O jornalista não deve temer chegar ao fundo do
poço na busca dos fatos, da verdade. É preciso encarar
todos os sacrifícios que essa verdade impõe. Não
é lá muito fácil. Mas, se não for assim,
é melhor procurar outra profissão.
As palavras não foram exatamente essas, mas o teor da conversa,
sim. Inesquecível para o estudante de Jornalismo da Escola
de Comunicações e Artes (ECA) da USP, lá no
mais longínquo dos anos, 1975. A voz convicta do professor,
aliás, não deixa transparecer qualquer rancor. Ao
contrário. Não quer impor nada a nenhum dos presentes.
Fala naturalmente ao destacar a seriedade que a profissão,
esta sim, exige, ainda mais se considerarmos a áspera realidade
que o País vive.
Um grupo de alunos ameaça reclamar. Todos enfatiza
o professor , todos estão convocados a trocar um provável
fim de semana ensolarado pela presença obrigatória
no campus da USP. A idéia é fazer um raio x
dos problemas que a Cidade Universitária apresenta em termos
de infra-estrutura e planejamento urbano. Alguém lembra:
os estudantes ainda não viram publicada sequer uma linha
dos trabalhos que realizaram ao longo de quase três anos de
curso. Dá para imaginar que toda essa correria
será em vão. A disciplina é Telejornalismo
e não há equipamentos, sequer uma câmera, para
a realização de tamanho projeto ou de qualquer outra
cobertura que fosse a inauguração de três
preciosos espelhos dágua artificiais em
frente à ECA, por exemplo.
O professor responde que trabalharão com máquinas
fotográficas e posteriormente será montado um documentário
audiovisual. O que importa mesmo, ressalta, são o conteúdo,
as reportagens, o serviço que prestarão àquela
comunidade e seus arredores. Não há formalismos, nem
pose de dono da verdade. Apenas deixa bem nítido
que ele não está ali só de passagem. Traz um
aspecto cansado de quem trabalhou madrugada adentro é
diretor de Jornalismo da TV Cultura. Os alunos se convencem quando
ele encerra o assunto repetindo o alerta: Se não for
assim, é melhor procurar outra profissão.Semanas
depois, no espetáculo Brasileiro: profissão esperança,
os atores em cena Paulo Gracindo e a cantora Clara Nunes
mostram-se emocionalmente abalados, desconcertados. Há
uma atmosfera de tristeza e indignação. Talvez as
personagens de Vianinha (Oduvaldo Viana Filho) pedissem esse desassombro.
Fim da sessão, aplausos. E as cortinas se fecham. Os aplausos
continuam. Os atores reaparecem. Clara não contém
as lágrimas. Gracindo dá a notícia: sábado,
25 de outubro de 1975, o jornalista e professor Vladimir Herzog
morreu tragicamente nas dependências do DOI-Codi de São
Paulo. É preciso encarar todos os sacrifícios,
alguém pensa na platéia. Entende-se agora a tristeza
e a indignação.
E a história deste país começa a mudar. São
os tempos da repressão. O governo Médici fez escola.
E mesmo o general presidente Ernesto Geisel encontra sérias
dificuldades para conter abusos em São Paulo.
Organismos militares e paramilitares agem descontroladamente em
nome do que entendem segurança nacional.
Golpe
no golpe
Em setembro deste ano, o presidente do Sindicato dos Jornalistas
do Estado de São Paulo na época da morte de Vlado,
Audálio Dantas, participou da 4a Semana de Jornalismo
Herzog, 30 Anos Depois, promovida pela Faculdade de Jornalismo e
Relações Públicas da Universidade Metodista
de São Paulo. No encontro, ele lembrou que havia uma cisão
entre os próprios militares. O grupo liderado por Geisel,
que tinha como mentor intelectual o chefe da Casa Civil, general
Golbery do Couto e Silva, queria devolver o governo aos civis e
deu início a um processo de abertura democrática,
convenientemente definida como lenta, total e gradativa.
Em contraponto, militares ultraconservadores, liderados pelo general
Sílvio Frota e pelo general Ednardo DÁvila Mello,
comandante do 2o Exército de São Paulo, não
se dispunham a abrir mão do poder. Havia uma disputa,
uma luta entre essas duas correntes. Ou seja, um movimento subterrâneo
que a gente pode considerar um golpe dentro do golpe. Estabeleceu-se
uma guerra dentro do próprio sistema. E a sociedade ficou
no meio dessa guerra. Houve uma onda de prisões arbitrárias
que atingiu vários setores da sociedade. E, no início
de outubro de 1975, atingiu os jornalistas, que eram tidos como
pertencentes ao Partido Comunista Brasileiro e estariam tentando
reorganizar o Partidão, então na clandestinidade.
