Na Capela da Fazenda Veneza, Decio
Tozzi desenha o vazio e expressa a busca
da essência. Em todas as suas obras como o Fórum Trabalhista
Ruy Barbosa,
a rua comercial Oliveira Lima e o altar que construiu em Maceió
para a visita do papa João Paulo II, o arquiteto prioriza
o encontro com a luz
Eu
consegui desenhar o vazio é assim que Decio Tozzi
define a Capela da Fazenda Veneza, em Valinhos. Uma obra poética
de 2002 que surpreende pela síntese, pela essência.
Um haicai da arquitetura... Com essa composição
uma cobertura curva sobre quatro apoios laterais na beira de um
lago, que se integra na natureza com a leveza de um pássaro
o professor da Faculdade de Arquitetura da USP e do Mackenzie
insere na paisagem a liberdade de quem domina a técnica.
Uma liberdade de quem ensina e aprende a missão de arquiteto
há 45 anos.
Arquitetura é luz, espaço e matéria.
Com esses elementos, Decio Tozzi vai transformando os espaços
e expondo suas obras ao sol, ao vento, aos sonhos e convívio.
Os edifícios, casas, escolas propiciam o encontro com a luz,
diferente no decorrer do dia e das estações. É
essa aventura que o livro Decio Tozzi, lançado pela Editora
DÁuria, apresenta, reunindo desde os primeiros projetos
até os mais recentes, como os premiados Capela da Fazenda
Veneza, Fórum Trabalhista Ruy Barbosa, rua Comercial Oliveira
Lima e Parque Villa-Lobos.
Nesses anos de trabalho, percorri os mais diversos temas,
desde a residência individual e tipos de edificações
até a intervenção e propostas para a cidade,
sempre tentando compreender e sugerir novos e mais abrangentes programas,
esclarece o arquiteto. O método é claro e preciso
uma visão crítica, selecionadora, atenta e
rigorosa, e um nível poético livre, inventivo, permeado
de esperança. Por meio da análise crítica,
procurei desenhar usando a técnica como uma forma de obter
espaços de convívio humano que buscam a beleza e o
diálogo saudável com a paisagem, certo de que essa
postura se insere no caminho do desenvolvimento da arquitetura e
da sociedade.
Parque
Villa-Lobos
Às margens do rio Pinheiros, bem em frente da raia olímpica
da Cidade Universitária está o Parque Villa-Lobos,
que atrai milhares de pessoas da região e de toda a cidade.
No começo da década de 1980, nos meus caminhos
de ida e volta da FAU, sempre observava essa área imensa,
que era um dos últimos vazios urbanos do centro expandido
de São Paulo, conta Tozzi. De forte sinuosidade,
essa antiga área de leito fluvial transformou-se após
sua retificação numa várzea submetida ao regime
intermitente e de grande periculosidade, acentuada quando seus proprietários
propiciaram, com a retirada e comercialização de areia,
a formação de lagoas nas áreas de escavação.
Depois dessa exploração predatória, passou
a receber entulhos de toda a natureza, transformando-se num grande
bota-fora do lixo da cidade.
Na tentativa de recuperar a área, o arquiteto propôs
a construção do novo parque. Desenhei um parque
contemporâneo, dentro do conceito dos parques temáticos
que além das áreas verdes e clareiras apresentam um
programa onde a população usufrui da cultura e expressa
sua sensibilidade. Tozzi decidiu homenagear o centenário
do compositor Heitor Villa-Lobos projetando um local com caráter
musical, desde o ensino até a apresentação
pública.
O projeto criado em 1987 foi inaugurado em 1994. Desenhei
um grande e denso bosque biodiversificado, composto por 50 mil árvores
divididas entre 300 espécies e 12 clareiras gramadas destinadas
ao uso livre da população. No centro, projetei uma
área balizada por renques de palmeiras imperiais onde desenvolvi
um paisagismo urbano composto por uma sucessão de pequenas
praças com estares e árvores de sombra, que trazem
o significado do paisagismo característico das praças
e jardins urbanos das cidades brasileiras.
Hoje, o público tem à disposição 350
mil metros quadrados de área verde com duas quadras poliesportivas
e de tênis, campos de futebol, uma pista pavimentada para
ciclistas, corredores e patinadores, anfiteatro e estacionamento
com 730 vagas. Os outros 350 mil metros quadrados de área
verde deverão estar concluídos até o final
de 2006, deixando delimitadas com gramado as áreas de implantação
do centro de convivência musical e auditórios,
planeja Tozzi.
Transformar
a cidade
O livro Decio Tozzi é uma aula para os estudantes e profissionais
de arquitetura e urbanismo. As construções são
evidenciadas com detalhes através de desenhos e fotos que
levam a assinatura de Cristiano Mascaro e Julio Abe Wakahara entre
outros profissionais. Porém, é importante também
para o leitor em geral, para que possa compreender o desenho urbano,
a importância da arquitetura na sociedade e observar ainda
como nascem os projetos capazes de transformar a cidade. Um exemplo
é o Fórum Trabalhista Ruy Barbosa, inaugurado no ano
passado, na avenida Marquês de São Vicente, que provocou
uma mudança pontual em todo o entorno.
