foto:
Paulo Hebmüller
Da mais alta torre de igreja do mundo
- da Catedral de Ulm - vê-se uma paisagem com
poucos prédios altos
Mal o trem começa a se movimentar e muitos alemães
já se põem a retirar de suas sacolas e mochilas os
sanduíches, as frutas, as bolachas, os pimentões e
as cenouras que trouxeram de casa. Como comprar lanches no trem
ou no caminho é caro, e providenciar uma cesta básica
em casa sai bem mais em conta, ninguém se acanha como
este repórter constatou inúmeras vezes em seus deslocamentos
pelas ferrovias alemãs no último gélido mês
de dezembro em promover verdadeiros piqueniques nas poltronas,
principalmente quando se viaja em grupo e se tem a sorte de conseguir
um lugar com uma mesinha.
Das mochilas e bolsas saem inclusive garrafas térmicas com
café e água quente para o chá, bebida muito
consumida na Alemanha. E, sim, há até quem leve seu
franguinho assado!
A farofada, quem diria, é coisa de primeiríssimo mundo.
foto: Paulo Hebmüller
A Igreja do Castelo de Wittenberg, berço
da Reforma Protestante do século 16
Ferrovias
O país mais rico da Europa é cortado por uma ampla
rede de ferrovias que interligam todas as suas cidades e regiões.
Livretos à disposição nas estações
informam todas as conexões e horários válidos
para o semestre inteiro. A Deutsche Bahn, empresa responsável
pelo sistema, também oferece em sua página eletrônica
a possibilidade de consultas detalhadas sobre viagens e preços.
Pode-se usar os trens regionais (os mais baratos, que vão
parando em praticamente todas as estações), ou os
intercidades, que fazem ligação direta.
As tarifas são consideradas caras, mesmo para os padrões
alemães, o que gera reclamações dos usuários
até porque a Deutsche Bahn, empresa pública,
exerce o monopólio do serviço. A modalidade mais cara,
o Inter City Express (ICE), opera com trens supervelozes, que alcançam
até 260 km/h. Um dos anfitriões do repórter
contou que um cientista indiano, ao desembarcar de sua primeira
viagem no ICE, pediu para ficar algum tempo na plataforma. O motivo,
explicou, é que seu corpo já havia completado a viagem,
mas era necessário esperar um pouco até que a alma
chegasse também.
foto: Paulo Hebmüller
Igreja de São Tomé, em Leipzig,
que teve Johann Sebastian Bach como diretor musical
Jeitinho
Há várias maneiras de baratear as viagens, como adquirir
cartões personalizados que dão direito a descontos,
e outras que revelam o jeitinho alemão. Nesse
caso estão os cartões regionais, que permitem deslocamento
ilimitado por um período de tempo dentro do mesmo Estado.
Um exemplo: se o viajante está na Baviera, pode comprar um
Bayern Ticket e utilizá-lo para todas as cidades que quiser
dentro do Estado até o início da madrugada seguinte.
O preço é único, e até cinco pessoas
podem viajar com o mesmo tíquete.
É comum ver nas estações grupos de dois a três
jovens exibindo um cartaz onde se lê que têm o tíquete
regional e sairão para determinada cidade no horário
x. Quem quiser se juntar racha o valor do
tíquete e assim todos no grupo economizam.
E, mesmo com a germânica precisão, ocorrem atrasos
no sistema, para revolta dos passageiros. No inverno, culpa-se a
neve, que deixa os trilhos muitos lisos, o que faz com que os trens
diminuam a velocidade. Essa é, pelo menos, a explicação
oficial.
Neve, aliás, é um capítulo à parte.
Para quem não conhece, ela realmente deslumbra no início.
Depois, quando o cotidiano começa a ficar atrapalhado pelos
floquinhos desde o maior esforço para sair da cama
até o exercício de equilibrismo para não derrapar
nas calçadas escorregadias , enfrentar a neve passa
a não ser tão interessante assim.
