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orros banguelas com prédios-espigões avançam a Cordilheira Central. O Hotel Caracas Hilton, cinco estrelas, dá vistas para barracos cercados com grades que despencam na ribanceira. Conjuntos habitacionais, “formigueiros” humanos, são quase cortiços disfarçados. No caos das ruas onde não se obedece a sinal de trânsito e buzinaço serve de despertador, vendem-se, lado a lado, camisetas de Hugo Chávez e de Che Guevara – convite ao consumismo simbólico de heróis latino-americanos. Para as crianças, há também o boneco de Chávez: é só apertar as costas que ele dispara um discurso. Enquanto isso, 50 mil visitantes de várias partes do mundo, devidamente identificados com crachás e bolsinhas de pano do Fórum Social Mundial (FSM) a tiracolo, lembram pára-quedistas fora da rota.

Depois de quatro anos quase consecutivos com sede em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial passou por experiências interessantes em 2006. Pela primeira vez, o evento foi policêntrico, com atividades em três continentes: África (Bamako, Mali), de 19 a 23 de janeiro, América (Caracas, Venezuela), de 24 a 29 de janeiro, e Ásia (Karachi, Paquistão), este previsto para março de 2006 em razão dos terremotos que assolaram o país. Até agora, a diversidade e a grande quantidade de participantes dos fóruns anteriores foram herdadas pela edição venezuelana, com 80 mil inscritos.

Oficialmente, integrantes do comitê organizador do FSM lembram que a solução policêntrica poderá dar resposta às críticas de que o evento em um único país dificulta o acesso de participantes estrangeiros. Mas o fórum em Caracas não foi uma escolha aleatória. Embalados pela onda de eleições de representantes com origens nos movimentos sociais, como Evo Morales (Bolívia) e Michelle Bachelet (Chile), os países da América Latina parecem irradiar ao mundo a esperança do almejado “outro mundo possível”.

Além disso, os participantes do fórum puderam conhecer o território onde inegavelmente acontece uma revolução popular, nas palavras do professor e economista Plínio de Arruda Sampaio, da Unicamp. “O povo na rua é o primeiro passo para uma revolução socialista”, avaliou. Nos ecos das mais de 2 mil atividades autogestionadas propostas neste fórum, Lula e o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, também foram imensamente saudados, ainda que não consensualmente.

Camelôs

Os participantes do fórum presenciaram, nas ruas, a satisfação de muitos venezuelanos, que impressionavam com a melhor e mais apaixonada propaganda dos avanços sociais da “revolução bolivariana”: “Yo soy un vencedor”, disse Luís Omar Leon, explicando que assim são chamados os alunos que concluíram o supletivo em massa do ensino médio promovido pela Missão Ribas. Entre outros “logros”, estão as missões anteriores de erradicação do analfabetismo e de supletivo para o ensino fundamental, além de avanços na área de saúde realizados em parceria com os médicos e hermanos cubanos.

A caótica Caracas passou a ilustrar as imagens inconscientes do chamado “mundo subdesenvolvido” e seus contrastes, ainda mais fortes do que os percebidos em São Paulo. A começar pelo trajeto que vai do aeroporto ao centro: a ponte que os ligava e permitia que o percurso fosse feito em meia hora simplesmente quebrou semanas antes do fórum. Todos precisaram enfrentar, por três a quatro horas, uma tortuosa estrada beirando favelas nas ribanceiras até chegar às ruas poluídas e paralisadas pelos carros enferrujados.

O cotidiano da cidade de 4,5 milhões de habitantes, no entanto, estava totalmente envolvido pelo Fórum Social Mundial: camelôs lotaram ruas com bugigangas, camisetas de Chávez e a versão em bolso da Constituição Bolivariana. A passagem de metrô, que normalmente custa de 300 a 600 bolívares (equivalente a 30 e 60 centavos de real), foi liberada para os participantes do fórum. Os hotéis viviam o auge da lotação e receberam diversos hóspedes clandestinos. Até mesmo os taxistas, que não fazem questão de apoiar o socialismo, cobravam em média 120 mil bolívares por corridas que saem por menos que 8 mil.

