Oh, Deus salve o oratório,
Onde Deus fez a morada,
Oiá, meu Deus
Onde Deus fez a morada, oiá
Onde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada
E a hóstia consagrada, oiá
Milton Nascimento
Na
voz dos seresteiros, poetas ou nas mãos dos artesãos
anônimos, a fé da brava gente mineira está sempre
presente. Uma fé que, desde os primeiros tempos da colonização,
vem edificando igrejas e esculpindo santos. Diante de Santa Ifigênia,
São Benedito, Nossa Senhora da Conceição, Santa
Maria Madalena e tantos outros protetores desconhecidos, os fiéis
se curvam para pedir e agradecer. São essas imagens preciosas
que estão reunidas no livro Devoção e arte
Imaginária religiosa em Minas Gerais, organizado pela
historiadora e restauradora Beatriz Coelho e editado pela Editora
da USP (Edusp).
Este trabalho é um dos resultados do inventário
de Bens Móveis e Integrados de Minas Gerais realizado pelo
Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional), em parceria com a Fundação Vitae,
conta Beatriz. A pesquisa teve início em 1986 e foi
concluída 12 anos depois. Fizemos um levantamento completo
dos acervos das igrejas, capelas e outros monumentos tombados pelo
Iphan, e que incluem mobiliário, pinturas, esculturas, objetos
litúrgicos, elementos do vestuário sacerdotal, luminárias,
lavabos e balaustradas.
Através desse exaustivo levantamento, foi possível
conhecer e documentar todo um acervo histórico e artístico
de importância nacional. Dentre os valiosos elementos,
destaca-se a imaginária religiosa, por seu valor documental,
sua qualidade artística, originalidade, quantidade e também
como testemunha silenciosa da religiosidade do povo mineiro. Por
esse motivo, foi escolhida como tema deste livro, um dos primeiros
frutos desse grandioso trabalho.
Para o presidente do Iphan, Antonio Augusto Arantes, o livro é
um passo essencial para a preservação do patrimônio,
que não se esgota apenas no tombamento. É preciso
identificar, conhecer, porque sem pesquisa os objetos permanecem
inertes e com interesse limitado. Apenas a construção
e a difusão do conhecimento permitem trazê-los ao presente
e projetar sobre eles a luz que lhes atribui sentido e justifica
o interesse público em sua proteção.
Cenário
da fé
Diante das 247 imagens fotografadas por Pedro David
selecionadas para o livro Devoção e arte, o leitor
tem uma amostra da dimensão desse cenário da fé.
Orientado pelos ensaios de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Célio
Macedo Alves, Olinto Rodrigues dos Santos e Beatriz Coelho, vai
conhecendo aspectos importantes da história da arte sacra
no Brasil. Importante também é observar o trabalho
de artesãos anônimos, responsáveis por dar rosto
e corpo aos santos.
Eruditas ou populares, em barro cozido ou madeira, mas sempre
policromadas em virtude do maior realismo exigido pela sua destinação
devocional, as imagens refletem, em todo o território nacional,
aspectos originais de nossa cultura nos primeiros séculos
de sua história, condicionada por valores cristãos
de herança medieval e contra-reformista, explica Myriam,
coordenadora e supervisora desse inventário do Iphan. Se
o comprometimento básico do escultor era com a adequação
iconográfica, fundamental para que o santo pudesse ser reconhecido
pelo seu aspecto e atributos específicos, a transposição
do tema para o barro ou a madeira dependia de sua capacidade técnica
e visão do mundo, determinadas pela cultura e pelo viver
em sociedade que condicionam as características específicas
do gosto regional ou local.
Beatriz lembra a rotina nas oficinas dos artistas. O escultor
ou entalhador idealizava e entalhava a escultura segundo a encomenda
recebida, que, em geral, já determinava se seria totalmente
esculpida ou de vestir. Escolhia a madeira de acordo com o tamanho
da imagem, decidia se seria oca ou maciça, feita em um só
bloco de madeira ou em vários blocos e peças.
A pintura, segundo Beatriz, era executada por outro artífice,
um pintor-dourador. Era comum a participação
de oficiais na execução de encomendas, como era o
caso de Aleijadinho, que anotava sempre em seus recibos a colaboração
de seus oficiais.