Foram 11 jornalistas presos até que Herzog se apresentasse
na manhã daquele sábado. Ele foi o décimo segundo,
disse Audálio Dantas.
A morte de Vlado foi a primeira arbitrariedade a escapulir da ação
dos censores e dos cães de guarda do que chamavam ordem
pública. Foi a primeira notícia a passar
ao brasileiro médio de que o País estava subjugado
à nefasta ditadura. Apesar do famigerado milagre econômico.
Apesar da aparente tranqüilidade. Apesar da propaganda massificadora
sob o lema facistóide Brasil, ame-o ou deixe-o.
Ruptura
Apesar de tudo, havia muito a ser feito. Especialmente para quem
exercia a função de jornalista, no entender do diretor
de Redação da revista Carta Capital, Mino Carta, também
presente na 4a Semana de Jornalismo da Metodista. Tive um
grande envolvimento com esse episódio. Entendi ali que o
País precisava de um jornalista e não apenas de um
profissional de imprensa, afirmou. No livro Castelo de âmbar,
Carta escreve na pele de seu alter ego Percúcio Parla: A
morte de Vladimir Herzog é o ponto de ruptura. Mino sabe
que a sua concepção de jornalismo já não
se justifica à sombra da arvorezinha, símbolo da Abril,
e o impele na direção de outras experiências.
No encontro na Metodista, o diretor de Redação da
Carta Capital retomou o tema e acrescentou: Naquele momento,
apesar de tudo, apesar dos riscos, sentíamos uma grande esperança.
Acho que a morte do Herzog é um ponto de partida muito importante.
As contradições da ditadura começaram efetivamente
a se definir e a se revelar.
Os dias que se seguiram foram de muita movimentação.
E apreensão. Políticos do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), jornalistas, líderes sindicais e religiosos,
representantes de entidades e estudantes preparam um culto ecumênico
na Catedral da Sé. O arcebispo de São Paulo, Dom Paulo
Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright,
da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (Ipub), recebem ameaças
e recomendações para os riscos da manifestação.
Não se intimidam e seguem com o projeto. No dia da cerimônia
sexta-feira, dia 31 , a cidade amanheceu tomada por
comandos que, espalhados em pontos estratégicos, interceptam
a quem bem entendem. Querem dificultar o acesso de quem planeja
chegar ao ato. Mesmo assim, 8 mil pessoas lotam a catedral e os
arredores da Praça da Sé para reverenciar a memória
de Vlado.
Diz Audálio Dantas, um dos articuladores do culto e da corajosa
posição dos jornalistas naqueles dias: Acho
importante que se situe aquele momento. O culto ecumênico
e todas as repercussões da morte de Herzog mostraram que
não aceitávamos a versão do suicídio.
Houve um crescimento do movimento, a partir do Sindicato dos Jornalistas
e dos estudantes. E o culto, com a presença do cardeal arcebispo
de Pernambuco, Dom Hélder Câmara, representou o principal
momento em que a sociedade, por intermédio de várias
organizações, despertou para uma situação
que não podia continuar. Foi a gota dágua, o
ponto de partida para um processo que, daí para frente, cresceu
no sentido de denunciar as violências que eram cometidas pela
ditadura. E que eram inadmissíveis.
No documentário Catedral. Um silêncio em memória
a Herzog, exibido pela TV Senac em 25 de outubro deste ano, o arcebispo
de São Paulo em 1975, Dom Paulo Evaristo Arns, lembrou suas
palavras no culto. E o silêncio que se seguiu após
serem proferidas. Ninguém toca impunemente no homem
que nasceu no coração de Deus, disse. Nas
minhas dores, ó, Senhor, fica ao meu lado, responderam
os presentes.
O culto ecumênico realizado em 31 de outubro
de 1975: indignação
Começo
do fim
Silêncio mais absoluto e representativo fez-se quando foi
anunciada a presença de Dom Hélder, que, por sua posição
em defesa dos oprimidos e da democracia, estava proibido pelos militares
de fazer qualquer pronunciamento público mesmo que
fosse um sermão dominical. Naquela sexta-feira, em pleno
altar, Dom Hélder confidenciou ao ouvido de Dom Paulo: Hoje
o chão da ditadura começou a tremer. É o começo
do fim. À saída da catedral, os repórteres
perguntavam o que Dom Hélder tinha a dizer: Senhores,
há momentos em que o silêncio fala mais alto.
À revista Aventuras na história, de outubro de 2005,
o jornalista e historiador Elio Gaspari, autor do livro A ditadura
encurralada, que narra esse período, ressaltou: A ditadura,
com sua tigrada e seu aparato policial, revelara-se
um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a própria
reafirmação.
