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O
Projeto Acolhendo Alunos em Situação de Fracasso Escolar,
da Faculdade de Educação da USP, vem fazendo esforços
para a realização de uma parceria com professores
da Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane,
de Maputo, em Moçambique, com o objetivo de discutir e promover
a alfabetização e a educação de crianças,
jovens e adultos. Trata-se de um terreno extremamente complexo,
mesmo com as campanhas de alfabetização e dos esforços
do governo já realizados em Moçambique.
O projeto de trabalho entre professores brasileiros e moçambicanos,
intitulado Via Atlântica: perspectivas fraternas entre Brasil
e Moçambique, apoiado pelo CNPq no âmbito do Edital
Pró-África, pode contribuir para refazer o cordão
umbilical que une o Brasil e os demais países africanos que
têm o português como língua oficial, levando-se
em consideração, sobretudo, o mesmo passado colonial.
Sendo assim, quando pensamos na elaboração da parceria
Brasil e Moçambique no âmbito do aprendizado da língua
portuguesa, há que se discutir o estatuto identitário
dessa cultura e analisar o ponto de contato existente entre Portugal
e as identidades culturais dos povos brasileiros e africanos, que,
para bem e para mal, conviveram com essa cultura durante séculos.
Até o presente momento, constituímos grupos de estudantes
e profissionais interessados na temática proposta. Na Faculdade
de Educação da USP, contamos com dois alunos em nível
de mestrado, dois alunos de graduação e em torno de
cinco profissionais (cartunista, arte-educador, terapeuta, professora
da rede municipal e um webdesigner).
Esse grupo está estudando e refletindo acerca das questões
da diversidade lingüística em Moçambique, da
possível alfabetização bilíngüe
no país e das possibilidades de produção bibliográfica
acerca desse tão próximo e tão distante irmão
com o mesmo passado colonial.
No próximo mês de abril, a Faculdade de Educação
da USP promoverá um curso introdutório acerca das
questões de alfabetização em Moçambique
com duração de 15 horas, gratuito com
o intuito de reunir e iniciar formação dos interessados
nesse projeto.
Finalmente, até o mês de junho, acontecerá a
primeira missão de trabalho em Maputo, Acolhendo Moçambique,
por meio da qual pretendemos conhecer a realidade local, a relação
estabelecida entre os alfabetizandos e as diferentes línguas
do país, as práticas cotidianas em salas de aula de
alfabetização e o material didático utilizado.
Além disso, apresentaremos os trabalhos que o Projeto Acolhendo
tem realizado no Brasil através de palestras e cursos para
alfabetizadores. Isso porque, apesar de o nosso país ter
sido aclamado por sua unidade lingüística, temos muito
a dialogar com os moçambicanos, já que, do nosso ponto
de vista, esse discurso da unidade tem feito com que diferentes
culturas, línguas e povos instalados no território
brasileiro desaparecessem.
Em Moçambique, quase 60% dos adultos são analfabetos
na língua portuguesa, a língua oficial. O inglês
é bastante falado e ainda coexistem 30 línguas bantas.
Tal situação é fruto das elevadas taxas de
analfabetismo herdadas do período colonial (mais de 95%)
e somam-se às altas taxas de evasão e repetência,
sobretudo nas primeiras séries da escolarização
formal e no processo de erradicação do analfabetismo
no seio de jovens e adultos.
Segundo o pesquisador José de Sousa Miguel, diversos
estudos têm mostrado que, desde a independência, a adoção
da língua portuguesa como língua oficial e língua
de ensino e a conseqüente rejeição, por parte
do poder político, do estudo, sistematização
e introdução das línguas moçambicanas
nas primeiras séries (ainda que a título experimental),
têm contribuído para o agravamento das taxas de analfabetismo.
Mas, mais do que isso, a rejeição desse rico universo
lingüístico pode estar contribuindo para perdas irreversíveis
das tradições orais, ao mesmo tempo em que constitui
um desrespeito e uma desvalorização das várias
culturas étnicas.