As imagens religiosas aportaram no Brasil com os portugueses, ainda
hoje um dos povos de forte tradição católica
na Europa. Embora a importação dessas imagens
tenha sido uma constante ao longo de todo o período colonial,
já desde os primeiros anos do século 17 desenvolveram-se
oficinas de produção local para atender à demanda
crescente da população, observa Myriam. Submetidas
a padrões iconográficos e estilísticos convencionais,
as imagens seiscentistas apresentam geralmente posturas hieráticas,
contenção nas formas do panejamento e expressões
severas ou distantes, repetindo com poucas variações
os protótipos portugueses usados como modelos.
No ensaio Características específicas e escultores
identificados, que integra o livro, o historiador Olinto Rodrigues
dos Santos Filho, coordenador do trabalho de campo do inventário
do Iphan, destaca o trabalho dos escultores identificados na pesquisa,
muitos deles desconhecidos. Apresenta, entre outros, Francisco Xavier
de Brito (morto em 1751), cuja biografia é praticamente desconhecida.
Sabe-se que em 1735 ele estava no Rio de Janeiro trabalhando na
talha da Capela da Venerável Ordem Terceira da Penitência,
no Largo da Carioca. Fez também as imagens do retábulo
do altar-mor de Pilar de Ouro Preto. Embora pouco se saiba sobre
a vida de José Coelho de Noronha (ativo entre 1747 e 1765),
era um entalhador de prestígio e fama na época em
que viveu e é responsável por diversas obras na Matriz
de Nossa Senhora do Bonsucesso e o retábulo da Catedral de
Mariana, entre outras.
A história e as obras de Antônio Francisco Lisboa,
o Aleijadinho (1738-1814), estão presentes no livro, porém
a preocupação da organizadora Beatriz Coelho foi evidenciar
o trabalho dos menos conhecidos. Aleijadinho era filho de uma escrava
e do mestre construtor Manoel Francisco Lisboa, que veio de Portugal
para Minas, onde deixou várias obras de arquitetura. Suas
esculturas, além de atrair turistas e apreciadores de arte
do mundo inteiro, ainda hoje continuam inspirando os santeiros ou
artistas de todo o País.
Os santos e o povo
A religiosidade no Brasil cresceu com forte viés de elementos
populares brancos, negros e índios. Nessa perspectiva,
é bom ressaltar que uma religião popular não
tem que se preocupar imediatamente com a salvação
externa, mas deve buscar a realização das múltiplas
exigências que a vida cotidiana impõe às pessoas,
afirma o historiador Célio Macedo Alves. Entendido
dentro desse esquema, o culto dedicado aos santos e à Virgem
Maria, principalmente este, assume características bastante
peculiares, em que é possível até falar de
uma afetivização desse culto, a partir do qual o santo
participa de uma maneira mais humanizada da vida das pessoas: deixa
de ser simples intermediário na graça ou milagre a
ser alcançado e compartilha humanamente dos temores, aspirações
e alegrias dos fiéis. Em troca recebe imagens, vestimentas,
jóias, altares e festas.
A religiosidade mineira, segundo Alves, foi moldada por esses contornos
populares no alvorecer da capitania, com a chegada dos primeiros
bandeirantes. Junto com os mineradores, chegam os escravos
negros, a mão-de-obra imprescindível a qualquer empreitada
aurífera. Assim formam-se os primeiros núcleos humanos,
compostos de um amálgama de pessoas brancas e negras, vivendo
em arraiais encravados nos vales, entre as montanhas mineiras.
O historiador lembra que em 1711 surgiram as primeiras vilas, como
Sabará, Ouro Preto, Vila do Carmo e São João
del-Rei, seguidas, logo depois, de outras. No centro de cada uma
delas erguem-se a Câmara e a cadeia, o pelourinho e a igreja
matriz, símbolos dos poderes secular e religioso naquelas
bandas. À margem destes, levantam-se as primeiras igrejinhas
particulares, construídas pelos negros, escravos, geralmente
dedicadas à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Muitas
dessas capelas surgem ainda no final do século 17 e no início
do século 18 já eram em número considerável,
espalhadas por vários pontos do território. Onde havia
escravos minerando, lá podia ser encontrado um orago dedicado
ao rosário de Nossa Senhora.
