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“Os bombardeios sistemáticos e arrasadores de cidades, tanto na Alemanha como no Japão, e as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki atestam uma mudança
profunda na relação entre moralidade e guerra nos Estados Unidos, que antes não admitiam a intencionalidade da morte maciça de civis”, escreveu o professor da USP Braz Araujo

 

 

 

 

 

 

 


Takashi Morita, sua família e dois dos desenhos que fez para registrar a lembrança
do “inferno” de Hiroshima: “Nós não precisamos mais de guerra, precisamos
de paz”


T
akashi Morita pode dizer que viu o inferno – e sobreviveu para contar a história. Exatamente às 8h15 da manhã de 6 de agosto de 1945, ele liderava um grupo de cerca de 15 soldados da Polícia Militar de Hiroshima, da qual fazia parte, que se encaminhavam para construir um abrigo para armamentos. Estava a 1.300 metros do hipocentro, o local em que a bomba atômica explodiu. “Som, não escutei nada. Na hora, fui jogado para uns 10 metros à frente”, conta.

Tão logo conseguiu abrir os olhos, Morita lembra de ter visto uma escola de dois andares desabar como se fosse uma caixa de fósforos sendo esmagada. Apenas alguns poucos soldados conseguiram se levantar, muito machucados, para tentar entender o que havia acontecido e pensar no que fazer. O cenário era de horror e destruição. De áreas montanhosas mais afastadas da cidade, onde haviam sido preparados locais para socorro às vítimas dos esperados bombardeios americanos e para as quais se dirigiu para auxiliar no trabalho, o então policial viu a cidade arder em chamas. Sentia o mesmo em suas costas, atingidas por queimaduras que deixaram marcas perenes.

Mais de uma hora depois da explosão, Morita tomou o caminho do centro de Hiroshima. Era um dos poucos a fazer esse trajeto, porque a grande maioria procurava fugir da devastação e das chamas. Por volta do meio-dia, estava no centro. “O que o senhor viu nesse caminho?”, pergunta o repórter. A resposta não poderia ser mais clara: “Inferno”. As pessoas caminhavam com os braços para frente, pedaços de pele desprendiam-se do corpo, tufos de cabelo caíam, queimaduras horríveis castigavam seus corpos; crianças choravam e chamavam pelas mães.

O quadro é muito semelhante ao descrito pelo jornalista John Hersey, no clássico Hiroshima, que reúne as histórias de seis hibakushas – as vítimas que sobreviveram à bomba: “Alguns tinham as sobrancelhas queimadas e pedaços de pele soltos, pendendo das faces e das mãos. Outros, zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos. Em alguns corpos despidos as queimaduras acompanhavam o contorno das camisetas e suspensórios e, na pele de algumas mulheres, o das flores dos quimonos (o branco repeliu o calor da bomba, enquanto as roupas escuras o absorveram e o conduziram para a pele)”.

 



Aos 21 anos, Takashi Morita presenciou o início da era atômica. Hoje, com 81, é dono de uma mercearia no bairro do Jabaquara, em São Paulo, e preside a Associação dos Hibakushas no Brasil. No final de julho embarcou para o Japão, onde, mais uma vez, como tem feito há anos, participará das cerimônias pela paz e em memória das vítimas de Hiroshima, no dia 6, e de Nagasaki, no dia 9 de agosto. “Não precisamos mais de guerra, precisamos de paz”, diz. “Temos que educar as crianças para a paz. Quando eu era criança, no Japão só se falava de guerra, que era preciso preparar-se para ser forte e não ter medo de morrer. É como no Iraque de hoje. Mas temos que acreditar na paz, senão o mundo acaba. Eu já conheço a guerra, vi há 60 anos em Hiroshima. Hoje a potência das bombas é quantas vezes maior do que aquela?”

“Esbarrão do sol” – Para mostrar onde estava e que caminhos percorreu pela cidade em chamas e ruínas, Morita vale-se de desenhos de próprio punho nos quais registrou em cores vivas seus passos e ações. Também em forma de desenhos, cenas gravadas na memória de outros sobreviventes e transformadas por eles em testemunhos das visões que tiveram há exatos 60 anos serão exibidas pela primeira vez no Brasil a partir do dia 6 de agosto, na exposição “Hiroshima – Testemunhos e diálogos”, promovida pelo Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (leia o texto na página ao lado). As imagens mostram desde cenas de incêndio e corpos carbonizados até uma tradicional cerimônia de paz, na qual velas em lanternas de papel são colocadas na água em homenagem aos mortos.

A bomba explodiu bem no centro de Hiroshima, a 580 metros de altura, numa bola de fogo que atingiu cerca de 230 metros de raio. Calcula-se que no hipocentro – o ponto em terra exatamente abaixo da explosão –, a temperatura atingiu de 3.000 a 4.000 graus centígrados. É mais do que o dobro da temperatura necessária para fundir o ferro, em torno de 1.500 graus. Os dados são do livro The legacy of Hiroshima, do físico japonês Naomi Shohno, citado numa reportagem que Roberto Pompeu de Toledo publicou em 1995 – cinqüentenário da explosão – na revista Veja. “Foi como sofrer um esbarrão do sol”, definiu Pompeu de Toledo. Um esbarrão que tirou a vida de dezenas de milhares de seres humanos.

