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Devoção e arte – Imaginária religiosa em Minas Gerais, organizado por Beatriz Coelho, Edusp, 294 páginas, R$ 130,00.


Oh, Deus salve o oratório,
Onde Deus fez a morada,
Oiá, meu Deus
Onde Deus fez a morada, oiá
Onde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada
E a hóstia consagrada, oiá
Milton Nascimento

Na voz dos seresteiros, poetas ou nas mãos dos artesãos anônimos, a fé da brava gente mineira está sempre presente. Uma fé que, desde os primeiros tempos da colonização, vem edificando igrejas e esculpindo santos. Diante de Santa Ifigênia, São Benedito, Nossa Senhora da Conceição, Santa Maria Madalena e tantos outros protetores desconhecidos, os fiéis se curvam para pedir e agradecer. São essas imagens preciosas que estão reunidas no livro Devoção e arte – Imaginária religiosa em Minas Gerais, organizado pela historiadora e restauradora Beatriz Coelho e editado pela Editora da USP (Edusp).

“Este trabalho é um dos resultados do inventário de Bens Móveis e Integrados de Minas Gerais realizado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em parceria com a Fundação Vitae”, conta Beatriz. “A pesquisa teve início em 1986 e foi concluída 12 anos depois. Fizemos um levantamento completo dos acervos das igrejas, capelas e outros monumentos tombados pelo Iphan, e que incluem mobiliário, pinturas, esculturas, objetos litúrgicos, elementos do vestuário sacerdotal, luminárias, lavabos e balaustradas.”

Através desse exaustivo levantamento, foi possível conhecer e documentar todo um acervo histórico e artístico de importância nacional. “Dentre os valiosos elementos, destaca-se a imaginária religiosa, por seu valor documental, sua qualidade artística, originalidade, quantidade e também como testemunha silenciosa da religiosidade do povo mineiro. Por esse motivo, foi escolhida como tema deste livro, um dos primeiros frutos desse grandioso trabalho.”

Para o presidente do Iphan, Antonio Augusto Arantes, o livro é um passo essencial para a preservação do patrimônio, que não se esgota apenas no tombamento. “É preciso identificar, conhecer, porque sem pesquisa os objetos permanecem inertes e com interesse limitado. Apenas a construção e a difusão do conhecimento permitem trazê-los ao presente e projetar sobre eles a luz que lhes atribui sentido e justifica o interesse público em sua proteção.”

Cenário da fé

Diante das 247 imagens – fotografadas por Pedro David – selecionadas para o livro Devoção e arte, o leitor tem uma amostra da dimensão desse cenário da fé. Orientado pelos ensaios de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Célio Macedo Alves, Olinto Rodrigues dos Santos e Beatriz Coelho, vai conhecendo aspectos importantes da história da arte sacra no Brasil. Importante também é observar o trabalho de artesãos anônimos, responsáveis por dar rosto e corpo aos santos.

“Eruditas ou populares, em barro cozido ou madeira, mas sempre policromadas em virtude do maior realismo exigido pela sua destinação devocional, as imagens refletem, em todo o território nacional, aspectos originais de nossa cultura nos primeiros séculos de sua história, condicionada por valores cristãos de herança medieval e contra-reformista”, explica Myriam, coordenadora e supervisora desse inventário do Iphan. “Se o comprometimento básico do escultor era com a adequação iconográfica, fundamental para que o santo pudesse ser reconhecido pelo seu aspecto e atributos específicos, a transposição do tema para o barro ou a madeira dependia de sua capacidade técnica e visão do mundo, determinadas pela cultura e pelo viver em sociedade que condicionam as características específicas do gosto regional ou local.”

Beatriz lembra a rotina nas oficinas dos artistas. “O escultor ou entalhador idealizava e entalhava a escultura segundo a encomenda recebida, que, em geral, já determinava se seria totalmente esculpida ou de vestir. Escolhia a madeira de acordo com o tamanho da imagem, decidia se seria oca ou maciça, feita em um só bloco de madeira ou em vários blocos e peças.”

A pintura, segundo Beatriz, era executada por outro artífice, um pintor-dourador. “Era comum a participação de oficiais na execução de encomendas, como era o caso de Aleijadinho, que anotava sempre em seus recibos a colaboração de seus oficiais.”