Decio Tozzi fez o projeto em parceria com Karla Albuquerque em um
conceito sonhador, idealista. Através de um edifício
com formas claras e simples, procurou dissociar da Justiça
a imagem de servir só à elite. Os tradicionais
edifícios dos palácios de Justiça, até
o início do século XX, caracterizavam-se por estruturas
formais inspiradas no classicismo arquitetônico, conotando
a idéia de monumentalidade suntuária, observa
Tozzi. Além disso, os espaços solenes denotavam
um aspecto que não significava somente a austeridade do poder,
mas também sua autoridade, como se essa imagem autoritária
da Justiça correspondesse à imagem da mesma forma
autoritária.
Tozzi e Karla conseguiram realizar um projeto que centralizou os
diversos setores da Justiça Trabalhista, anteriormente espalhados
pela cidade. O edifício organizou os quatro blocos
das varas judiciais, dois a dois, separados por espaços vazios
de altura dupla, onde acontecem as atividades coletivas de apoio
às cotidianas do complexo judiciário, explica
o arquiteto. O mais interessante é o grande espaço
vazio central que integra todo o conjunto. Essa fluidez sugere a
integração e transparência das atividades burocráticas.
O antigo hall solene, autoritário e majestoso encontra
um novo significado, ou seja, a Praça da Justiça,
desenhada como uma nova praça de São Paulo, pois o
nível térreo apresenta as funções de
restaurante, banco, centro telefônico, agência de correio,
livraria e um auditório para 500 pessoas aberto à
comunidade.
A circulação é feita por 20 elevadores e todos
os andares estão interligados por um sistema de rampas múltiplas
que propiciam todo conforto para as 20 mil pessoas que diariamente
demandam o fórum. Esse espaço forma por sua
escala e volumetria uma praça banhada de sol, mas protegida
das chuvas e dos ventos.
Apesar do idealismo do projeto, a construção do edifício
teve a sua primeira fase envolvida em denúncias de desvio
de dinheiro público. Mas Tozzi lembra que o importante é
que os culpados foram punidos. E a arquitetura está clara,
transparente, com o seu rendilhado de vidro, com as luzes que projetam,
no decorrer do dia, diferentes texturas e, o mais importante, a
proposta de convívio e concórdia.
Primeiros
projetos
A busca da luz natural permeia as construções de Decio
Tozzi desde o início de sua trajetória. A Escola Técnica
do Comércio, a primeira escola profissionalizante da cidade
de Santos, é um projeto de 1963 e já tem o conceito
de sistema espacial aberto. A leitura de sua arquitetura revela
o desenho como resultado da intenção de domínio
e transformação da natureza adversa da região,
que apresenta excessiva luminosidade atmosférica e elevadas
temperaturas, esclarece o arquiteto. Conseguimos captar
a luz solar zenital por planos de reflexão e tubos condutores
de luz, transformando a luminosidade excessiva em luz difusa interior,
própria para o ensino e leitura.
O livro traz ainda projetos de diversas casas. Todas com espaços
amplos compondo um cenário que recepciona o jardim, a praça
ou a cidade. A residência de Geraldo Abbondanza Neto, 1989,
na Barra do Una, surpreende pelo efeito do plano diagonal que protege
o espaço. Desenhei uma cabana na praia com teto inclinado,
protegendo contra o sol poente. Seu desenho destaca-se na paisagem
na horizontalidade do relevo da praia. Este espaço amplo
e generoso incentiva o convívio descontraído.
Mesmo com ocupações, propostas, desenhos diferentes
e apesar de estarem em lugares opostos, as obras do paulistano Decio
Tozzi, 69 anos, reunidas no livro, dialogam entre si. Pela luz e
poesia. A Capela da Fazenda, que recebeu diversos prêmios
e foi publicada em livros e revistas de arquitetura de vários
países, tem a mesma simplicidade do altar que construiu em
Maceió, para a celebração da missa do papa
João Paulo II, na sua visita em 1991. Através dessas
construções que priorizam o desenho da paisagem, o
arquiteto sintetiza o sonho da busca da essência.
Poucas vezes em minha vida de fotógrafo fui surpreendido
por aparições, conta Cristiano Mascaro. No
entanto, isto me aconteceu quando fui para Valinhos registrar a
capela da Fazenda Veneza. Entusiasmado com a tarefa de fotografá-la,
madruguei como obrigam as tarefas religiosas. Em meio à névoa
e aos vapores dágua, me surpreendi com uma aparição.
Era a capela com o risco branco da abóbada leve como uma
folha de papel e a forma severa de uma cruz vermelha fincada no
lago. Algo que me fez refletir a respeito da fé e do papel
divino da arquitetura.
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