A
nova direção do Partido dos Trabalhadores, presidido
pelo ex-ministro da Educação Tarso Genro, erra ao
insistir na faxina moral, um bordão que não deu certo
até agora, como ficou claro depois das denúncias de
corrupção em série. O PT, como bússola
da moralidade, foi atacado exatamente nesse ponto e se revelou mais
parecido com uma biruta que, em vez de apontar para o Norte, apontava
para o Sul. A solução para o Brasil também
não está numa simples reforma política; há
necessidade de uma reinvenção da política,
pois o mundo mudou radicalmente. A disciplina, a regra, os
ideais do mundo industrial, ou da modernidade do Iluminismo, não
existem mais, diz o psiquiatra Jorge Forbes, que, no entanto,
não tem alternativa pronta para a reinvenção
que prega, mas aponta o caminho de sua busca, com auxílio
de um exemplo da área da saúde.
Segundo o cientista, há cerca de 30 anos os médicos
observaram um estranho surto de doenças em certas pessoas,
como tumores de cabeça, câncer de fígado, falência
da supra-renal e erupções de pele de difícil
remissão, que evoluíam de forma esquisita e matavam
rapidamente. Cada manifestação era tratada separadamente,
até que alguma coisa no aspecto geral dessas doenças
chamou a atenção dos médicos: eram diferentes
o tempo de evolução, a gravidade, a remissão
pelos remédios. Nada funcionava direito. Só então
se percebeu que havia um fator associado às doenças
de fígado, de cabeça, de pele. Era a Síndrome
da Imunodeficiência Adquirida (Aids), causada, conforme se
descobriu logo depois, pelo HIV. Diante do novo diagnóstico,
as atenções e as pesquisas se voltaram para a causa
principal desses males, mas sem interromper o tratamento de cada
manifestação localizada. Forbes transpõe o
caso da medicina para a área política, entendendo
que também aí deve haver alguma síndrome a
ser pesquisada e diagnosticada. Gostaria de ter a solução.
Não tenho, diz. Os especialistas nas humanidades
filósofos, analistas, sociólogos, antropólogos
todas as pessoas das áreas biológica e técnica,
têm que se dar conta de que temos de gerar uma percepção
a partir deste fato, de que estamos num mundo incompleto, que a
ciência não oferece uma ideologia de certeza objetiva
e que precisamos detectar um novo tipo de laço social.
Os
indignados
Forbes recusa-se a aceitar a idéia de que o Brasil não
tem jeito, é o país da corrupção, que
isso vem do tempo da Colônia e da sociedade longamente escravocrata.
Pensar assim é, segundo ele, aumentar o cordão dos
indignados. Desconfio muito dos indignados; são pessoas
habitualmente mais preocupadas consigo mesmas, uma vez que o indignado,
ao dizê-lo, afirma que é digno e o outro, uma porcaria.
Indignados existem em todo lugar, na imprensa narcisista e nas Comissões
Parlamentares de Inquérito. A CPI é o espelho dos
indignados, acrescenta o psiquiatra, e corre o risco de virar um
circo, mas um circo deslocado, uma espécie de catarse da
Nação, papel que não deveria vir em primeiro
lugar. Forbes acredita que o formato de circo deslocado da CPI fica
evidente em comentários dos próprios membros das comissões
de inquérito. Lembra o caso do presidente da CPI dos Correios,
Delcídio do Amaral, que, sorrindo, declarou recentemente
em programa de televisão que as pessoas se reuniam em casa,
preparavam pipoca, abriam latas de cerveja, faziam festa para acompanhar
pela TV os depoimentos em Brasília, como se isso fosse
muito bom.
Forbes pensa o Brasil de outro modo: Penso-o frente a uma
conjuntura mundial, passando por um momento de mudança radical
no laço social da totalização. Privilegio o
aspecto da alteração dos ideais na formação
da identidade, da auto-estima, das referências das pessoas
em si e entre si. Saímos, argumenta o analista, de
uma época em que tínhamos uma orientação
vertical marcada na família pelo pai, pelo chefe, e no País
pelos símbolos pátrios presidente da República,
bandeira, língua, moeda e passamos para uma época
de multiplicidade de ideais. Não há mais uma versão
única, mas uma multiplicidade de ideais. Daí a necessidade
maior de optar e de se ressocializar por opção.
