Foi de professores e orientadores de uma escola pública
que a pedagoga Patrícia da Silva Sampaio ouviu que seria
loucura levar contos dos irmãos Grimm para ler
para seus pequenos alunos. Eles não conseguem se concentrar;
você não vai conseguir: frases como essas
não a intimidaram. Demorou apenas um mês para que as
crianças não apenas se acostumassem à experiência,
mas passassem a esperar pela história e história
de qualidade, ressalta Patrícia. As atividades
de leitura na escola têm que ser programadas e sistematizadas.
Crianças de 1ª a 4ª série têm que
fazer visitas semanais à biblioteca escolar. É preciso
levá-las para os espaços onde estão os livros
e promover, por exemplo, rodas de leitura, afirma.
Patrícia compartilha com a amiga Ana Flavia Alonço
Castanho não só a trajetória acadêmica
na Faculdade de Educação da USP, mas também
o amor pelos livros, que vem desde a infância. Exatamente
para investigar como e por que as crianças podem desenvolver
a mesma relação prazerosa com a leitura desde cedo,
ambas acabam de defender dissertações de mestrado
sobre o tema no Instituto de Psicologia da USP. Orientada por Maria
Thereza Costa Coelho de Souza, Ana Flavia investigou A formação
do leitor: aspectos afetivos e cognitivos. Já Patrícia,
com orientação de Maria Isabel da Silva Leme, trabalhou
sobre O papel do outro social na formação da
criança leitora. A convicção comum das
pesquisadoras é de que, quanto antes for plantado o gosto
pelos livros, associado a momentos de prazer e a atividades lúdicas,
maior será a chance de que a criança se transforme
num adulto que terá a leitura como companhia freqüente.
Exemplo Ana Flavia entrevistou 48 alunos de 2ª
a 4ª série do ensino fundamental de uma escola pública
de São Paulo, às quais pediu que lessem e recontassem
um conto infantil. Entre os resultados do trabalho, concluiu que
as crianças que se diferenciaram dos demais pela leitura
fluente e pela recontagem interpretativa eram, quase sempre, as
que se descreviam como leitoras ou que citavam a leitura entre as
coisas de que mais gostavam de fazer. A presença da
leitura na hierarquia de valores pessoais atua como mobilizador
do desenvolvimento de habilidades cognitivas de leitura, pois a
presença dessas representações também
precede à construção de uma maior habilidade
de leitura, diz a pesquisadora. Um dos autores nos quais Ana
Flavia se baseou foi o suíço Jean Piaget, para quem
toda ação possui componentes cognitivos e afetivos.
A afetividade mobiliza a ação, e o interesse
em pessoas e objetos mobiliza a construção do conhecimento,
explica.
A presença de livros em casa ou o incentivo dos pais podem
ser fatores que influenciam o desenvolvimento do gosto pela leitura
mas a relação nem sempre é tão
direta nem simples assim. Há casos de pais que têm
o hábito de ler e o valorizam, mas o mesmo não acontece
com seus filhos; enquanto uma criança vinda de um ambiente
familiar sem esse estímulo pode se tornar leitora. Apesar
de se espelhar em valores presentes nas suas redes de interlocução,
as crianças têm um espaço de liberdade para
fazer seu percurso próprio, diz Ana Flavia. Portanto,
continua, a construção da leitura de maneira
positiva pode ser decisiva. Para as crianças que não
têm essa valorização, vai ser mais difícil
ser persistente.
Patrícia Sampaio trabalhou com oito crianças de 4ª
e 5ª séries consideradas boas leitoras (ou seja, que
lêem muito e gostam de ler). Sua pesquisa constatou a importância
da presença de exemplos positivos para estimular ou despertar
o interesse da criança pela leitura. Uma menina de 11 anos,
por exemplo, citou sua tia, professora: Era ela a mulher
cultura! Ela sabia de tudo! E sempre tinha um livro! Eu quero
ser que nem ela, disse a garota. Os outros sociais que
tornaram possível o processo de letramento dessas crianças
demonstraram estar materializados nos sujeitos-leitores significativos
que conviveram com elas, nos objetos-livros aos quais essas crianças
tiveram acesso e nos lugares e experiências relacionados à
leitura por ela vivenciados, conclui a pesquisadora.
Patrícia e Ana Flavia: hábito de leitura pode nascer
em casa, mas deve ser incrementado na escola
Pré-escola
Ana Flavia e Patrícia defendem que não é necessário
esperar que a criança entre na 1ª série para
que seja apresentada ao mundo do livro e da leitura. O trabalho
de letramento emergente já leva a uma relação
positiva com a leitura antes mesmo da alfabetização,
diz Ana. Aqui é preciso fazer a distinção entre
letramento e alfabetização. O primeiro é definido
pela professora Magda Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais,
como conjunto de práticas sociais de leitura e de escrita
mais avançadas e complexas que as práticas do ler
e escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita.
Em outras palavras, o letramento que pode ocorrer, por exemplo,
com a leitura de histórias para crianças em idade
pré-escolar tem foco na construção de
conhecimento, enquanto a alfabetização é a
decodificação do código escrito. Crianças
que tiverem um bom letramento emergente vão se desenvolver
melhor como leitoras e ver que a leitura não é apenas
útil para a escola, mas importante para elas, que já
iniciariam a alfabetização com outra motivação,
diz Ana Flavia.