As imagens religiosas aportaram no Brasil com os portugueses, ainda hoje um dos povos de forte tradição católica na Europa. “Embora a importação dessas imagens tenha sido uma constante ao longo de todo o período colonial, já desde os primeiros anos do século 17 desenvolveram-se oficinas de produção local para atender à demanda crescente da população”, observa Myriam. “Submetidas a padrões iconográficos e estilísticos convencionais, as imagens seiscentistas apresentam geralmente posturas hieráticas, contenção nas formas do panejamento e expressões severas ou distantes, repetindo com poucas variações os protótipos portugueses usados como modelos.”

No ensaio “Características específicas e escultores identificados”, que integra o livro, o historiador Olinto Rodrigues dos Santos Filho, coordenador do trabalho de campo do inventário do Iphan, destaca o trabalho dos escultores identificados na pesquisa, muitos deles desconhecidos. Apresenta, entre outros, Francisco Xavier de Brito (morto em 1751), cuja biografia é praticamente desconhecida. Sabe-se que em 1735 ele estava no Rio de Janeiro trabalhando na talha da Capela da Venerável Ordem Terceira da Penitência, no Largo da Carioca. Fez também as imagens do retábulo do altar-mor de Pilar de Ouro Preto. Embora pouco se saiba sobre a vida de José Coelho de Noronha (ativo entre 1747 e 1765), era um entalhador de prestígio e fama na época em que viveu e é responsável por diversas obras na Matriz de Nossa Senhora do Bonsucesso e o retábulo da Catedral de Mariana, entre outras.

A história e as obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), estão presentes no livro, porém a preocupação da organizadora Beatriz Coelho foi evidenciar o trabalho dos menos conhecidos. Aleijadinho era filho de uma escrava e do mestre construtor Manoel Francisco Lisboa, que veio de Portugal para Minas, onde deixou várias obras de arquitetura. Suas esculturas, além de atrair turistas e apreciadores de arte do mundo inteiro, ainda hoje continuam inspirando os santeiros ou artistas de todo o País.


Os santos e o povo

A religiosidade no Brasil cresceu com forte viés de elementos populares brancos, negros e índios. “Nessa perspectiva, é bom ressaltar que uma religião popular não tem que se preocupar imediatamente com a salvação externa, mas deve buscar a realização das múltiplas exigências que a vida cotidiana impõe às pessoas”, afirma o historiador Célio Macedo Alves. “Entendido dentro desse esquema, o culto dedicado aos santos e à Virgem Maria, principalmente este, assume características bastante peculiares, em que é possível até falar de uma afetivização desse culto, a partir do qual o santo participa de uma maneira mais humanizada da vida das pessoas: deixa de ser simples intermediário na graça ou milagre a ser alcançado e compartilha humanamente dos temores, aspirações e alegrias dos fiéis. Em troca recebe imagens, vestimentas, jóias, altares e festas.”

A religiosidade mineira, segundo Alves, foi moldada por esses contornos populares no alvorecer da capitania, com a chegada dos primeiros bandeirantes. “Junto com os mineradores, chegam os escravos negros, a mão-de-obra imprescindível a qualquer empreitada aurífera. Assim formam-se os primeiros núcleos humanos, compostos de um amálgama de pessoas brancas e negras, vivendo em arraiais encravados nos vales, entre as montanhas mineiras.”

O historiador lembra que em 1711 surgiram as primeiras vilas, como Sabará, Ouro Preto, Vila do Carmo e São João del-Rei, seguidas, logo depois, de outras. No centro de cada uma delas erguem-se a Câmara e a cadeia, o pelourinho e a igreja matriz, símbolos dos poderes secular e religioso naquelas bandas. “À margem destes, levantam-se as primeiras igrejinhas particulares, construídas pelos negros, escravos, geralmente dedicadas à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Muitas dessas capelas surgem ainda no final do século 17 e no início do século 18 já eram em número considerável, espalhadas por vários pontos do território. Onde havia escravos minerando, lá podia ser encontrado um orago dedicado ao rosário de Nossa Senhora.”