Santos e ouro formam uma mistura singular em Minas Gerais. Ali,
a religião dos santos cristãos caminhará bem
junto à adoração ao bezerro de ouro, o que,
segundo crônicas da época, levaria à perdição
até mesmo alguns padres inescrupulosos, descreve Alves.
Todavia, a fixação dos negros por Nossa Senhora
do Rosário e pelos outros santos de cor não foi um
fato tipicamente mineiro. O culto já se encontrava bastante
arraigado entre eles, antes de chegarem ali. Mineira, talvez, a
presença desses negros, reunidos em torno de suas devoções,
construindo seus oragos para ombrear-se com os oragos dos brancos
colonizadores.
A
madeira era o principal suporte da imaginária em todo o Brasil
colonial
Além de Nossa Senhora do Rosário, entre as santas
negras mais queridas está Santa Ifigênia, com a sua
história associada à ordem carmelita. Segundo
a tradição hagiográfica, a santa teria fundado,
com o auxílio de algumas seguidoras, um convento dedicado
à Nossa Senhora do Carmo, que, antes de ser inaugurado, foi
incendiado a mando de um tio tirânico e só foi salvo
graças à intervenção de Deus, atendendo
prontamente às orações feitas por Ifigênia.
Inspirados nesse fato, os artistas esculpiram a santa com o hábito
das carmelitas, levando na mão uma maquete de uma igreja
em chamas. Também São Benedito tem a devoção
dos mineiros. Chamado de o Negro ou o Mouro,
nasceu em Palermo por volta de 1526 e era filho de escravos africanos.
Foi pastor, lavrador e, como frade, destacou-se por suas virtudes
e bondade, sendo canonizado em 1807.
No ensaio Um estudo iconográfico, que também
integra o livro Devoção e arte, o historiador Célio
Macedo Alves apresenta uma pesquisa detalhada sobre os santos trazidos
pelas diversas ordens. Dentre todos os santos e santas constantes
do inventário, distribuídos em três grupos distintos,
ou seja, de ordens religiosas, os tradicionais e as virgens mártires,
há alguns, no entanto, que tiveram maior repercussão
por conta do caráter mais popular e supersticioso da religiosidade
que ali se manifestou. Nesse sentido, os santos tradicionais são
os que mais lugar ganharam, e ainda ganham, na piedade do povo.
O santo alcança essa condição de popular quando
é adotado como patrono de uma dada corporação
de ofício e confraria ou quando adquire a fama de curandeiro
ou casamenteiro.
São Benedito e Santa Ifigênia, em
diferentes versões: santos e ouro formam uma singular mistura
de tradições em Minas Gerais
Conhecer
para preservar
A
imaginária religiosa em Minas Gerais vem sendo ameaçada
pela falta de segurança. Segundo Beatriz Coelho, Professora
Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
têm sido registrados muitos furtos de imagens religiosas
e de outros objetos litúrgicos de matrizes, igrejas
e capelas. Todos sabemos que padres vendiam imagens
para financiar obras sociais ou para o sustento da igreja,
mas, atualmente, há verdadeiras gangues que roubam
para vender.
Beatriz explica que, nos últimos 30 anos, grande número
de peças pertencentes a igrejas tombadas pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) e Instituto Estadual do Patrimônio Histórico
e Artístico foi furtado em Minas Gerais. Felizmente,
muitas foram recuperadas e devolvidas aos seus locais de origem.
Algumas, no entanto, estavam totalmente desfiguradas por um
pseudo-restaurador que, sem nenhum escrúpulo, modificava
as imagens tanto na sua forma quanto na policromia, para não
serem reconhecidas.
A irresponsabilidade com a restauração é
outro problema grave, podendo, segundo a historiadora, comprometer
os conservadores e restauradores que primam pela ética
em relação às intervenções
em uma obra de arte. Para preservá-la, considera essencial
a pesquisa e o trabalho interdisciplinar, envolvendo conservadores/restauradores,
historiadores de arte, físicos, químicos, biólogos
e profissionais de outras áreas, para que haja um intercâmbio
de conhecimentos.
Assim, teremos uma visão mais completa do objeto
quanto à história, contexto social, autoria
e atribuições, procedimentos e materiais empregados,
ampliando as informações para conhecer, conservar
e valorizar nosso patrimônio artístico e devocional
da melhor maneira possível, garantindo a sua preservação
para as gerações futuras.
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