Nesse sentido, a queda de um partido que se comportou o tempo todo
como um termômetro moral, uma bússola moral, foi atacado
exatamente nesse ponto e se transformou em biruta ao sabor das negociatas,
coloca o País frente a duas possibilidades: quando Tarso
Genro assume a presidência do partido e seu primeiro discurso
é sobre faxina moral, é evidente que a sociedade espera
que os corruptos, enganadores, manipuladores, que são muitos,
sejam penalizados conforme a lei; no entanto, ideologizar isso e
novamente propor à Nação um projeto de pureza
moral, é novamente criar ilusão. Vejo como má,
ruim, péssima essa posição, afirma Forbes.
É do tipo não aprendi nada, que
diz à população: vocês tinham razão
de esperar muito do PT porque nós somos a reserva moral da
Nação. Houve um probleminha entre nós, mas
continuamos sendo a reserva moral da Nação.
Essa cegueira pessoal pode ser solução
imediata para o partido, mas a médio e longo prazo não
funciona.
Forbes não descarta a possibilidade de o grupo de petistas
que assumiu a condução do partido nos últimos
anos tenha chegado ao poder já com más intenções
(mas exclui dessa turma o presidente da República), não
sendo apenas resultado da corrupção do poder. O
poder corrompe os fracos. O remendo do poder é a corrupção.
Entende que o povo brasileiro foi enganado.
O psicanalista está convencido de que o Brasil encontra-se
frente a um desafio muito maior do que fazer uma faxina moral como
propõe Tarso Genro. A propósito, comenta: De
novo um gaúcho se apresenta como bastião da moralidade.
Antes era (presidente do PT) um ex-guerrilheiro (José Genoino),
e até mesmo o presidente da República, que construiu
recentemente uma frase de questionável lógica.
Lula havia dito, e sempre repete, que é filho de analfabetos,
sofreu muito na infância, percorreu uma trajetória
socialmente baixa até alcançar a Presidência
da República, logo não há no Brasil
pessoa mais ética do que ele. Segundo Forbes, esse logo
não liga nada a nada. Para o psicanalista, a frase de Lula
foi de uma infelicidade absoluta.
Na aparência, o mundo de hoje é
igual ao mundo de ontem. As pessoas, as casas,
as ruas, a geografia, a anatomia, tudo dá a impressão
de que é igual. No entanto,
é radicalmente diferente. Estamos diante de novos fenômenos
da satisfação e da insatisfação humana,
da disciplina, das regras, dos ideais do mundo industrial ou da
modernidade do Iluminismo
A
reinvenção política
Nesse ponto, Forbes procura uma alternativa para o Brasil, a reinvenção
da política. Chegamos a um ponto em que precisamos
nos dar conta de que o mundo mudou radicalmente, diz, argumentando
que o laço social agrário, a sociedade agrária,
deram lugar ao laço social do mundo globalizado. Estamos
confundindo as bolas. O mundo de hoje é igualzinho na aparência
ao mundo de ontem; as pessoas são iguaizinhas, as casas,
as ruas, a geografia, a anatomia, tudo dá a impressão
de que é igual. No entanto, é radicalmente diferente.
Estamos diante de novos fenômenos da satisfação
e da insatisfação humana, da disciplina, das regras,
dos ideais do mundo industrial ou da modernidade do Iluminismo.
Em resumo, diz que estamos em novo mundo, mas recorremos a velhas
soluções. Assim como ocorria tempos atrás na
medicina. Os médicos tratavam de aspectos muito graves com
métodos antigos, até que se descobriu um novo conceito,
o da imunodeficiência, e se passou a tratar os pacientes de
acordo com esse conceito.
Voltando à realidade política nacional, Forbes diz
que não adianta o PT se refazer. É preciso encontrar
a síndrome causadora de atos de corrupção
e de outras mazelas individualizadas, que não adianta tratar
isoladamente. Não é tarefa para uma só pessoa,
mas para a sociedade e especialmente a comunidade científica.
Estamos perdendo uma imensa chance de colaborar com o Brasil
e com o mundo, acrescenta o psicanalista.
Lula
Colaborar com o mundo. Forbes diz que nas últimas eleições
presidenciais o Brasil fez uma opção subjetiva, com
afeto, ao votar em Lula, rejeitando a opção oposta
oferecida pelo outro candidato finalista, José Serra. A razão
com afeto colocou o País na vanguarda do ponto de vista
mundial, contrastando, por exemplo, com a razão com
poder do presidente norte-americano George W. Bush.
Lula, segundo o psicanalista, é novidade para si próprio.
Como Pelé é novidade para Edson Arantes do Nascimento.
Em ambos, como nas grandes personalidades de todos os tempos, sejam
músicos, como Beethoven, sejam esportistas, como Pelé,
ou políticos, como Lula, existe um excesso, que
os defende e faz com que sobrevivam até em graves crises.
