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ma moça que, apesar da fita nos cabelos, tem um ar rebelde. Sobrancelhas arredondadas, os olhos levemente amendoados, nariz arrebitado. E uma leveza expressa nos cabelos anelados, despenteados, que a tal fita não consegue prender.

Montanhas, lago e um tronco de árvore sem nenhuma folha. Uma paisagem de linhas verticais. Triste e solitária.

São essas duas gravuras em metal, água-forte sobre zinco, que trazem Anita Catarina Malfatti de volta. Não a Anita Malfatti pioneira da arte moderna no Brasil que todos conhecem. A pintora de O homem amarelo, A estudante russa, Moça sentada, O japonês e tantas outras obras. Mas a Anita Malfatti que talvez nem ela mesma fez questão de evidenciar. A Anita do início de sua carreira que se dedicava também às gravuras.

O retrato da moça e a paisagem com as montanhas são as duas gravuras que o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, sob a orientação de Marta Rossetti Batista e Ana Paula Felicíssimo de Camargo Lima, recuperou e reimprimiu em uma tiragem póstuma reduzida. Essas gravuras serão apresentadas com outras 18 que foram igualmente recuperadas na exposição que será inaugurada nesta quarta-feira, dia 7, às 17 horas, no IEB. A mostra conta com o apoio do Fundo de Cultura e Extensão Universitária da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária. “As imagens foram feitas nos anos 10 do século 20”, conta Marta Rossetti. “É uma produção pioneira, daí a nossa preocupação em recuperá-la. As evidências apontam que estas são as primeiras gravuras modernas executadas por um artista brasileiro.”

Marta e Ana Paula desenvolveram um estudo amplo sobre as gravuras de Anita. “São raras as informações sobre seu aprendizado nessa arte e possivelmente os trabalhos não são muito numerosos”, explica Ana Paula. “Sabe-se que iniciou seu estudo em Berlim, entre 1911 e 1913, e dedicou-se à gravação em metal. Ao retornar, apresentou sua produção numa primeira exposição individual em São Paulo, em maio e junho de 1914. Dos 33 itens listados no catálogo, um bloco se referia às águas-fortes tendo como tema retratos e paisagens.”

Na avaliação das pesquisadoras, alguns retratos mostram trabalhos sensíveis e delicados, além da experimentação com algumas técnicas. “Em Nova York, continuou a gravar, tendo aulas na Art Students League, em 1915 e 1916. Vários desses trabalhos participaram da exposição individual de 1917, em São Paulo. Das 53 entradas do catálogo, 11 eram gravuras especificadas pela artista como ponta-seca, água-forte ou água-tinta, duas delas coloridas. Uma ou duas vinham da fase anterior e outras duas, pelo título, teriam sido realizadas já no Brasil. Na Semana de Arte de 1922, no resumo-homenagem dos modernistas à individual de 1917, Anita teria reapresentado possivelmente duas gravuras da mostra histórica.”

Gravuras pioneiras

Apesar da beleza das imagens, Anita gravava, segundo alguns indícios, esporadicamente. “Ela vendeu uma ou outra cópia nas individuais e deu algumas de presente”, diz Marta. “Anita não vislumbrou, talvez, um mercado para os seus trabalhos. Por essa razão, não fez as tiragens habituais de suas matrizes. Há raros exemplares conhecidos e há alguns que nunca foram localizados.”

Anita Malfatti não imaginou que um dia as matrizes que ela gravou, há quase um século, tivessem um cuidado tão especial. Ou que, no futuro, pesquisadores como Marta e Ana Paula pudessem se dedicar durante anos para conseguir recuperá-las, transpor as imagens no papel. E apresentá-las em uma exposição com o brio merecido.

Quando os visitantes entrarem no salão e virem as gravuras recém-impressas por Rosa Esteves e cuidadosamente emolduradas pela equipe de montagem da Coleção de Artes Visuais do instituto, irão se surpreender com essa face inusitada da artista. “As gravuras não escondem as marcas do tempo sobre as matrizes”, explica Marta. “Elas foram recuperadas, mas deixamos as manchas e sinais das alterações do metal sofridas no decorrer de mais de 90 anos.”

Marta conta que as placas apresentavam oxidações. Algumas foram atenuadas e outras permaneceram. “O público verá as gravuras no papel e as matrizes. Também poderá apreciar documentos do arquivo da artista relacionados com as imagens apresentadas. Há ainda os cadernos de desenho. Um deles, em especial, fornece dados sobre Anita na época em que esteve nos Estados Unidos, com anotações de aulas e esboços de gravuras.”


Marta Rossetti e equipe: trabalho cuidadoso recupera gravuras inéditas de Anita Malfatti


A artista e a estudante

Anita também não deve ter contado com o idealismo daquela estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP que conheceu no início de 1964. Marta Rossetti estava no último ano da FAU e recebeu, com outros alunos, a incumbência de fazer um trabalho sobre os pintores modernistas vivos. “O professor Flávio Mota queria desenvolver um acervo sobre esses artistas. Alguns alunos foram entrevistar Tarsila do Amaral, outros pesquisaram Flávio de Carvalho e eu fui procurar Anita.”