Alguns funcionários públicos do governo, como os da gigante estatal PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.), foram deslocados de seus serviços diários para trabalhar no fórum, prato cheio para as críticas da imprensa em pé de guerra com o governo. Sentia-se esse clima de disputa nas ruas de Caracas: ao ver um grupo de estrangeiros que se dirigia ao fórum, um antichavista nada simpático acusou: “Quem pagou a passagem de vocês para cá foi o Chávez. Isso é um absurdo!”. “Vivemos um barril de pólvora, pronto a explodir”, resumiu, por sua vez, um chavista, garantindo que o povo e os militares estariam prontos para um novo golpe da oposição patrocinada pelos Estados Unidos.

A constante presença do exército e dos policiais nas ruas causava estranhamento e incômodo, especialmente quando os estrangeiros eram obrigados a ser revistados ao entrar em prédios oficiais. “Aqui os militares são amigos, não precisa ter medo”, aconselhou uma senhora venezuelana a um grupo de brasileiros, que tentou explicar que, no Brasil, a tradição ensinava justamente o contrário. Nos três primeiros dias do fórum, inclusive, alguns tanques de guerra figuravam imponentes entre os estandes de uma exposição sobre os ministérios do governo, reunindo filas de interessados em renovação da licença de motorista. À noite, um show gratuito no ritmo reggaeton – herdado de Porto Rico – também reuniu massas de jovens eufóricos.

Espada de Bolívar

Nos seminários que discutiram o próprio fórum, ficaram nítidas várias disputas internas no evento que nasceu em 2001, por iniciativa de oito organizações da sociedade civil, como contraponto “social” ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Uma delas se refere à sua própria identidade, prevista na Carta de Princípios, escrita em 2002, segundo a qual o Fórum Social Mundial afirma seu caráter não-governamental e não-partidário, plural, diverso e preocupado com a busca e construção de alternativas às políticas neoliberais. Deve o FSM tomar partido, “tirar resoluções”, guiar-se por bandeiras e tornar-se o “movimento dos movimentos”? “No dia em que isso acontecer, ou no dia em que os governos e partidos começarem a manipulá-lo para colocá-lo a serviço de seus próprios objetivos, toda sua força convocatória diminuirá”, escreveu Chico Whitaker, um dos idealizadores do evento, no livro Camino a un mundo nuevo, da Fondo Editorial Question, lançado na Venezuela.

De fato, a diversidade das abordagens e a tolerância quanto às diferenças são características que agregam movimentos e principalmente os jovens, que compõem o maior público em todas as edições. Uma das divergências se refere às organizações não-governamentais (ONGs): enquanto uma das atividades do fórum foi batizada como “ONGs e movimentos sociais – Uma construção de ação conjunta”, outra se intitulava “Não às ONGs – Pela autogestão e horizontalidade”. Já as convergências são muitas: oposição à guerra, à militarização, aos acordos de livre comércio com os Estados Unidos e ao neoliberalismo, propostas de retirada da água e dos recursos naturais de negociações comerciais e campanhas de democratização da comunicação, de luta pelo acesso à terra e à soberania alimentar, entre outras.

Prevista na programação noturna do dia 27 de janeiro, a chamada Assembléia Mundial dos Movimentos Sociais com o Presidente Hugo Chávez foi o evento mais concorrido. Cerca de 12 mil pessoas se deslocaram para o Poliedro, ginásio afastado da última estação de metrô, onde o ato aconteceu. Ali, uma multidão vermelha, sincronizada, cantava: “Se escucha, se escucha/ Chávez está en la lucha/ se siente, se siente/ Chávez está presente” ou “Alerta, alerta/ alerta que camina/ la espada de Bolívar por América Latina”.

Em março, no Paquistão, o foco das discussões do capítulo asiático do fórum deverá se voltar para temas como a guerra e o fundamentalismo, segundo Madhusree Dutta, do comitê organizador do FSM. Em 2007, o encontro voltará a ser centralizado, com sede em Nairóbi, no Quênia, com a expectativa de que a falta de saúde, de educação e de água e a epidemia de Aids também ganhem a agenda dos movimentos e redes sociais do mundo.


 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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