Quinto dia. A frente fria perde força e aparecem
as mutucas. Aparecem bucheiras (Lufa) em profusão crescendo
sobre a vegetação ribeirinha, formando como que uma
cortina, com flores amarelas e muitas buchas. A vegetação
marginal, onde dominava a escova-de-macaco (Combretum), é
agora substituída por uma espécie de urtiga e começa
a aparecer capituva. Mais uns poucos quilômetros e passamos
pela enorme casa do ex-governador e encontramos a boca do famoso
Touro Morto, que, pasmem, não está no mapa. Subimos
o rio com alegria, água escura e semitransparente.
Remamos uns três quilômetros sem nenhuma chance de acampar,
até que, já cansados, vimos um barranco alto, com
árvores grandes, esplêndido para acampar. Mas havia
uma enorme placa (toda furada de bala) com dizeres que proibiam
tudo e citavam leis e portarias. E aí? Acampamos ou não
acampamos? Muito papo, hipóteses, prós e contras,
grupo dividido. Havia uma estradinha que se embrenhava terra adentro.
O capim alto havia sido cortado no dia anterior e ainda tinha cheiro
de mato roçado. Andei uns 500 metros e não vi nada
nem ninguém. Sadao, com seu fantástico GPS e os mapas
do Tonico, descobriu que deveria haver uma casa de fazenda a 5 quilômetros
seguindo no rumo da estradinha.
Enquanto o pessoal espairecia, fui com o Paulo Pacu e o Sadao tentar
obter uma permissão a placa era assustadora e os jagunços
do dia anterior justificavam a caminhada no sol quente. Após
uma hora e meia chegamos num retiro (parte de uma fazenda)
e foi a mesma ladainha e humildade de sempre, recitadas para outro
pantaneiro de peito largo e que se simpatizou com nosso causo. Levou-nos
à sua casinha, onde tomamos água e café, e
nos convidou para almoçar, o que não aceitamos porque
ia demorar muito e o povo que ficara no rio curtindo a sombra podia
se preocupar com a demora os walkie-talkies, é claro,
só funcionavam num raio de 1.500 metros.
Bem, acampar não pode mesmo, o patrão vai chegar
daqui a três dias, por isso estivemos lá limpando a
área. Se vocês não deixarem sujeira, ninguém
vai saber. Era uma vasta propriedade de um industrial de São
Paulo uma margem era dele e a outra, da mencionada ambientalista.
A fazenda, enorme, era composta por vários retiros. Neste
em que estivemos, dois casais cuidam de 2 mil bois e 600 novilhas
nelores a sede da fazenda fica a 56 quilômetros (!)
desse retiro. Na volta vimos um lindo cervo-do-pantanal que nos
deixou chegar a uns 40 metros de distância e depois saiu saltando
graciosamente (era uma fêmea). Me disse o gentil pantaneiro
que quando foi limpar a área em que acampamos encontrou um
casal de onças namorando no local, mas de novo não
vimos nada, apenas o Tonico viu uma cobra e vimos umas cotias.
Dormimos duas noites no Touro Morto um alívio ficar
um dia sem montar e desmontar barracas. Jacarés grandes,
aos montes, e mansos, ou valentes, porque se podia chegar a um metro
dos maiores, que não davam a mínima para a canoa.
O banho de rio era eletrizante pelas mordidinhas dos sauás
e piavinhas ninguém tomou banho pelado, tendo em vista
experiências anteriores com piranhas no rio Cristalino, em
Tocantins. Nem um dia. Eta turminha pudica!
Fizemos uma pescaria de nove piranhas grandes e um pacu e assamos
na fogueira, mas só eu e o Edu comemos. Sadao só come
filé de peixe congelado, Tonico só come salaminho,
Paulo é herbívoro e o Álvaro ficou com medo
dos espinhos e disse que estava evitando afrodisíacos. Comi
cinco peixes na janta e um no café da manhã do dia
seguinte (meu farnel não era muito farto) os outros
quatro foram devorados pelo criador de avestruzes.
Muito pernilongo
mas eles atacam mais, isto é, entram em frenesi chupador
entre 17 e 19 horas. Todos foram para as barracas esperando a onda
de pernilongos passar, menos o Paulinho, que, com sua barraquinha
de escoteiro-mirim, tipo túnel, ficou de fora, fully dressed
e com um gorro e uma capa de chuva à prova das verrumas que
furavam roupas comuns. À noite ouvimos ruídos estranhos,
que atribuímos aos jacarés que nos paqueravam
por sorte o barranco era alto e íngreme.
Na primeira noite soube que o acampamento foi atacado por uma legião
de formigas assassinas. De minha barraca ouvi grande alvoroço,
mas não me abalei daqui não saio. Dia seguinte
vi que algumas barracas haviam mudado de lugar e todas rodeadas
por um anel de cinzas. Tive que ouvir muitas histórias sobre
as perigosas formigas-correição.
O
grupo Companhia de Canoagem e os belos exemplares da fauna e da
flora do Pantanal: "Aparecem bucheiras em profusão crescendo
sobre a vegetação ribeirinha, formando como que uma
cortina, com flores amarelas e muitas buchas"
De volta a Sampa
Amanheceu um dia esplendoroso no Touro Morto, com alvorada de aranquãs,
que pareciam nos seguir desde a primeira pousada e nos acordavam
antes de o sol raiar todos os dias, agora auxiliadas por um pica-pau
percussionista, que tamborilava ritmadamente num pau oco de perobão.
Descemos o Touro Morto, voltamos ao Aquidauana, entramos numa lagoa
coalhada de camalotes e alfaces-dágua, onde um gavião
belo fazia pose, chegamos ao Miranda, mais largo, menos interessante,
mais vento, mais pantanoso, uma luz que não dava para abrir
os olhos (meus óculos escuros esquecidos sobre o freezer
da pousada em Porto São Domingos imagino o que pensou
o funcionário ao encontrá-los ao lado de uma guimba
de charuto Paraguassu) e, após remar 50 quilômetros,
não havia onde parar, parecia um pantanal.
Quase por acaso, por não ser conspícuo, encontramos
um local na mata que nos havia sido indicado por um cara que pilotava
uma chalana vazia. Paramos sob uma grande figueira rodeada por bacuris,
onde tomamos um vinho Chapinha (Chapinha! Dos famosos vinhedos de
Jundiaí) que o muquifa do Paulo guardara zelosa e secretamente
no fundo de seu saco estanque por todo esse tempo. A cachaça
já havia acabado há uns dois dias e o vinho pareceu
um néctar dos deuses.
Até aqui o relato foi fidedigno e imparcial, mas daí
para diante a memória está enevoada e já não
agaranto nada. Só sei que chegamos na magnífica pousada
do Passo do Lontra, onde tomamos muita cerveja, contamos piadas
escabrosas, machistas e racistas e depois remamos 1.400
quilômetros até Barueri, com uma parada na pizzaria
de Ourinhos, onde a pizza é boa mas a cachaça não
vale nada (experimentamos todas que havia). Após muitas votações
e reversões de votos, os que perderam ganharam, dormimos
com os avestruzes e chegamos ao famoso galpão da Companhia
de Canoagem onde o portão estava trancado ,
ao final da Castelo Branco entupido, ao barulho e à fumaça
da nossa querida Sampa e ao mal cheiro das maracutaias do governo,
que ainda não sabíamos, sentindo coceira de carrapato...
e já pensando no rio Demene, na Amazônia, nossa próxima
aventura.
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