Os sobreviventes que passaram
pelo que eu passei ficam, em geral, afetados
psicologicamente. Escrever meu primeiro livro foi uma forma de exorcizar
todos os
pesadelos do passado, afirma Ben Abraham
Milagres existem e Ben Abraham é prova viva disso.
Inexplicável é a palavra exata para aplicar ao seu
caso de sobrevivência. Por várias vezes escapou do
fuzilamento e de doenças graves quando esteve confinado no
gueto de Lodz, na Polônia, e em alguns campos de concentração
na Alemanha de Hitler. Talvez os maus augúrios tenham sido
menores que sua vontade de viver. Ou talvez ele tenha sobrevivido
só para que pudesse cumprir a promessa que fez a Deus nos
momentos críticos passados durante a Segunda Guerra Mundial,
como acredita o próprio Abraham. Ver a derrota dos alemães
era seu maior desejo e contar à humanidade aquele capítulo
de perseguições, atrocidades e matanças
foi sua promessa, assumida como objetivo de vida em toda a sua trajetória
de jornalista e escritor.
Justamente por sua luta e preservação da memória
das vítimas do Holocausto, Abraham receberá nesta
quarta-feira, dia 24, a medalha de Honra do Mérito da USP,
outorgada a personalidades que se destacam por suas contribuições
para a democracia, a cultura, a educação e o desenvolvimento
humano. A cerimônia acontece a partir das 17 horas na sala
do Conselho Universitário (rua da Reitoria, 109).
Cada um dos prisioneiros que sobreviveram ao nazismo provavelmente
tem sua própria epopéia, uma sucessão
de acontecimentos de tirar o fôlego e causar lágrimas.
Talvez tenham tido também alguma estratégia muito
eficiente de sobrevivência. No caso de Abraham, as duas afirmativas
são verdadeiras e guardam alguns paralelos com A vida é
bela, do diretor italiano Roberto Benigni.
Além de ficar incessantemente planejando maneiras de arrumar
mais comida fora os caldos ralos e os pequenos pedaços de
pães que lhe cabiam, inventou uma tática que buscava
manter acesa a esperança de permanecer vivo para ver a derrota
dos alemães. Um mecanismo mental de datas imaginárias
que funciona mais ou menos como aquele das associações
de anônimos nas quais seus membros suportam determinada situação
apenas por mais um dia, mais uma hora, mais um minuto....
Projetava no futuro algumas datas fictícias em que
seria libertado e vivia com essa imaginação,
contou ao Jornal da USP. Em ...E o mundo silenciou, livro de 1972
da WG Editora e Comunicações e que está na
12a edição, Abraham menciona sua estratégia
de guerra num trecho em que narra a derrocada dos nazistas:
Chegou o primeiro de maio. O meu dia D estabelecido.
Não sei como havia conseguido agüentar até essa
data. Os alemães avisaram que íamos ser evacuados,
pois os aliados estavam avançando. Deveríamos nos
dirigir aos trens que estavam parados num desvio do campo. Eu, sentado
no chão e encostado na parede do alojamento, disse a Sperling
que não iria por não ter mais forças. Um Kapo,
já com uniforme de SS, avisou que os que ficassem seriam
fuzilados. Sperling ajudou-me a levantar. Agarrei-me a ele e fomos
andando em direção aos vagões. Estavam abarrotados
com prisioneiros. Havia aproximadamente 150 farrapos humanos em
cada um. Nosso vagão ficou tão cheio que não
havia lugar nem para sentar. Eu, por sorte, fiquei perto da porta,
onde um SS gordo estava de vigia. Quase a metade dos prisioneiros
morreu naquela mesma noite, sufocados pelos que ficavam por cima.
Estávamos na noite de 1º para dois de maio de 1945.
Ben
Abraham: exemplo de que é possível resistir ao pior
horror
Superação
No outono de 1939, aos 14 anos de idade, Abraham foi levado com
os pais para o gueto de Lodz, cidade polonesa onde nasceu. Fome,
tifo, pleurite e as constantes ameaças de fuzilamento e castigo
dos soldados nazistas não o impediram de viver. No gueto
fazia de tudo e foi onde começou a aperfeiçoar as
habilidades naturais de mecânico, talento que em diferentes
ocasiões e circunstâncias o ajudou a salvar a própria
vida, como conta em seu livro.
