Em
15 de janeiro de 1985, o Brasil se enfeitou de verde-amarelo e alegria
para festejar a vitória de Tancredo Neves. Foram 480 votos
contra 180 dados a Paulo Maluf. Era a certeza da democracia, depois
de 21 anos de ditadura. Congresso Nacional superlotado, assisti
à votação de pé, abraçado ao
escritor e cartunista Ziraldo, amigo de vida inteira, e ao saudoso
jornalista Zózimo Barroso do Amaral. Choramos de pura alegria,
coração acelerado, nó na garganta, voz embargada,
emoção ameaçando arrebentar o peito. Momento
mágico, luminoso pedaço de céu azul, verde,
branco e amarelo.
Com essa lembrança, Ronaldo Costa Couto economista,
escritor, ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência
da República no governo Sarney abre o seu artigo Rasteira
do destino para a Revista USP. Resgata a trajetória
política de Tancredo Neves até os momentos trágicos
da sua morte, em 21 de abril de 1985. Comoção
nacional. Vêm o reconhecimento e homenagem do povo. Dois milhões
de pessoas na despedida de São Paulo. Em Brasília,
um mar humano: 20 quilômetros molhados de lágrimas
entre a Base Aérea e o Palácio do Planalto.
De Tancredo Neves ao governo Lula, a Revista USP vai pontuando os
momentos mais importantes desses 20 anos de redemocratização.
Foi um longo caminho percorrido pelo povo brasileiro até
ela, passando pelos atalhos e vielas sombrios de uma ditadura militar
que não deixou saudades em ninguém, observa
o editor Francisco Costa. Pois bem, no que teria tudo para
ser um ano festivo pela conquista política, de uns tempos
para cá as coisas se tornaram um pesadelo alimentado diariamente,
semanalmente por jornais, revistas, rádios, TVs e blogs da
Internet.
O depoimento de Roberto Jefferson, a despedida de José Dirceu
da Casa Civil da Presidência, a posição do presidente
Lula e a tática do governo em insistir que há um clima
de golpismo no País. É nesse clima
que o Brasil chega ao vigésimo aniversário de sua
redemocratização, e o que se pode dizer é que
todas as pessoas de bem deste Brasil torcem para que o chamado tsulama
não escancare a porta do presidente e a democracia saia desse
lamentável episódio fortalecida e purificada,
afirma Costa. Isto posto, a revista comemora esse aniversário
com um conjunto de artigos de alto nível.
O editor explica que o dossiê é assinado por economistas,
sociólogos, escritores e jornalistas que participaram ativamente
da vida política do Brasil, como Jarbas Passarinho, Miguel
Reale Júnior, Oliveiros S. Ferreira, Alain Touraine, Daniel
Aarão Reis, Paulo Markun e José Sarney. Todos
têm o que dizer. E muito. Esse é um dossiê necessário,
num momento tristemente difícil, como a lembrar ansiosamente
que o nosso maior bem não pode, não deve sofrer qualquer
violação.
Longo
processo
Oliveiros S. Ferreira, professor do Departamento de Ciência
Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP, levanta uma questão curiosa: Antes
de escrever sobre os 20 anos da redemocratização,
caberia perguntar qual o critério que nos indica que esse
processo teve início com a eleição de Tancredo
Neves, em 1985. O ex-presidente Fernando Collor talvez tenha sido
o primeiro a pôr em dúvida a afirmação
de que o processo começou com a eleição de
Tancredo Neves e José Sarney. Para ele, o processo democrático
caracteriza-se pela eleição do presidente por voto
direto e secreto. Sendo assim, o processo começou em 1990
com sua eleição para a Presidência da República.
Ferreira afirma que o critério normalmente aceito de que
a democratização começou em 1985 parte do princípio
de que, com Tancredo, cessou o governo militar. Ora, se podemos
dizer que a data escolhida por Collor não é aquela
que se poderia dizer exata, o critério geralmente aceito
peca pela base: a redemocratização teve início
quando um civil sucedeu a um general. Deixando de lado a variação
das circunstâncias, poder-se-ia dizer, a ser verdadeiro sub
specie aeternitatis tal critério, que o governo do general
Eurico Gaspar Dutra não deu início ao processo de
redemocratização em 1946, porque um general sucedeu
a um civil. O professor defende que limitar o processo de
redemocratização à eleição de
Tancredo Neves é estreitar os critérios de análise
e reduzir a distinção entre ditadura e democracia
ao detalhe do uniforme ou costume civil.
Governo
Lula
Com muita clareza, Daniel Aarão Reis, professor de História
Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), analisa
a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder.
Lembra que Lula exerce um mandato que muitos julgavam uma utopia.
Poucos imaginavam que seria possível ao eterno perdedor
ascender. Um operário metalúrgico, de escassa instrução
formal, mas de grande inteligência e experiência, como
líder de notáveis lutas sociais e políticas,
tornara-se, afinal, depois de três derrotas consecutivas,
presidente do Brasil, um feito inédito nos anais da história
de nosso país e de todas as Américas ao sul do Rio
Grande.
Reis também faz uma retrospectiva das significativas metamorfoses
das últimas décadas. De Tancredo que virou Sarney,
passou-se ao príncipe que virou sapo, quando o Messias decantou-se
em bandido mentiroso Collor. Foi apeado do governo, porém
não através de um golpe, mas nos conformes democráticos.
E deu-se a surpresa: ao presidente comprometido com um programa
ultraliberal sucedeu um vice da mesma chapa, Itamar Franco, identificado
com um nacional-estatismo, paternal e benevolente, que parecia enterrado
no mundo mas que renasceu viçoso e belo nestas paragens,
com direito a broa de milho e reinvenção do Fusquinha
de duas portas. Fez de FHC, que namorara Collor, seu ministro da
Fazenda, um novo príncipe. Com o êxito do Plano Real,
FHC arrebatou a Presidência em campanhas memoráveis,
acumulando dois mandatos, ambos ganhos no primeiro turno.
Nesse rápido panorama, o historiador traça aspectos
essenciais do regime democrático, como a imprevisibilidade
do jogo e a alternância do poder, respeitados os resultados
das eleições realizadas com regularidade numa atmosfera
de liberdade de organização partidária e sindical.
Na avaliação de Reis, os tempos atuais pertencem às
esquerdas moderadas. Apontam nesse sentido também os
limites internacionais e as tendências predominantes em nossa
sociedade. Tempos de reformismo conservador. A ver se os que chegaram
lá aproveitam o seu momento histórico. Mais tarde,
se perderem o controle dos acontecimentos, que não responsabilizem
as circunstâncias ou os inimigos. Mas, neste momento, as cartas
são eles que as dão.
|