Mas que as paisagens ficam belíssimas, isso ficam.
foto: Paulo Hebmüller
Nuremberg: a tribuna de onde Hitler falava às
multidões está preservada
Garrafa
Ônibus urbano em Dachau, cidade vizinha a Munique, em horário
de fim de aula. Um grupo de estudantes na casa dos 12, 13 anos se
acomoda no fundo do veículo. Num dos pontos, o motorista
vê pelo retrovisor uma cena que o faz dar um berro, deixar
o volante e partir rapidamente em direção ao grupo.
Os jovens compartilhavam uma garrafa de cerveja. O motorista recolhe
a garrafa, expulsa os estudantes do carro e reassume seu posto
tudo sob o olhar assustado de uma criança de 3 ou 4 anos
que, no retorno do condutor, pergunta o que aconteceu e ouve a explicação.
Nenhum outro passageiro parece dar maior atenção ao
incidente e o ônibus segue viagem.
Nos trens, ônibus e metrôs, pouco se conversa. Livros
muitos livros , jornais, revistas e fones de ouvido
(iPods, muitos iPods), em cenas que lembram o filme O turista acidental,
cumprem a missão de preservar a individualidade e a privacidade.
foto: Paulo Hebmüller
Dachau: igrejas dividem espaço que serviu
como campo de concentração
Calçadas
É grande o número de pessoas portadoras de deficiência
e idosos pelas ruas. Numa sociedade em que a longevidade é
cada vez maior, é necessário prover adaptações.
Entre elas estão as cadeiras que sobem e descem escadas,
acopladas aos corrimãos. Sua publicidade está estampada
principalmente nas publicações de igrejas e nos cadernos
de TV dos jornais. Há também andadores adaptados com
cestinhas, pequenas rodas e um sistema de freio que permite aos
idosos se movimentar com segurança nas ruas.
Vêem-se muitas pessoas utilizando cadeiras de rodas pelas
cidades alemãs. Será essa presença pouco
observada no Brasil uma distorção estatística
ou isso se deve às facilidades de deslocamento, como calçadas
largas, planas, sem dezenas de obstáculos como postes e barracas
de camelôs, e dotadas de rampas em todas as esquinas, além
da obrigatoriedade de lugares especiais em todo o transporte público?
Um bom tema para reflexão enquanto se tenta caminhar, digamos,
pela rua Teodoro Sampaio, em São Paulo.
foto: Paulo Hebmüller
Cenas do inverno alemão: é preciso
paciência para sair de carro ou bicicleta debaixo
da neve
Elevação
O ônibus de onde os jovens estudantes foram expulsos leva
ao campo de concentração de Dachau, o primeiro colocado
em funcionamento pelo regime nazista. Adolf Hitler assumiu o poder
em 30 de janeiro de 1933, e no dia 22 de março o campo já
recebia prisioneiros. Em princípio eram apenas
opositores do regime, mas com o passar do tempo e o aumento
do espectro de inimigos do 3o Reich passíveis de encarceramento
Dachau transformou-se também em destino de minorias
étnicas e outros indesejáveis.
O campo preserva apenas um dos inúmeros barracões
por onde passaram milhares de prisioneiros, transformado num museu
memorial, além do prédio que servia de câmara
de gás e crematório. Dachau abriga atualmente templos
de várias religiões, onde se realizam regularmente
celebrações pela paz.
Para entrar no pequeno templo judaico caminha-se para baixo. Quanto
mais se caminha, menor fica o espaço. Ao fundo, e acima do
altar, projeta-se uma torre simbolizando uma chaminé por
onde se vê o céu. É inevitável pensar,
ali como talvez tenha sido a intenção dos construtores
, que o sentido de todo um sacrifício pode ser também
remeter à elevação.
foto: Paulo Hebmüller
Guerra
A memória dos soldados alemães mortos nas guerras
mundiais está presente em toda parte. No interior de cada
igreja, os nomes dos homens que pertenciam àquela comunidade
e que perderam a vida nos conflitos geralmente estão gravados
em placas de mármore colocadas em lugar de honra.
Na Igreja Luterana de Maxfeld, em Nuremberg, construída em
1938, uma ampla sala é dedicada aos nossos irmãos
que caíram pela Pátria. Ali, cada soldado é
lembrado numa placa de madeira fixada à parede e numa página
de um enorme livro em que, abaixo do nome, constam o local e a data
da morte. Em muitos casos, principalmente para aqueles que sucumbiram
nas batalhas em território da então União Soviética,
a referência é apenas de desaparecido em
dado mês e ano, pois não é possível precisar
a data da morte. No centro da sala, uma escultura mostra Maria retirando
da cruz seu filho Jesus morto.