Depois de passar pelos campos de Auschwitz, Brauschweig, Watenstadt
e Ravensbruck, entre 1943 e 1945, o Presidente da Sherit Hapleitá
Associação de Sobreviventes do Holocausto e
vice-presidente da Associação Mundial de Sobreviventes
do Nazismo afirma que foi libertado na noite de 1o para 2 de maio
pesando 28 quilos, com tuberculose nos dois pulmões, escorbuto
e disenteria com sangue.
Depois de quase dois anos sendo transferido em hospitais americanos
pela Alemanha, nem mesmo os médicos sabiam explicar como
é que se recuperou sem que nenhuma seqüela tenha sobrado
de todas as doenças pelas quais passou, conta o jornalista.
Foi milagre. Naquela época nem existia cura para tuberculose,
diz.
O escritor acredita que a esperança caminhava ao seu lado
e por isso sobreviveu aos trabalhos forçados, cenas de violência
e humilhação e outros atos desumanos. No campo,
se alguém perdia a esperança, logo morria. Vi muitas
pessoas fisicamente melhores e mais preparadas, mais devotadas e
mais inteligentes e que, no entanto, morriam por ter perdido a esperança
de sobreviver, diz
...E o mundo silenciou, seu primeiro livro, não foi só
o início do cumprimento da promessa de conscientizar principalmente
as novas gerações sobre como um regime totalitário
e inescrupuloso pode conduzir o destino do mundo. Num relato
claro e objetivo, narrado como uma crônica cotidiana, a obra
serviu como catarse. Os sobreviventes que passaram pelo que
eu passei ficam, em geral, afetados psicologicamente. Entretanto,
escrever meu primeiro livro foi uma forma de exorcizar todos os
pesadelos do passado, afirma.
Abraham fará da cerimônia de entrega da Medalha de
Honra ao Mérito da USP mais uma oportunidade de exercer sua
promessa feita durante a Segunda Guerra. Distribuirá a todos
os presentes exemplares de seu livro. Esse gesto, junto às
centenas de palestras e debates e milhares de artigos, além
dos 15 livros que escreveu sobre o Holocausto, será mais
um esforço de manter viva a memória dos sobreviventes
e levar suas mensagens às novas gerações, acredita.
Um
judeu reza antes de ser sacrificado: dignidade, mesmo em meio à
barbárie
Brasileiro
Depois de dois anos se recuperando das atrocidades vividas durante
a Segunda Guerra, Abraham entrou em mais um conflito em que se saiu
vitorioso: a guerra de Independência do Estado de Israel,
em 1947.
Depois de tanta movimentação, chegou a hora de baixar
poeira e escolheu o Brasil para se estabelecer. Quando
eu era bem pequenino, ouvi a conversa de um tio, dizendo alguma
coisa boa sobre o Brasil. Guardei aquilo e decidi recomeçar
vida nova aqui. Encontrei um povo bondoso, diferente daquele que
conheci na Europa, diz.
Com bom humor e gozando saúde aos 81 anos de idade, Abraham
já se adaptou ao Brasil, onde chegou em 21 de janeiro de
1955, naturalizando-se em 1957. Adotei este país como
nova pátria, onde desconheci o preconceito e discriminação
contra qualquer pessoa por causa de sua procedência, religião
ou raça, afirma.
A trajetória de jornalista o levou a conhecer pessoalmente
o Nobel da Paz e ex-primeiro ministro de Israel Ytzhak Rabin. A
trajetória de vida lhe trouxe diversas honrarias, entre elas
a Chave de Ouro do Instituto Yad Vashem, sediado em Jerusalém
e considerado o Museu do Holocausto.
No Brasil, conheceu a esposa Mirian, com quem teve os filhos Jacques,
já falecido, e Edite. Com sua bondade, Mirian me proporcionou
a felicidade que gozo até agora, passados quase 50 anos do
nosso casamento.
|