Santos e ouro formam uma mistura singular em Minas Gerais. “Ali, a religião dos santos cristãos caminhará bem junto à adoração ao bezerro de ouro, o que, segundo crônicas da época, levaria à perdição até mesmo alguns padres inescrupulosos”, descreve Alves. “Todavia, a fixação dos negros por Nossa Senhora do Rosário e pelos outros santos de cor não foi um fato tipicamente mineiro. O culto já se encontrava bastante arraigado entre eles, antes de chegarem ali. Mineira, talvez, a presença desses negros, reunidos em torno de suas devoções, construindo seus oragos para ombrear-se com os oragos dos brancos colonizadores.”


A madeira era o principal suporte da imaginária em todo o Brasil colonial



Além de Nossa Senhora do Rosário, entre as santas negras mais queridas está Santa Ifigênia, com a sua história associada à ordem carmelita. “Segundo a tradição hagiográfica, a santa teria fundado, com o auxílio de algumas seguidoras, um convento dedicado à Nossa Senhora do Carmo, que, antes de ser inaugurado, foi incendiado a mando de um tio tirânico e só foi salvo graças à intervenção de Deus, atendendo prontamente às orações feitas por Ifigênia.” Inspirados nesse fato, os artistas esculpiram a santa com o hábito das carmelitas, levando na mão uma maquete de uma igreja em chamas. Também São Benedito tem a devoção dos mineiros. Chamado de o “Negro” ou o “Mouro”, nasceu em Palermo por volta de 1526 e era filho de escravos africanos. Foi pastor, lavrador e, como frade, destacou-se por suas virtudes e bondade, sendo canonizado em 1807.

No ensaio “Um estudo iconográfico”, que também integra o livro Devoção e arte, o historiador Célio Macedo Alves apresenta uma pesquisa detalhada sobre os santos trazidos pelas diversas ordens. “Dentre todos os santos e santas constantes do inventário, distribuídos em três grupos distintos, ou seja, de ordens religiosas, os tradicionais e as virgens mártires, há alguns, no entanto, que tiveram maior repercussão por conta do caráter mais popular e supersticioso da religiosidade que ali se manifestou. Nesse sentido, os santos tradicionais são os que mais lugar ganharam, e ainda ganham, na piedade do povo. O santo alcança essa condição de popular quando é adotado como patrono de uma dada corporação de ofício e confraria ou quando adquire a fama de curandeiro ou casamenteiro.”



São Benedito e Santa Ifigênia, em diferentes versões: santos e ouro formam uma singular mistura de tradições em Minas Gerais

 

Conhecer para preservar

A imaginária religiosa em Minas Gerais vem sendo ameaçada pela falta de segurança. Segundo Beatriz Coelho, Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), têm sido registrados muitos furtos de imagens religiosas e de outros objetos litúrgicos de matrizes, igrejas e capelas. “Todos sabemos que padres vendiam imagens para financiar obras sociais ou para o sustento da igreja, mas, atualmente, há verdadeiras gangues que roubam para vender.”

Beatriz explica que, nos últimos 30 anos, grande número de peças pertencentes a igrejas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico foi furtado em Minas Gerais. “Felizmente, muitas foram recuperadas e devolvidas aos seus locais de origem. Algumas, no entanto, estavam totalmente desfiguradas por um pseudo-restaurador que, sem nenhum escrúpulo, modificava as imagens tanto na sua forma quanto na policromia, para não serem reconhecidas.”

A irresponsabilidade com a restauração é outro problema grave, podendo, segundo a historiadora, comprometer os conservadores e restauradores que primam pela ética em relação às intervenções em uma obra de arte. Para preservá-la, considera essencial a pesquisa e o trabalho interdisciplinar, envolvendo conservadores/restauradores, historiadores de arte, físicos, químicos, biólogos e profissionais de outras áreas, para que haja um intercâmbio de conhecimentos.

“Assim, teremos uma visão mais completa do objeto quanto à história, contexto social, autoria e atribuições, procedimentos e materiais empregados, ampliando as informações para conhecer, conservar e valorizar nosso patrimônio artístico e devocional da melhor maneira possível, garantindo a sua preservação para as gerações futuras.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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