O menino Erico tinha seus 14 anos quando, certa noite,
foi chamado aos fundos da farmácia do pai, onde funcionava
uma espécie de clínica. Um pobre-diabo havia sido
carneado por soldados da Polícia Municipal, e
Erico foi convocado para segurar uma lâmpada elétrica
enquanto o cirurgião tentava remediar os gravíssimos
ferimentos do rapaz. O ferimento mais horrível de todos
era o talho, provavelmente de navalha, que rasgara uma das faces
do caboclo duma comissura dos lábios até à
orelha. (...) Seus olhos conservavam-se abertos e de sua boca não
saía o menor gemido, contou, muitos anos depois, o
já consagrado escritor Erico Verissimo no primeiro volume
de seu livro de memórias, Solo de clarineta. Apesar
do horror e da náusea, continuei firme onde estava, talvez
pensando assim: se esse caboclo pode agüentar tudo isso sem
gemer, por que não hei de poder ficar segurando esta lâmpada
para ajudar o doutor a costurar esses talhos e salvar essa vida?
Por incrível que pareça, o homem sobreviveu.
O episódio marcou o jovem e levou-o a elaborar uma imagem
que o guiaria em sua futura carreira de escritor. Desde que,
adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje
a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época
de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender
a sua lâmpada, fazer luz obre a realidade de seu mundo, evitando
que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões,
aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito
da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada
elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último
caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de
que não desertamos nosso posto.
A cem anos de seu nascimento em Cruz Alta, interior do Rio Grande
do Sul, e 30 de sua morte, ocorrida em novembro de 1975 em Porto
Alegre cidade que adotou , a lâmpada de Erico
Verissimo segue acesa na busca por novas gerações
de leitores. Calcula-se que seus livros, muitos traduzidos para
diversos idiomas, já tenham vendido cerca de 5 milhões
de exemplares no mundo todo. Uma pesquisa feita por um professor
alemão no início dos anos 70 constatou que O continente
primeira parte da trilogia O tempo e o vento, sua obra mais
importante, iniciada em 1949 e só concluída em 1962
foi o livro latino-americano mais vendido na Alemanha de
1945 até então, alcançando 320 mil exemplares.
Erico continua sendo reconhecido como um grande escritor,
talvez mais agora do que em vida, diz o também escritor
gaúcho Moacyr Scliar, que tem uma rica história pessoal
a contar sobre o autor de O tempo e o vento.
o
pequeno escritório onde o escritor trabalhava, no subsolo
de sua residência
Do
contra
Pela primeira vez a obra de Verissimo está sendo relançada
por uma editora paulista, a Companhia das Letras. Erico sempre publicou
pela Editora Globo de Porto Alegre, onde trabalhou por muitos anos.
A casa marcou época por traduzir obras de grandes autores
até então inéditas no Brasil, como Aldous Huxley,
Thomas Mann e Virginia Woolf. Mais tarde, seu acervo passou a sair
com a chancela da Globo carioca, pertencente ao grupo de Roberto
Marinho, que incorporou a editora gaúcha.
O mote dessa coleção é ser do contra,
explica Flávio Wolf de Aguiar, professor de Literatura da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, que coordena o relançamento ao lado da professora
Maria da Glória Bordini, do Acervo Literário Erico
Verissimo, em Porto Alegre. É contra o julgamento de
que Erico tem interesse apenas local ou regional e contra o preconceito
de que é um escritor anacrônico. Erico é um
escritor brasileiro que produziu literatura que fala ao leitor do
século 21, defende.
A professora Regina Zilberman, da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), não deixa
por menos. Qualquer lista dos dez principais romances brasileiros
na qual não constar O tempo e o vento simplesmente não
presta, afirmou numa recente entrevista à imprensa
gaúcha. Os livros da nova coleção trazem vasto
material de apoio, como prefácios, estudos críticos
e uma até então inédita cronologia que compara
a vida e obra do escritor com os eventos relacionados aos personagens
de seus romances.