“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastavam até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas com 600 leitos e todos já estavam ocupados. A multidão que se aglomerava no interior do hospital chorava e gritava para o doutor Sasaki – ‘Sensei! Doutor!’ –, enquanto os que apresentavam ferimentos de menor importância o puxavam pela manga e lhe suplicavam que acudisse os feridos mais graves”, narra John Hersey.

Três dias depois, a bomba de Nagasaki mataria outras 70 mil pessoas. Os números exatos são impossíveis de precisar, porque de muitas pessoas tudo o que restou foi uma mancha, como a sombra de um flash, na calçada ou num muro. Relatos de sobreviventes, reunidos em livros ou catalogados pelo Museu Memorial da Paz, atestam que algumas pessoas simplesmente desapareceram – era como se de seus corpos se soltasse uma espécie de vapor, e então sumiam sem deixar vestígio.

Depois de quatro dias ajudando a resgatar e cuidar de sobreviventes, Takashi Morita, muito machucado e com os ferimentos piorando, foi hospitalizado numa escola transformada em posto médico a cerca de 30 quilômetros da cidade. Enquanto esperava transporte, foi visto por um conhecido, que avisou seus familiares de sua situação. Os pais de Morita estavam fora de Hiroshima, como parte da estratégia que evacuou dezenas de milhares de habitantes da cidade, mas pensavam que o filho estivesse em Tóquio. Ele realmente estivera lá, mas havia sido convocado dias antes para ajudar nos esforços de prevenção aos ataques aéreos em Hiroshima.

Terminados em maio os combates da Segunda Guerra Mundial na Europa, os bombardeios americanos castigavam inúmeras localidades japonesas para forçar a rendição incondicional do império nipônico. Na capital, calcula-se que 80 mil civis tenham morrido. Os habitantes de Hiroshima sabiam que estavam na lista de alvos, mas não entendiam por que até então sua cidade havia sido poupada. Tratava-se de uma medida para que os militares americanos avaliassem o poder dos estragos que a nova arma causaria, sem que esse efeito fosse “confundido” com o dos bombardeios tradicionais. “Os Estados Unidos usaram primeiro a bomba atômica porque foram os primeiros a construí-la estando em guerra, em finais de uma guerra mundial, quando já buscavam os novos padrões de poder que iriam definir os caminhos da paz”, escreveu num artigo para a Revista USP, também no cinqüentenário do final do conflito, o professor Braz Araujo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, recentemente falecido. “Os bombardeios sistemáticos e arrasadores de cidades, tanto na Alemanha como no Japão, e as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki atestam uma mudança profunda na relação entre moralidade e guerra nos Estados Unidos, que antes não admitiam a intencionalidade da morte maciça de civis.”

 


As pessoas vagam pelas ruas sem saber o que havia atingido Hiroshima, segundo desenhos de sobreviventes da bomba, hoje em poder de Takashi Morita



O capim e a vida

Depois de escapar da bomba e da chuva negra que caiu sobre Hiroshima, misturando cinzas, poeira e radiação, Takashi Morita começou mais uma de suas muitas vidas no dia 16 de setembro de 1945, quando recebeu alta do hospital. No dia seguinte, um temporal – comum no outono da região – provocou um deslizamento de terra que arrasou o prédio, matando muitos dos que estavam ali. À primeira vida, em 1924, Morita só chegou porque seu pai foi checar se aquele bebê enrolado e deixado de lado pelas parteiras estava realmente morto, como elas haviam dito. Como havia morado nos Estados Unidos e conhecido os costumes ocidentais na hora de dar à luz, o pai pegou o bebê pelos pés e sapecou-lhe o tradicional tapa no bumbum. Morita chorou e renasceu.

Na Hiroshima do pós-guerra, ainda lutando pela reconstrução e onde se descobriam cada vez mais os devastadores efeitos da radiação sobre a saúde humana, acreditava-se que a vida seria impossível por pelo menos 70 anos. Quando se deram conta de que o capim voltava a brotar do solo, os hibakushas concluíram que, sim, a vida ainda era possível. Apostando nisso, no dia 15 de setembro de 1946 Morita casou-se com Ayako, a quem conheceu no pós-bomba e que diz dever sua vida a um furúnculo. Graças ao problema, naquele dia seu supervisor deixou que ela trabalhasse na filial da empresa, a 1.200 metros do hipocentro, e não na sede, a 500 metros. A distância do local da explosão é uma medida fundamental para compreender os estragos causados pela bomba e para calcular os porquês da sobrevida – ou não.