Nuremberg pagou um alto preço por ter sido escolhida por
Hitler como a capital simbólica do 3o Reich. Decretada cidade
imperial livre em 1219, ligada profundamente ao apogeu do Império
Sacro Germânico, sede das reuniões imperiais de 1050
até 1571, um dos mais expressivos centros da cultura alemã
e homenageada por Richard Wagner com a ópera Os mestres cantores
de Nuremberg, a cidade dispunha também de infra-estrutura
e facilidades logísticas para abrigar as monumentais marchas
do Partido Nazista. Ali começou-se a construir um amplo conjunto
de prédios, estádios e praças para abrigar
os congressos anuais do partido, que recebiam milhares de militantes,
soldados e simpatizantes de todo o país. O congresso de 1934
pouco mais de um ano após o renascimento da
nação alemã, como informa a abertura
do filme está documentado nas cenas impressionantes
de O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, que passou à
história como a cineasta de Hitler.
O complexo nunca chegou a ser concluído. O esqueleto do prédio
do Congresso abriga hoje o Centro de Documentação
da História do Partido do Reich, visita obrigatória
para quem se interessa pelo tema. Está de pé também
a parte principal do Zeppelinfeld (Campo do Zeppelin), palco de
grandiosas marchas e verdadeiras manifestações de
louvor ao führer. O espaço antes destinado aos soldados,
no centro do campo, foi transformado em área para a prática
de esportes.
A cidade foi uma das que mais sofreram com os bombardeios aliados.
Ao final da guerra, apenas 9% de suas edificações
permaneciam intactas.
Herança
Numa rua do centro de Nuremberg, uma placa de bronze fixada num
prédio e datada de 1952 diz: Lembramo-nos daqueles
que não voltaram. O tema do nazismo é presença
constante na sociedade alemã. As estantes de história
nas livrarias são constantemente abastecidas com novos títulos
que analisam causas e reflexos do período hitlerista, trazem
novos enfoques, lançam luz sobre outros aspectos. Colhe-se
a impressão de que o tom geral é de autocrítica:
sem eximir o país de suas responsabilidades, mas chamando
a atenção também para aspectos como o sofrimento
do povo alemão e os movimentos de resistência ao nazismo.
A imprensa aborda freqüentemente o tema, os mais velhos contam
suas histórias e as gerações do pós-guerra
tentam descobrir o que fazer com uma herança pela qual não
se consideram diretamente responsáveis mas da qual,
ao mesmo tempo, sabem que não podem se desvencilhar.
Não é incomum ver jovens carecas usando roupas pretas
ou camufladas e longas botinas. Numa viagem de trem, o repórter
presenciou o silêncio que a entrada de uma dupla desses jovens
provocou num grupo de rapazes até então ruidosos.
A partir daí, ouvia-se apenas o som de garrafas de cerveja
que a dupla destampava e esvaziava, uma após a outra, numa
atividade acompanhada daquelas, digamos, manifestações
sonoras de satisfação corporal que o dicionário
define como eructação.
Consciência
A Alemanha é a campeã mundial (Weltmeister, palavra
em alta porque designa também a Copa do Mundo, que mobiliza
o país) de doações para nações
em calamidade casos do tsunami na Ásia ou do terremoto
no Paquistão. Às vésperas do Natal, um debate
na TV aborda o tema. Seria isso uma expressão de real solidariedade
ou manifestação de consciência pesada pelo passado?
Um dos debatedores, um padre, diz que não participaria de
jantares beneficentes reunindo celebridades porque se sentiria mal
sabendo que os pobres a quem se destinam as doações
por exemplo, os moradores do que chamou de haciendas do Rio
de Janeiro jamais teriam uma mesa tão farta. Não
há consenso entre os demais debatedores jornalistas,
ativistas, um ministro da área social e professores universitários.