Flávio Aguiar coordenou no final de novembro o seminário
Erico Verissimo Centenário de nascimento, realizado
no Memorial da América Latina, em São Paulo. No evento
foi aberta uma exposição com painéis, fotos
e primeiras edições dos livros de Erico. A mostra
permanece no local até o dia 17 de dezembro, data de nascimento
do escritor. No seminário realizado no Memorial, Alfredo
Bosi, também professor de Literatura da FFLCH, salientou
três dimensões presentes no trabalho do escritor: em
primeiro plano a regional, que se projetou para a dimensão
nacional. Erico, cavando no próprio poço, trouxe
a Província de São Pedro (antigo nome do território
gaúcho) ao cenário brasileiro, mostrando os rio-grandenses
ao mesmo tempo como diferentes e irmãos, apontou. Numa
terceira vertente, considera Bosi, Verissimo buscou o universo latino-americano
e, nessa direção, precedeu a voga do romance
moderno na América Latina dos anos 60, do qual são
os principais representantes Os rios profundos, do peruano José
Maria Arguedas, Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, e Cem
anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez.
O próprio García Márquez, aliás, já
declarou em entrevistas que O continente, ao lado da Bíblia
e das histórias das Mil e uma noites, inspirou-o na concepção
de seu romance mais famoso. Erico ajudou a criar o conceito
presente de América Latina, porque ela não incluía
o Brasil, diz Flávio Aguiar. Ele e Jorge Amado
foram os primeiros escritores brasileiros a sistematicamente visitar
praticamente todos os países latino-americanos. Muitos
desses caminhos Verissimo trilhou nos anos 50, quando substituiu
Alceu Amoroso Lima no cargo de diretor do Departamento de Assuntos
Culturais da União Pan-Americana, em Washington, nos Estados
Unidos.
Duas
farmácias
Nascido numa cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul, Erico
Verissimo conheceu em sua infância e adolescência uma
vasta gama de tipos humanos, que aproveitaria posteriormente em
sua obra. Para simplificar a explicação
de seu temperamento, Erico diria que herdou da mãe, Abegahy
a dona Bega , características como
sobriedade, senso de responsabilidade e devoção ao
trabalho, à ordem e à normalidade, dentro duma cidadela
freqüentemente assaltada pelos bandos guerrilheiros
que compunham o caráter do pai, Sebastião: sensualidade,
auto-indulgência, inclinação para o ócio
e para uma espécie de hedonismo irresponsável.
Mulherengo, boêmio, incapaz de dizer não aos amigos
e de controlar os gastos, Sebastião viu falir a farmácia
que possuía e na qual a roda de chimarrão do final
de tarde atraía uma variada fauna de desocupados e fanfarrões.
Os clientes compravam fiado e jamais pagavam, detalhe ao qual Sebastião
dava pouca importância. A situação cada vez
pior da família fez com que Erico tivesse que abandonar o
ginásio, que cursava num internato de orientação
protestante em Porto Alegre, para trabalhar em Cruz Alta. Pouco
tempo depois, a mãe se separaria e levaria de casa os filhos
o que, numa cidade pequena e provinciana, em plena década
de 20, era um ato, no mínimo, de grande coragem moral,
como escreveu o próprio Erico.
Como o pai, o filho também foi sócio de uma farmácia,
que igualmente faliu. Erico já trabalhara como balconista
num armazém e como escriturário num banco. Mesmo atrás
dos balcões, sempre encontrava tempo para ler e escrever,
e em 1930 publicou seu primeiro conto na Revista do Globo, de Porto
Alegre. Decidido a ser escritor, mudou-se para a capital naquele
ano, onde passou a trabalhar na mesma revista, caminho da nascente
Editora Globo, de Henrique Bertaso. Seu primeiro livro, Fantoches
uma reunião de contos , foi publicado em 1932.
Seus primeiros romances foram escritos em tardes de sábado
e nas aparas do tempo do trabalho na revista, na editora
e nas páginas dominicais de dois jornais de Porto Alegre.
Erico tinha uma autocrítica cruel em relação
a esses romances, como Clarissa (1933) e Olhai os lírios
do campo (1938), que achava excessivamente líricos e ingênuos.
Entretanto, foi com eles que alcançou grande sucesso popular,
o que lhe permitiria viver da literatura e a ela dedicar-se exclusivamente.
Havia, nesses primeiros livros, algo de aproveitável
e eu quero crer que foi a capacidade do autor de contagiar o leitor
com o seu amor à vida, com a sua boa vontade para com os
outros homens, disse numa entrevista. A partir de O
resto é silêncio (1942) dei a meus livros melhor construção,
estilo e substância.