No livro, ele dá mais detalhes: À noite (de
segunda, dia 27), a sede do Sindicato dos Jornalistas está
repleta. Audálio Dantas preservava a todo custo sua conduta
legalista. Evitava complicações chamando a assembléia
de reunião de informação. Mantinha
os comunicados em linguagem seca, sem adjetivos. Não dava
seguimento às sugestões de passeatas, nem ouvidos
aos estudantes. Até que aconteceu o inevitável: um
jornalista propôs que o sindicato convocasse a população
para um ato religioso pela memória de Herzog. A cerimônia
foi marcada para sexta-feira. Não se sabia onde, mas na manhã
seguinte o cardeal Arns tomou a iniciativa. Ofereceu a catedral
da Sé e informou que lá estaria.
Outubro de 2005. A colunista da Folha de S. Paulo Mônica Bergamo
abre sua coluna do dia 2, domingo, com uma entrevista com o ex-governador
de São Paulo Paulo Egydio Martins. Na verdade, é uma
não-entrevista. Ele se mostra irredutível em seu silêncio
sobre Vlado: Dei umas mil entrevistas sobre o Vlado. Primeiro
foi uma entrevista longa para o Paulo Markun (autor do livro Vlado).
Então falei para todo mundo. É uma repetição
enfadonha. Eu não vou passar mais 30 anos falando do Vlado.
E acrescenta: Parece um problema classista. Os jornalistas
querem fazer um mártir. Vlado é de fato um mártir.
Mas e o Manuel Fiel Filho? Por que não me entrevistam sobre
ele?. Diante da insistência da entrevistadora, faz um
desabafo: Eu falei duas horas para a TV Globo e só
colocaram 30 segundos no ar. Sempre conversei de maneira absolutamente
aberta e transparente com os jornalistas. Mas, confesso, está
na hora de mudarmos de assunto.
Desconforto Importante conscientizar as gerações
do futuro para nunca mais se omitir diante das injustiças.
Essa declaração é do rabino Henri Sobel, feita
ao documentário A presença de Herzog, exibido no dia
5 de novembro pela TV Cultura. Um contraste à postura intransigente
do ex-governador. Cabe, porém, uma ressalva. Paulo Egydio
foi governador de São Paulo por indicação do
presidente Ernesto Geisel e seu nome andou na lista dos procurados
pela ala dos militares radicais que mataram Herzog. Portanto, é
compreensível o desconforto.
Paulo Egydio era o alvo. A estratégia da tigrada
era emperrar o processo de abertura democrática, defendido
por Geisel, Golbery e pares de caserna. Para isso, imaginavam mostrar
a fragilidade do presidente Ernesto Geisel em conter o chamado avanço
comunista. Queriam tachar o governador Paulo Egydio de, no
mínimo, estar acobertando uma horda de vermelhinhos
nas dependências da TV Cultura. A prisão de Herzog
era o primeiro passo nesse sentido, disse o jornalista George
Duque Estrada, também presente na 4a Semana de Jornalismo
da Metodista.
Por meio de Herzog, chegariam ao secretário estadual da Cultura,
o empresário e bibliófilo José Mindlin, e assim,
através deste, emparedariam Egydio e conseqüentemente
o presidente Ernesto Geisel. Na noite do sábado em
que morreu Herzog, por coincidência, havia festa na casa do
ministro do Exército, Sílvio Frota. Durante o jantar,
fizeram um brinde ao futuro presidente da República.
Não era o primeiro, conta Gaspari em A ditadura encurralada.
Frota era um dos interessados no recrudescimento do regime
e uma pedra no caminho da redemocratização.
Apesar de reconhecer as razões do ex-governador para não
falar no assunto, as palavras do rabino Sobel fazem mais sentido.
As novas gerações precisam conhecer esse fato que,
queiramos ou não, mudou a cara do País.
Jornalismo
O 25 de outubro merece mesmo reflexão e até
uma avaliação do que se andou fazendo nos últimos
30 anos. Especialmente no âmbito do jornalismo, as discussões
parecem hoje intermináveis. Uma boa referência desse
desenvolvimento está no livro O jornalismo dos anos 90, de
Luís Nassif, outro estudante da ECA nos anos 70. Dos
anos 50 a meados dos anos 60, o jornalismo foi refém dos
partidos políticos. De meados dos anos 60 ao final dos anos
70, refém da ditadura. Nos anos 80 descobriu sua verdadeira
vocação em uma sociedade de mercado moderna: ser representante
dos interesses difusos da sociedade contra interesses políticos,
corporativos e setoriais, escreve Nassif. O passo seguinte
foi se ver como um produto, que tem que responder às expectativas
do seu público. A mídia passou a recorrer a departamentos
de pesquisa, a leituras imediatistas do que as pesquisas mostravam,
a tentar atender às demandas de curto prazo do leitor. E
aí se tornou refém do pior censor: ditadura da opinião
pública ou, melhor, de atuar passivamente oferecendo ao leitor
aquilo que pensa que ele quer. Esse é o grande dilema da
imprensa de opinião do século 21: atender às
expectativas imediatas de seu leitor ou ser uma guardiã dos
valores da civilização.