A pintora, apesar da fragilidade de seus 75 anos, atendeu Marta com simpatia. “Ela estava muito magrinha, falava devagar.” Quando viu a estudante anotar o seu depoimento com detalhes, a artista observou: “Você tem uma letra muito bonita, parece que está desenhando, e é canhota como eu. Só que eu sou uma canhota forçada”, brincou Anita. “Quando minha mãe, dona Elisabete, estava grávida, ela não percebeu que um sujeito com defeito na mão esbarrou na sua barriga e eu nasci assim.” A estudante sorriu. A artista contava sempre essa lenda. Depois, esclareceu: “Quando tinha 3 anos, fiz uma cirurgia para corrigir o defeito congênito da mão direita. Mas não deu certo e tive que aprender a usar a esquerda.”

Marta se encontrou outras vezes com Anita. Visitou a sua chácara, em Diadema, e a casa na alameda Eduardo Prado, na Barra Funda, onde morava com a irmã Georgina, também solteira. A artista morreu em 6 de novembro de 1964 e deixou a sua história com detalhes nas mãos de Marta. Uma história que mudou o rumo da aluna da FAU, que resolveu deixar a arquitetura para se dedicar às pesquisas sobre arte e, especialmente, à vida de Anita. “Quando Georgina morreu, eu mesma ajudei a embalar os documentos, cadernos e gravuras de Anita. Sugeri para a sobrinha, Beth Malfatti, que doasse todo esse acervo para um instituto especializado.” Quarenta anos depois, Marta continua estudando Anita e apresentando a sua arte em livros, exposições e inúmeros artigos.

Acervo

Em 1989, ano do centenário do nascimento da artista, a família doou todo o seu arquivo pessoal para o IEB. Fotos, documentos, manuscritos, catálogos, cartas, recortes, cadernos de desenho de vários períodos e as matrizes de gravura localizadas anos depois do falecimento de Anita. “Sobreviveram 22 placas de metal, uma sem gravação, outras com incisões frente e verso, correspondendo a 20 obras”, observa Marta.

Em 1996, o IEB iniciou o estudo e a recuperação dessas gravuras através do empenho de Ana Paula, que conseguiu o apoio da Bolsa de Artes Vitae. “Fiz uma pesquisa no Museu Nacional de Belas Artes, no Projeto Portinari, no Museu Lasar Segall e outras instituições com gabinete de gravura, que já tinham desenvolvido um trabalho semelhante na recuperação de matrizes”, explica a pesquisadora. “Com a orientação e assessoria do gravador Carlos Martins, iniciamos a recuperação das chapas. Foi um trabalho muito delicado. A nossa prioridade foi respeitar e preservar os traços, as escolhas e a intenção da artista.”

Ana Paula esclarece que a gravura em metal, chamada de calcografia ou talho-doce, consiste na gravação sobre uma matriz de metal. “As incisões, relevos e texturas, realizados por meio de instrumentos próprios ou ácidos de gravação, são preenchidos por tinta calcográfica. Após a retirada do seu excesso, a placa é prensada sobre papel umedecido. Utiliza-se prensa apropriada para garantir que a tinta no interior dos sulcos se transfira para a superfície do papel, resultando na impressão calcográfica. Para cada impressão, é preciso repetir as etapas de entintagem da placa e sua passagem pela prensa.”


Anita utilizou as seguintes técnicas: ponta-seca, que permite desenhar tanto linhas levíssimas quanto mais acentuadas sobre a matriz de metal; a água-forte, que é a técnica mais utilizada e o seu princípio une o desenho com instrumento sobre a placa e o uso de ácidos de gravação para intensificar os traços; e água-tinta, que é uma derivação da água-forte, com uso de ácidos e verniz de proteção, porém semelhante à aquarela, que permite a obtenção de meio-tons e o verniz-mole, também uma variação da água-forte. Sua gravação reproduz a textura do lápis, sendo muito delicada.

Para realizar a tiragem póstuma, o IEB contou com a autorização e apoio da família. A reimpressão também obedeceu a todas as etapas necessárias de preservação da obra de Anita Malfatti. Cada uma das duas gravuras – Tronco de árvore, lago, montanhas e Moça com fita nos cabelos – terá uma tiragem mínima de 50 cópias, que serão vendidas no IEB. A renda será revertida para a preservação do acervo. “As gravuras terão um selo onde estará especificado que se trata de uma tiragem póstuma feita pelo IEB”, esclarece Marta.

Nas paisagens com coqueiros, lagos, rochedos, barcos, na alegria das baianas, nos retratos de moças sonhadoras e determinadas ou em cenas simples do cotidiano, Anita Malfatti se apresenta como a pioneira da gravura moderna.

A exposição “Anita Malfatti Gravadora” ficará em cartaz de 7 de dezembro a 28 de abril de 2006 no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP (avenida Professor Mello Moraes, travessa 8, número 140, Cidade Universitária, São Paulo, telefone 11 3091-3247), de segunda a sexta-feira, das 13 às 17 horas (exceto feriados), com entrada franca.


Obras de Anita: exposição apresenta os cadernos de desenhos, fotos e documentos da artista

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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