A casa e o pai
A busca da casa e do pai perdidos é uma constante na vida
de Erico. Em 1930 Sebastião Verissimo deixara Cruz Alta e
se mudara para São Paulo. A despedida na estação
de trem foi a última vez em que Erico viu o pai. Em 1935,
mesmo ano em que nasceu sua filha Clarissa, Erico recebeu a notícia
da morte de Sebastião, sozinho e na miséria
em São Paulo. Isso me doeu, dando-me um sentimento
de culpa que eu repelia com o intelecto, mas sentia intensamente
com o corpo inteiro, escreveria mais tarde. A casa, ele encontraria
em Porto Alegre, em 1941 é a mesma em que ainda vivem
o filho Luis Fernando e sua família e onde até sua
morte, em 2003, morou a companheira de toda a vida de Erico, Mafalda.
Com o pai, de certa forma Erico reconciliou-se na ficção,
quando, ao final de O arquipélago terceira parte de
O tempo e o vento , o personagem Floriano Cambará,
escritor, faz uma espécie de acerto de contas
com o pai, que na história morreria pouco depois.
O ineditismo da trilogia é justamente esse, de ser
um épico antiépico, uma odisséia autocrítica,
um mito desmitificador. O terceiro volume reflete sobre o primeiro,
no que no fim é uma reflexão sobre o heróico
e suas mentiras e as falsidades da história, disse,
numa entrevista recente, o escritor Luis Fernando Verissimo. Na
sua forma e na sua invenção, essa é a obra
mais moderna do autor. Ele fez um romance histórico
como nunca se fez outro no Brasil e como não existem outros
no mundo, que eu saiba. Para aqueles que conheceram os Verissimos
escritores, pai e filho, é o silêncio sólido
da introspecção a marca mais forte a uni-los em personalidade.
Erico Verissimo é um homem que fez da mansidão
de convívio a expressão do seu amor à vida,
definiu Fernando Sabino num documentário que produziu nos
anos 70.
Liberdade
Para o professor Luís Augusto Fischer, do Instituto de Letras
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a obra de Verissimo
está sendo mais valorizada agora em parte por estar
sendo editada por uma editora paulista, o que sempre é um
diferencial no mercado brasileiro, mas em parte também porque,
passadas algumas das ilusões vanguardistas do século
20, os valores mais estáveis da narração tradicional
(contar uma boa história, discutir os valores do mundo, oferecer
trajetórias de personagens exemplares) voltam a ter lugar
junto ao leitor médio. O próprio Erico repetia
em seus textos e entrevistas que era apenas um contador de histórias,
e não um escritor preocupado com grandes inovações
estilísticas.
É um valor alto em seus romances a naturalidade de
sua prosa, que me parece uma conquista importante que a geração
dele compartilhou, diz Fischer. Certamente O continente
é a melhor coisa que ele escreveu, um tanto pelo tom épico
que ele consegue imprimir ao relato, mas também pelo arranjo
narrativo, que é moderno para a época, e moderno segundo
uma matriz inusual, que é a narrativa anglo-saxã,
bem diferente das novidades narrativas francesas que tinham ainda
hegemonia no Brasil dos anos 20 e 30, completa.
As posições políticas de Erico foram motivo
de contestação. Em suas entrevistas e memórias,
sempre refutou essas acusações. Isso é
uma tremenda estupidez. Essas pessoas que dizem isso num certo tempo
escreveram odes a Stalin e hoje estão arrependidas. O que
nunca fui é membro de partido político, cegamente
obediente a sua linha de ação. O que dá a idéia
de que não sou um escritor participante é a minha
recusa em transformar romance em panfleto político,
disse em 1967. Em 1970, o então deputado Paulo Brossard leu
na Câmara Federal um pronunciamento no qual Erico dizia que
a portaria que determina a censura prévia no Brasil
me causa indignação e ao mesmo tempo tristeza. É
um sinal de que estamos encenando uma paródia da Idade Média.
Já visitei países de regime totalitário o suficiente
para ter visto na tristeza, no desalento de seus melhores escritores
os efeitos duma censura castradora.
Em várias ocasiões, Verissimo afirmou publicamente
que preferia abandonar a literatura a ter que submeter originais
à censura prévia, postura na qual era acompanhado
por Jorge Amado. Em 1971 em pleno auge da repressão
do regime militar , publicou Incidente em Antares, poderosa
alegoria crítica contra a ditadura militar, cuja publicidade
à época do lançamento provocava: Num
país totalitário, este livro seria proibido.
A lâmpada acesa de Erico parecia aquecer todos aqueles com
quem convivia. Ao entrevistar o amigo com quem conviveu em Washington
para a revista Manchete, em 1967, Clarice Lispector lhe diz: Você
é uma das pessoas mais gostáveis que conheci, pessoa
humana de uma largueza extraordinária. Quando morreu,
vítima de infarto em 28 de novembro de 1975, Erico Verissimo
foi homenageado num poema de Carlos Drummond de Andrade: Falta
alguma coisa no Brasil/ Depois da noite de sexta-feira. / (...)