Relativamente a Lula, Forbes observa que o presidente, apesar de
haver cometido muitos erros (entre eles dizer que é ético
porque seus pais eram analfabetos), ainda tem a simpatia do povo,
não porque seja operário (a sociedade é
impiedosa com erros de operários), mas por causa daquele
excesso, exclusivo das pessoas fora do comum. Comparando
a situação nacional atual com a da era Fernando Collor,
o analista lembra que para o presidente deposto o povo dizia saia,
ao passo que para Lula está dizendo não faça
besteira. E besteira monumental Forbes considera que Lula
perpetrou na entrevista que deu no jardim de um castelo na França.
Tudo estava errado: local, fala, entrevistadora. Agora
só lhe resta não desperdiçar a prorrogação
da confiança.
A
angústia do Raimundo
Forbes
situa na história recente os diversos laços
sociais, que lhe permitem uma análise aprofundada das
relações humanas e políticas até
o advento do novo mundo. Mundo que espera uma
nova forma de fazer política.
Diz que o homem vive em conflito com a natureza e com a civilização,
ao contrário do que pregava Rousseau, segundo o qual
o homem nasce bom, convive pacificamente com a natureza, quase
como se tivesse a mesma natureza de uma vaca, de um cipreste,
de um granito. Nem eu nem Freud, Lacan, Hegel, Heidegger,
Espinosa, psicanalistas, filósofos, juristas, enfim,
um bando de pensadores não vêem essa co-naturalidade,
diz o analista. Pelo contrário, o homem deixado à
própria sorte se perde, erra e precisa encontrar uma
forma de orientação que não lhe seja
natural. E por não ser natural, ele pode mudar de tempos
em tempos. Quando a mudança é muito grande toma
o nome de nova era.
Num primeiro momento, o homem se orientava pelo temor a Deus,
sua ação era determinada pelo que Deus esperava
dele. É a ética do temor a Deus. A partir dos
Iluministas, no século 18, o dever da razão
substituiu o temor a Deus. Se Deus me pede que eu pegue
o meu filho, suba uma montanha e o sacrifique para provar
a minha fidelidade, isso vai contra a razão e eu não
vou fazer. Um filósofo francês, muito conhecido
dos brasileiros, Augusto Conte, levou isso tão a sério
que construiu uma capela e o altar da razão. No lugar
de santos colocou imagens de sábios como Platão,
Sócrates e outros. O altar da razão pode ser
visitado ainda hoje em Paris.
A razão foi consagrada para orientar o homem e garantir
a sua ação. Há aí um problema
fundamental da espécie humana, segundo Forbes. O de
que uma vaca não se pergunta sobre a própria
ação; ela é garantida biologicamente.
Uma vaca é sempre uma vaca. Mas o homem nunca é
o mesmo homem. Constatação que afligia o poeta
Keats que, ao olhar um rouxinol, se perguntava se o rouxinol
era o mesmo que outro poeta, Shakespeare, via, e se ele, Keats,
era Shakespeare. Forbes responde que o rouxinol era o mesmo,
mas Keats não era Shakespeare.
Não apenas poetas se angustiam; todo homem se angustia
ao pensar que a ação humana é arriscada
e não garantida. Se de início a razão
consagrada podia ser acessada com rituais que lembram em tudo
a liturgia religiosa e Forbes lembra os rituais acadêmicos,
com suas togas, becas e cajados , de repente o saber
virou algo que se acessa por meio de um ratinho (mouse). Mediante
um clic de rato surge um mundo nunca visto antes. Mas, se
consagrado, o poder se transforma em genérico e não
serve mais para representar uma providência divina ou
dar ao homem garantia de ação. A angústia
frente a esse acesso, impossível há 20 ou 30
anos, deriva do fato de o homem (o covarde por opção)
se ver na condição de fazer aquilo que não
deseja, a escolha entre uma infinidade de possibilidades.
Em tempo de Internet a opção é fazer
opções, se reinventar continuamente.
Um exemplo para o caso, lembrado por Forbes, é o Raimundo
do poeta Carlos Drummond de Andrade: por mais que eu queira
me fazer parecido com o mundo, porque a separação
do mundo me angustia, me põe em risco e me obriga a
optar e eu não quero optar ; por mais
que eu queira mudar o meu nome e me chamar Raimundo, ficar
mais perto do mundo, o máximo que consigo fazer é
uma rima, não uma solução. Forbes conclui
dizendo que sempre haverá alguma coisa, que Drummond
chama coração, que é mais vasta que as
soluções que o mundo dá.
Será o PT o Raimundo do antipoema que as CPIs analisam
no Congresso Nacional?
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