De acordo com o sociólogo Boaventura Santos, os portugueses
se constituem no único povo europeu que, ao mesmo tempo
em que observava e considerava os povos das suas colônias
como primitivos ou selvagens, era, ele próprio, observado
e considerado, por viajantes e estudiosos e dos países centrais
da Europa do Norte, como primitivo e selvagem. Ou seja, os
portugueses são e foram europeus e selvagens. E assim, suas
colônias, neste caso Brasil e Moçambique, nunca foram
colônias plenas.
Ainda nesse sentido, temos que levar em consideração
uma das características marcantes da sociedade moçambicana:
a acústica. Parafraseando José de Sousa Miguel, a
cultura moçambicana tem no ouvido seu órgão
de recepção por excelência, em que a mente dos
seus membros opera por meio do ritmo, da música, da dança,
da repetição e da redundância: Sua oralidade
é uma oralidade flexível e situacional, imaginativa
e poética, rítmica e corporal, que vem do interior,
da voz, e penetra no interior do outro, através do ouvido,
envolvendo-o na questão. Nessa cultura, os homens e mulheres
sabem escutar e narrar, contar histórias e relatar. E isso
com precisão, claridade e riqueza expressiva. De um modo
cálido e vivo, como a própria voz. São mestres
do relato, das pausas e das brincadeiras, da conversa e da escuta.
Amam contar e ouvir histórias, tomar parte nelas. Nessas
culturas, os seres humanos aprendem ouvindo, repetindo o que ouvem,
decorando provérbios, mas sem estudar no sentido estrito.
No domínio da poesia oral, de um modo geral, e da africana,
mais particularmente, a repetição é uma das
suas dominantes, concretizando-se a diversos níveis: ao nível
da palavra, do verso e até de grupos de versos, bem como
ao nível do sentido, com recurso a palavras diferentes. É,
como dissemos, uma característica genérica, que se
manifesta na quase totalidade dos gêneros poéticos
orais africanos (a poesia panegírica, a poesia elegíaca,
a poesia militar e de caça, a poesia lírica, a poesia
satírica político-social, a poesia religiosa).
Tendo em vista essa situação, consideramos que há
muito trabalho a ser realizado para a construção e
solidificação do mundo lusófono e uma das instituições
sociais que podem contribuir para esse processo é a universidade,
pois esta pode promover o intercâmbio entre os diversos países
no plano social e educacional.
Paulo Freire pode ser considerado precursor nessa área. Em
seu trabalho educacional no território africano, Freire aboliu
o formato convencional das salas de aula e, em círculos,
realizava com seus alunos conversas, grupos de estudo, conferências,
grupos de ação e fóruns, dentre outras atividades
que tinham como base o diálogo. Partia das palavras usadas
por seus educandos (universo vocabular) e assim podia definir os
temas geradores que seriam o motivo do encontro cultural, com a
língua e com a realidade. Nesse sentido, a riqueza da língua
portuguesa em seus aspectos fonêmicos e fonéticos
era estudada, aliada ao teor pragmático das palavras
frente à realidade dos sujeitos envolvidos no processo de
alfabetização. No livro A África ensinando
a gente, Freire faz algumas colocações extremamente
claras e humildes acerca das dificuldades e obstáculos que
encontrou no momento de colaborar com as ex-colônias portuguesas
na África.
Nesse contexto em construção, privilegiamos a formação
de profissionais (docentes e pesquisadores) da área de educação,
no Brasil e em Moçambique, seguindo caminho apontado pelos
trabalhos realizados pelo Projeto Acolhendo Alunos em Situação
de Fracasso Escolar, e em total concordância com Paulo Freire.
Nilce da Silva é coordenadora do Projeto Acolhendo Alunos
em Situação de Fracasso Escolar (www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br),
da Faculdade de Educação da USP. Inocente Mutimucuio
e Débora Nandja são professores da Faculdade de Educação
da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique.
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