O assunto deriva para o que foi apontado como uma contradição:
é muito mais fácil arrecadar dinheiro destinado a
outros países do que para campanhas que envolvam questões
da própria Alemanha. As pessoas acham que aqui não
há quem realmente precise, diz o ativista social. Um
exemplo apontado foi a decadência das escolas alemãs.
Em uma delas, o sistema de aquecimento quebrou e os dias gelados
do inverno estavam passando sem que fosse providenciado o conserto.
O caso virou notícia nacional.
foto: Paulo Hebmüller
Parque Olímpico de Munique. Ao fundo, o
prédio-sede da BMW
A
DDR
Leipzig e Wittenberg foram as únicas cidades da antiga Alemanha
Oriental (oficialmente República Democrática Alemã,
DDR na sigla em alemão, que é o termo comumente usado
no país) visitadas pelo repórter. Leipzig por razões
culturais e históricas, entre elas o fato de que ali viveu
Johann Sebastian Bach, cujos restos mortais repousam na Igreja de
São Tomé. Também foi na cidade que teve início,
com pequenas reuniões semanais na Igreja de São Nicolau,
o movimento pacífico que derrubou o regime comunista, em
1989.
Embora hoje seja um verdadeiro canteiro de obras e abrigue lojas
finíssimas das mais caras grifes do mundo, Leipzig ainda
ostenta exemplares da arquitetura padronizada e sem inspiração
da velha DDR. No alto de um dos conjuntos de prédios preservados,
nas proximidades da estação central de trem, lêem-se
as boas-vindas à cidade em alemão, francês e
russo.
Para um luterano que tem essa chance, ir à Alemanha e não
visitar Wittenberg é como, com o perdão do clichê,
um católico devoto ir a Roma e não ver o papa. Foi
nessa cidade que se deflagrou o movimento da Reforma Protestante
quando, segundo a tradição, o monge Martim
Lutero pendurou na porta da Igreja do Castelo, em 31 de outubro
de 1517, suas 95 teses contra as indulgências e outras práticas
da Igreja à época.
A Reforma dividiu não apenas a Alemanha ainda hoje
o norte é maciçamente protestante e o sul, também
maciçamente católico , mas trouxe desdobramentos
fundamentais para a história do mundo ocidental. No último
dia 18 completaram-se 460 anos da morte de Lutero e, para o ano
que vem, já estão sendo preparados muitos eventos
para celebrar os 490 anos do início da Reforma.
Wittenberg recebe um fluxo intenso de turistas do mundo inteiro,
especialmente dos países de maior presença protestante,
que querem conhecer o palco dos acontecimentos decisivos da Reforma.
Até por isso, há muito tempo incorporou o nome Lutherstadt
(Cidade de Lutero) à sua designação oficial.
Nos tempos da DDR, embora os cultos não tenham sido proibidos,
o governo tentou desvincular a cidade de sua vocação
religiosa, transformando-a em Chemiestadt Wittenberg (Cidade da
Química). A tentativa de mudar o nome, nos anos 60, não
vingou, mas a fama de poluidores que os regimes do Leste Europeu
carregavam ainda parece se justificar. Os campos da antiga DDR foram
os únicos em que o repórter viu velhas chaminés
cuspindo fumaça preta, adensada pela ação do
frio, em plantas industriais algo carcomidas que lembram as instalações
da Usina de Energia Nuclear de Springfield, do desenho animado Os
Simpsons.
Decadência
Em Munique ou qualquer das várias cidades grandes ou pequenas
em que esteve, o repórter não conseguia conter seu
espanto ao ver crianças de 7 ou 8 anos saindo das escolas,
mochilas enormes às costas, indo sozinhas para casa, em alegre
algazarra com os colegas. Difícil imaginar cena semelhante
nas grandes cidades brasileiras, onde a entrada e saída dos
alunos transformaram-se em verdadeiras operações de
guerra que envolvem seguranças vigiando não apenas
o lado de dentro dos muros dotados, claro, de câmeras,
grades e aparatos de todo tipo , mas também agentes
monitorando as calçadas e as caóticas filas duplas
ou triplas em que os pais se organizam do lado de fora.
O repórter, é necessário confessar, ficou com
certa inveja daquilo que na televisão se chamou de decadência
das escolas alemãs.
foto: Paulo Hebmüller
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