Falta uma tristeza de menino bom/ Caminhando entre adultos/ Na esperança
da justiça/ Que tarda como tarda!/ A clarear o mundo./
Falta um boné, aquele jeito manso,/ Aquela ternura contida,
óleo/ A derramar-se lentamente./ Falta o casal passeando
no trigal./ Falta um solo de clarineta.
A exposição
Centenário de Erico Verissimo permanece até
17 de dezembro na Biblioteca Victor Civita, no Memorial da América
Latina (avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664, ao lado da Estação
Barra Funda do Metrô), de segunda a sexta-feira, das 9h às
18h, e sábados, das 9h às 15h (entrada pelos portões
4 e 5).
Exposição
virtual A Porto Alegre de Erico. Página eletrônica
do Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins
(www.celpcyro.org.br).
Frases
de Verissimo
Impressões
do escritor gaúcho, extraídas do livro A liberdade
de escrever, coletânea de entrevistas, Editora Globo,
1999
Temos
que acabar com a espoliação por causas
internas (...). Refiro-me ao empreguismo, à roubalheira
pura e simples, à malversação dos fundos
públicos, ao desgoverno, aos contratos lesivos à
nação, feitos em benefício de grupos
econômicos nacionais. Se há uma hemorragia externa
que nos debilita, a hemorragia interna não é
menor (junho de 1963).
Creio que no Brasil hoje em dia predomina uma
atmosfera de medo. É um erro funesto confundir crítica
patriótica com subversão. Estamos correndo o
risco de
perder o hábito de pensar (novembro de 1971).
Quando todos os problemas econômicos, políticos
e sociais estiverem sofrivelmente atenuados ou completamente
resolvidos,
os outros a angústia dos homens ante a morte,
o amor, a inveja, a cobiça, a vaidade hão
de ser sempre assunto literário. Uma bela
sonata pode ser considerada absolutamente inútil do
ponto de vista político-partidário. Mas um mundo
sem a música de Mozart, de Bach, de Vivaldi seria um
mundo artisticamente pobre (dezembro de 1971).
As condições econômicas de minha
vida pessoal influenciaram muito os romances que escrevi entre
1933 e 1940. Eu trabalhava longa e duramente durante mais
de 12 horas por dia. Traduzia livros de várias línguas
para o português (mais de 40), inventava histórias
para programas de rádio para
a infância, armava páginas femininas para o Correio
do Povo, tudo isso enquanto trabalhava na revista e na editora
da Livraria do Globo (janeiro de 1973).
Se eu tivesse de escolher um só livro para ser
julgado, indicaria o primeiro volume de O tempo e o vento.
Se me dessem a oportunidade de incluir outros, acrescentaria
Incidente em Antares, O senhor embaixador e Noite (agosto
de 1973).
|
Saí
da casa dele flutuando no ar
No
texto abaixo, o escritor Moacyr Scliar recorda seus encontros
com Erico Verissimo.
Cheguei
à literatura através de Erico Verissimo. Minha
mãe, que era professora e grande leitora, tinha em
casa os livros dele. Fechados no roupeiro à chave
aliás, em nossa humilde casa, eram a única coisa
chaveada.
E a explicação era óbvia: tratava-se
de literatura imprópria. Por causa do sexo,
claro. Erico não hesitava em descrever de forma explícita
as cenas de amor e isto, numa cidade conservadora como era
Porto Alegre, constituía motivo de escândalo
aliás, em muitos colégios os livros de
Erico eram expressamente proibidos. Mas era exatamente a proibição
que os tornava ainda mais atraentes.
Aprendi muito com Erico. Não só eu: uma geração
de escritores se iniciou no caminho das letras graças
a ele. Inclusive porque se tratava de um homem simples, afetivo,
cujas portas estavam sempre abertas. Levei a ele um dos meus
primeiros contos. Recebeu-o e disse que eu voltasse uns dias
depois. Quando retornei, elogiou-me muito, disse que eu estava
num bom caminho. Saí da casa dele flutuando no ar.
Dias depois, ao abrir uma gaveta, encontrei nela a última
página do
conto. Erico tinha lido a história sem o final. Não
entendera nada, mas, generoso como era, optara por estimular
o ansioso rapazinho que vinha em busca de sua opinião.
|
|