Por tudo o que representou, o caso Vladimir Herzog é emblemático
para a história recente do País. Para a história
do jornalismo, porém, diria que é um marco e ainda
hoje joga luz sobre uma série de questões que permanecem
em foco. A saber:
1) Nos últimos 30 anos, foi um dos raros momentos em que
o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo desempenhou
papel de liderança e aglutinador do interesse de toda a categoria.
Sua atuação, comandada por Audálio Dantas,
foi vital para a projeção e divulgação
da barbárie junto à opinião pública.
2) É fato que a pressão feita da base (a redação)
para a direção dos jornais foi importante para a divulgação
da verdade Herzog morreu assassinado pelos torturadores.
3) Os patrões aproveitaram-se dessa brecha para
negociar, com o então ministro da Justiça, Armando
Falcão, soluções que mais lhes aprouvessem.
Numa dessas ocasiões, a família Civita, proprietária
da Editora Abril, negociou o fim da censura na revista Veja com
a demissão do diretor de Redação Mino Carta,
segundo relata o jornalista em Castelo de âmbar.
4) Mesmo assim, foi outro raro momento em que empresários
dos meios de comunicação e profissionais de imprensa
estiveram do mesmo lado, com um inimigo comum: a ditadura.
5) A lembrança e discussão do caso Herzog trazem à
tona uma realidade distante das novas gerações. Essa
tônica trata das implicações sociais e transformadoras
que acarreta o exercício da profissão.
6) Hoje o glamour de ser jornalista está em alta muito
provavelmente, a partir da notoriedade que a televisão consagra
a quem apareça na telinha.
7) Talvez por isso os profissionais de imprensa estão mais
preocupados com a ascensão social e financeira nenhum
demérito nisso, aliás do que propriamente com
exercer as funções crítica e fiscalizadora
que todo e qualquer jornalista deve exercer.
Por isso, a importância de lembrar Herzog.
Também é importante lembrar Vlado nestes dias em que
o Brasil vive mais uma de suas crises políticas e institucionais.
Política, sim, porque a esperança deu lugar ao medo,
perdendo-se em Valdomiros, mensalões, Dirceus, Correios,
Valérios e assemelhados. Institucional, sim: a pecha da corrupção
paira sobre os três Poderes e sobre os homens públicos.
Importante lembrar Vlado porque muitos já se esqueceram das
excrescências que todo regime arbitrário perpetra onde
se instala. Também porque nunca é demais reafirmar
os valores democráticos e universais. Importante lembrar
Vlado para que possamos reiterar a fé neste país e
na sua gente.
Salvação
da pátria
No dia 1º de abril 1964, o jornalista e escritor Carlos Heitor
Cony convalescia de uma intervenção de apendicite
em sua casa no Posto Seis, Rio de Janeiro, quando foi convocado
pelo poeta Carlos Drummond de Andrade a assistir às
confusas operações que se processavam no Forte de
Copacabana.
No dia seguinte, o jornal Correio da Manhã saía às
ruas com a crônica Da salvação da pátria,
a primeira de uma série que Cony escreveria sobre sua estupefação
diante da nova ordem social, e que seriam reunidas no livro O ato
e o fato. A crônica termina assim:
Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios
e alvacentos lençóis, em sinal de vitória.
Um Cadillac pára perto do Six e surge uma bandeira
nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos
que a pátria está salva.
Minha filha, ao meu lado, exige uma explicação para
aquilo tudo.
É carnaval, papai?
Não.
É campeonato do mundo?
Também não.
Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me
ao sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia.
Onze anos depois, Herzog não suportou o gosto amargo.
E pagou com a vida. E o Brasil nunca mais foi o mesmo. No dizer
de Frei Beto: Furaram os olhos da Justiça, mas não
lhe ensurdeceram nem lhe apagaram a memória. Trinta anos
depois, Vladimir Herzog é um cadáver insepulto, subversivo,
paradigmático. Tratado como um verme numa dependência
policial-militar, figura para sempre na galeria de heróis
e mártires brasileiros.
|