Moradores de rua: a academia pode
ajudá-los a recuperar sua dignidade
Uma história de mais de dez anos de reflexão
e dedicada pesquisa de campo está por trás do curso
Moradores de rua na cidade de São Paulo: novos olhares,
novas possibilidades, que teve início no dia 2 de dezembro,
na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. O objetivo
do curso é discutir com profissionais da saúde, assistência
social e pesquisadores do tema formas de ação para
a transformação das pessoas em situação
de rua, aplicando uma metodologia desenvolvida a partir de trabalho
de pós-doutorado da psicóloga Aparecida Magali de
Souza Alvarez.
Acompanhando de perto grupos de moradores de rua há mais
de dez anos, Aparecida fez uma profunda observação
da resiliência dessas populações conceito
que remete à capacidade humana de fazer frente às
adversidades, superá-las e sair delas fortalecido ou inclusive
transformado.Aparecida concluiu que os moradores de rua são
extremamente resilientes, mas precisam se apoiar em algo para saírem
por si próprios da situação de rua. Viver nas
ruas, segundo a pesquisadora, pode ser um fato circunstancial
a pessoa muitas vezes é levada a essa situação
por ter vivenciado uma quebra no rumo de sua vida. Mas pode
retomar o rumo se encontrar um ponto fixo que funcione como apoio.
As noções de ponto fixo e resiliência
são alguns dos conceitos desenvolvidos pela pesquisadora
em sua longa trajetória de estudos sobre o tema. Dominar
esses conceitos é fundamental para que esses profissionais
efetivamente provoquem a transformação nas vidas dos
moradores de rua, diz.
Numa noite gelada do inverno de 1993, Aparecida, que era pesquisadora
do Centro de Estudos do Crescimento e Desenvolvimento Humano (CDH),
envolveu-se pela primeira vez com um grupo que distribuía
sopa aos moradores de rua do centro de São Paulo. Ali conheceu
um grupo de cerca de dez adultos e crianças, que começou
a acompanhar de perto. A pesquisa resultaria em sua dissertação
de mestrado pela FSP.
Acompanhando o grupo até 1998, Aparecida aprofundou o conceito
de resiliência. Aquelas pessoas não sucumbiram,
mesmo vivendo em situação de extrema adversidade,
com altíssimo nível de stress e toda ordem de dificuldades.
Várias saíram de uma situação de usuárias
de drogas ou álcool, desenvolvendo um sentido em suas vidas.
Mas um ponto chamava a atenção da pesquisadora: ninguém
era resiliente sozinho. A resiliência, segundo Aparecida,
pede parcerias, empatia, encontros. Ela fala de amor. É
uma dança bem-sucedida na música da vida. Faço
a metáfora com a dança, porque lembra o movimento
da vida e a mobilidade do morador de rua é inacreditável.
Na rua, a vida é dinâmica em toda sua complexidade.
Encontro
transformador
Quando terminou o mestrado, Aparecida viu o grupo se dissolver,
coincidentemente. Mas no mesmo local uma pequena praça
no Centro outros moradores se instalaram. Estes estavam
numa situação ainda mais difícil. A maioria
era de egressos da penitenciária. Estudei esse novo grupo
por cinco anos.
Com a nova pesquisa, Aparecida aprofundou a questão do encontro
transformador, que se dá principalmente em virtude
de uma espécie de amor incondicional manifestado por certas
pessoas. Vi isso acontecer com esse segundo grupo. Uma professora
que trabalhava para uma instituição religiosa do Centro
como alfabetizadora de moradores de rua manifestava essas características
do amor ao próximo com uma total ausência de cálculo,
sem esperar recompensa de nenhum tipo.
Entre as histórias de transformação que presenciou,
Aparecida destaca a de Soviético, um morador de rua que,
analfabeto, passara 20 anos na penitenciária do Carandiru.
Ele dizia ter cometido todo tipo de crimes pesados, menos
estupro e seqüestro. Acompanhei sua transformação
psíquica e emocional em contato com sua professora.
Terminado o doutorado pela FSP, apoiado pela Fapesp, a pesquisadora
teve ajuda da agência de fomento e da FSP para seu pós-doutorado,
em andamento, tendo em vista viabilizar um projeto de desenvolvimento
de estratégias para a psicossocioformação de
pessoas ligadas à questão do morador de rua. Toda
a teoria concebida durante os estudos foi usada nesse projeto. Mas
eu não queria que ele fosse um curso que despejasse a teoria
de cima para baixo isso não funciona. Pretendia agir
na vivência. Por isso a professora construiu o que chama
de contos de encontros transformadores.
São histórias curtas recortes da realidade
que mostravam as pessoas se transformando no contato com
o outro, como o caso do ex-presidiário Soviético.
O projeto consistiu em sete reuniões com grupos de moradores
de rua, técnicos da Prefeitura, assistentes sociais, psicólogos,
cientistas e trabalhadores de albergues e casas de apoio a moradores
de rua. Todos se uniram numa fertilização
cruzada de saberes. Foram sete meses tão ricos que
resolvemos criar o curso de difusão, explica.
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