Da proibição ao dever do prazer, as relações
afetivas na sociedade brasileira desembocaram no que a historiadora
Mary Del Priore classifica como ditadura do orgasmo.
Em seu livro História do amor no Brasil, a professora aposentada
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP investiga o tema desde o Brasil do século 16 até
a chamada revolução sexual dos anos 60 e 70, para
problematizar o lugar do amor nos dias atuais. Uma vez que
o desejo de sexo termine, as pessoas são incapazes de valorizar
outros aspectos da relação e querem simplesmente trocar
de parceiro, afirma a professora. Ou, se não tiverem
orgasmo com um parceiro, já nem se casam com ele.
Mary Del Priore já havia sido premiada pelos livros História
das crianças no Brasil e História das mulheres no
Brasil. Em uma investida arriscada, seu último lançamento,
apesar de trazer um tema que facilmente cairia nas necessidades
do mercado editorial, não abre mão da pesquisa histórica
séria. A historiadora legitima seu espaço: Estudar
a história do amor segue, aos olhos das severas ciências
que nos governam, um grave estigma de ligeireza. Azar o delas,
escreve. E onde encontrar a história do amor? Em cartas anônimas,
diários, documentos da Inquisição, processos
judiciais e textos literários que compõem um cenário
essencialmente marcado pela dicotomia: o amor como prática
se firma numa sociedade escravocrata, patriarcal e mestiça,
enquanto de outro lado ocorre a idealização de um
sentimento sublime.
A formação tardia da vida privada brasileira conferiu
algumas particularidades às relações afetivas
na Colônia. Se na Europa o quarto íntimo foi o lugar
das cenas amorosas, aqui as casas de parede-meia, as cafuas cobertas
de capim e as moradias senhoriais repletas de agregados, escravos
e parentes não ofereciam muitas oportunidades de vivências
íntimas. Não devemos pensar nossa cultura como
a da falta. Ela fez do ar livre o espaço para os encontros
amorosos, afirmou a historiadora. Mas não era só
nas praias, matos e roças ao redor das cidades que os casais
se encontravam. A falta de iluminação nas igrejas
favorecia gestos amorosos nas missas do final da tarde. Vez
por outra, Deus dava licença ao Diabo, brinca Mary.
Paradoxalmente, o rígido controle da Igreja sobre os fiéis
favoreceu a invasão do profano no sagrado. As cerimônias
religiosas, um dos únicos momentos que não despertavam
suspeitas de pais e confessores a respeito de seus filhos, tornaram-se
palco de paqueras. Moças se arrumavam para arranjar maridos,
homens deixavam cavalos amarrados do lado de fora da igreja para
se exibirem.
Maus
dias
Até o século 20 os casamentos sempre foram um negócio.
Uma mulher sem dotes, por exemplo, não conseguia casar e
morava como agregada na casa de algum parente. A idéia que
a Igreja estabeleceu do casamento indissolúvel era usada
como argumento para a escolha rigorosa do cônjuge, que nunca
deveria ser feita com base nos sentimentos. Provérbios da
época diziam: Quem casa por amores, maus dias, piores
noites. Segundo a ética católica, sexualidade
associava-se ao pecado e deveria ser permitida somente para a procriação.
A autora segue a tese de Jean-Louis Flandrin, que foi seu professor
na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris,
e para quem dedica sua obra. Segundo ele, a Igreja Católica
colocou tantas dificuldades para que as pessoas se gostassem dentro
do casamento que o sentimento apaixonado acabou se transferindo
para fora dele. O casamento, então, é o lugar
da amizade, respeito, negócios, menos do amor. Seguindo
também os passos de Denis de Rougemont, com base no relato
de Tristão e Isolda, Mary expõe uma das concepções
do amor como sendo necessariamente infeliz e cheia de dificuldades,
na qual a união total dos amantes só se dá
na morte. A herança que a poesia trovadoresca deixou
para o Ocidente foi a busca do amor impossível, escreve.
É somente no século 19 que o amor romântico
começa a exercer sua influência, associando amor e
liberdade como coisas desejáveis não mais porque quebravam
a rotina (como cantavam os trovadores), mas porque traziam a realização
pessoal. A historiadora classifica aquele século como um
século hipócrita, que reprimiu o sexo mesmo
sendo obcecado por ele. Foi quando se institucionalizou o bordel
no Brasil, que procurava copiar a casa burguesa para que os homens
desfrutassem da sexualidade que não existia nos seus lares.
A sexualidade só estava à disposição
dos homens. As mulheres continuavam fechadas em casa lendo romances,
aponta Mary.
A sociedade da comunicação do século 20 desatou
as amarras que puniam o prazer. Revistas, rádios, cinemas
e, depois dos anos 50, a televisão, ficam bombardeados por
novas formas de afetividade. O beijo torna-se o emblema do casal
apaixonado. O acentuado processo de urbanização cria
novos espaços de entretenimento. Não é
mais o calendário religioso que proporciona às pessoas
o momento de encontro, afirma a professora. Nos anos 60, a
chegada da pílula anticoncepcional se constitui em uma via
para as mulheres se liberarem da obrigação de fazer
sexo com o intuito de procriar e permite a erotização
de seus corpos. Enfim, chegado o prazer como direito, não
mais proibição, a autora aponta para o século
21: A liberdade excessiva pós-anos 90 nos levou à
ditadura do prazer. Temos que nos questionar sobre isso.
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