas na Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformidades Crânio-Faciais (Funcraf) do Centrinho pelos telefones (14) 2106-0900, em Bauru, (11) 4433-6212, em Santo André, (15) 3531-3217, em Itararé, e (67) 356-0979, em Campo Grande (MS). Na Internet, o endereço da Funcraf é www.funcraf.org.br.

 

 

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