Em 1956, já com dois filhos pequenos, o casal iniciou nova vida, desta vez no Brasil. A família veio a convite de outros membros da colônia japonesa, que recomendaram São Paulo como um lugar com bom clima e boas oportunidades para viver e trabalhar. Morita vendeu tudo o que tinha e, ao chegar, viu que a família que o havia convidado morava num cortiço. “Foi quase um choque, porque nós morávamos relativamente bem no Japão, chegamos aqui e a situação era muito diferente”, conta Marcos, 57 anos, filho mais velho do casal.

Enquanto o pai resume a trajetória na terra nova com uma ênfase repetida – “lutei, lutei, lutei” –, o filho diz que toda a experiência foi positiva. “Conhecer duas culturas e duas línguas totalmente diferentes foi muito bom. Todo ser humano tem que passar por dificuldades para crescer. Se ficar sempre no conforto, não cresce.” Um dos orgulhos do pai é que os filhos se formaram na USP: Marcos em Arquitetura e Yasuko, dois anos mais nova, em História. Os filhos e os três netos não apresentam problemas de saúde relacionados aos efeitos da radiação.


Corpos em chamas, rostos desfigurados, crianças chorando, homens e mulheres gritando por socorro: um cenário de horror assistiu ao início da era atômica


Foi apenas depois que os filhos se casaram que Takashi Morita assumiu sua condição de hibakusha e fundou, em 1984, a associação das vítimas. Até então, temia ser vítima de preconceito, o que, no Japão e fora dele, dificultava que os filhos de sobreviventes da bomba conseguissem se casar. Abandonou então a vida de relojoeiro e transformou-se em comerciante e militante da paz e dos direitos dos hibakushas. Uma das tarefas da associação, que reúne cerca de 140 pessoas em diversos Estados do Brasil, é lutar para que as garantias de previdência e assistência à saúde concedidas pelo governo japonês sejam estendidas às vítimas que não vivem em território nipônico. “Quem consegue o tratamento é quem consegue ir para o Japão, mas muitos não conseguem por questões de idade, saúde ou problemas financeiros”, explica Marcos. “De certa forma é uma injustiça, porque as pessoas que têm mais condições financeiras é que estão tendo esse benefício.” A seu lado, o pai pergunta: “E por que o governo americano também não ajuda?”.

Não foi sem dor que há dois anos Takashi Morita entrou com um processo reivindicando a extensão da assistência aos hibakushas fora do Japão. Numa entrevista que concedeu à época, o ex-policial quase chorou ao falar da iniciativa que teve que tomar contra o governo de sua própria terra natal. No final de agosto, poucos dias antes de retornar ao Brasil, Morita participará de uma nova audiência referente ao processo. Na volta, até quando sua saúde privilegiada permitir, continuará com seu trabalho à frente da associação e falando para crianças e jovens sobre a importância de preparar-se para a paz.

“Com a bomba o homem quis mostrar-se dono da história e fazer o papel de Criador, senhor do bem e do mal. Deu no que deu: destruiu vidas, implantou o terror e o assombro”, diz a professora Maria Luiza Marcílio, presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP. “Buscou-se, depois, impor limites à sanha de destruição, de dominação. Organismos internacionais procuraram por todos os meios impedir a repetição desse ato de barbárie. A duras penas vêm conseguindo impedir a repetição dessa tragédia. Até quando?”


Mostra traz desenhos de sobreviventes

A exposição “Hiroshima – Testemunhos e diálogos” será inaugurada neste sábado, dia 6 de agosto, às 11 horas, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, no Ibirapuera, e ficará aberta até 9 de outubro. Ela reúne reproduções de 86 trabalhos selecionados entre os mais de 2.000 que pertencem ao Museu Memorial da Paz de Hiroshima (que pode ser visitado pela Internet no endereço www.pcf.city.hiroshima.jp/top_e.html). Os desenhos foram feitos a partir de uma campanha realizada em 1974 por uma estação de rádio local. A experiência mostrou que o horror vivido no dia da explosão estava bastante vivo, décadas depois, na memória dos hibakushas, então adultos, muitos já idosos.

Para dialogar com os desenhos-testemunhos, o MAC selecionou 14 obras de artistas do acervo que tratam principalmente da paz. São trabalhos dos japoneses Chihiro Shimotami, Kimi Nii (que nasceu em Hiroshima em 1947), Bukichi Inoue, Shizuko Onda, Haruhiko Yasuda, Takeshi Yamamoto, Ryokichi Mukai e Sofu Teshigahara, além do inglês Austin Wright, do italiano Pietro Consagra, do belga Hans Persoons, do polonês Theodore Roszak e da brasileira Norma Grinberg. A mostra é promovida pelo MAC em parceria com o Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da USP.

Além de fazer visitas monitoradas, o público poderá participar de programações paralelas, como palestras, conferências e oficina de origamis (dobraduras em papel). Os visitantes também ajudarão na montagem de uma Árvore da Paz, construída com pássaros de papel contendo suas mensagens.


Desenhos mostrados na exposição do MAC: décadas depois, tragédia vivida pelos moradores de Hiroshima continua muito viva na memória
As 86 ilustrações que compõem a exposição foram selecionadas entre 2.000 desenhos que hoje pertencem ao Museu Memorial da Paz de Hiroshima

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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