Numa realidade em que é preciso mais do que simplesmente
juntar letras para ler e construir sentidos, o escritor argentino
Alberto Manguel citado por Ana Flavia diz que todos
lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar
o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar
a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como
respirar, é nossa função essencial.
Para as pesquisadoras, a palavra de ordem para que os alunos leiam
mais e melhor é: investimento na pré-escola. O
conjunto de valores com que a criança chega na 1ª e
2ª séries vai ser decisivo. É preciso transferir
o esforço para a pré-escola, diz Ana Flavia,
para quem a anunciada criação de mais um ano no ciclo
escolar pode ser muito bem aproveitada se os professores derem chance
para contatos afetivos e significativos com os livros e a leitura.
A divulgação de trabalhos e pesquisas como suas dissertações
de mestrado, acreditam, pode contribuir para difundir essas idéias.
Para Patrícia Sampaio, o processo deve incluir a formação
contínua de professores e orientadores. É preciso
ser leitor para formar leitores, afirma. A pesquisadora ressalta
que, embora a família tenha um papel importante no estímulo
à leitura, não se deve desviar o foco que precisa
estar na melhoria educacional da sala de aula. Nela, também
é preciso migrar dos textos exclusivamente didáticos,
que muitas vezes estão dissociados da realidade dos alunos
e não pertencem às suas práticas sociais, para
leituras que sejam significativas e prazerosas. Das histórias
em quadrinhos até livros de aventuras ou ficção
volumosos como o megasucesso global da coleção Harry
Potter, vale é descobrir que ler é bom e vale a pena.
Trilhando esse caminho, pode-se compreender melhor a intensidade
do depoimento da professora Marilena Chauí, docente da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
registrado em 2003 pelo boletim da Livraria Cultura: O livro
abre para mundos novos, idéias e sentimentos novos, descobertas
sobre nós mesmos, os outros e a realidade. Ler, acredito,
é uma das experiências mais radiosas de nossa vida,
pois, como leitores, descobrimos nossos próprios pensamentos
e nossa própria fala graças ao pensamento e à
fala de um outro. Ler é suspender a passagem do tempo: para
o leitor, os escritores passados se tornam presentes, os escritores
presentes dialogam com o passado e anunciam o futuro.
Portanto, contribua para que seus filhos, sobrinhos ou netos descubram
ou intensifiquem esse prazer por exemplo, levando-os para
visitar a Bienal do Livro (veja a programação nas
páginas 15 e 16). Afinal como ensina mestre Antonio
Candido em texto utilizado como epígrafe na dissertação
de Patrícia Sampaio , negar a fruição
da literatura é mutilar a nossa humanidade.
Biblioteca
escolar para a comunidade
Cinqüenta
anos de atividade profissional como professora no ensino fundamental,
na graduação e pós-graduação
da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
além de grande participação em
entidades associativas , deram à bibliotecária
Neusa Dias de Macedo experiência suficiente para dizer
que a biblioteca escolar é muito mais importante
do que a biblioteca universitária. É nela,
defende, que as crianças devem encontrar as ferramentas
para ampliar seu universo de experiências, conhecimentos
e informações, contribuindo decisivamente para
sua formação curricular e profissional ao longo
de toda a vida.
A longa trajetória da professora foi reunida num grande
volume lançado pela Editora Senac em co-edição
com o Conselho Regional de Biblioteconomia da 8ª Região.
Biblioteca escolar brasileira em debate da memória
profissional a um fórum virtual apresenta uma grande
riqueza de conteúdos e reflexões em duas partes.
Na primeira, Neusa Dias de Macedo utiliza seu próprio
percurso profissional iniciado como normalista e que
inclui duas graduações, mestrado nos Estados
Unidos e doutorado na USP, além de trabalho em várias
entidades antes e depois da aposentadoria na docência,
em 1993 como esteio para analisar a realidade de descaso
em relação às bibliotecas escolares no
País. Sem livros de qualidade nem programas desenvolvidos
para orientar a leitura, a criançada e os jovens
ficam na rua, enquanto muitas coisas positivas poderiam ser
feitas na biblioteca escolar, constata.
A segunda parte do livro traz os debates e conclusões
de um inédito fórum virtual que reuniu 14 profissionais
de diferentes Estados do País. A base do debate foi
o Manifesto para a Biblioteca Escolar, lançado pela
Unesco em parceria com a Ifla (sigla em inglês da Federação
Internacional de Associações e Instituições
Bibliotecárias). O texto, aprovado em 1999, conclama
os governos a prover acesso a serviços e à informação
a todos os membros da comunidade escolar e incentivar a cooperação
entre professores, gestores e administradores da área,
pais, bibliotecários, profissionais da informação
e grupos da comunidade.
Está comprovado que bibliotecários e professores,
ao trabalharem em conjunto, influenciam o desempenho dos estudantes
para o alcance de maior nível de literacia na leitura
e escrita, afirma o manifesto, cuja íntegra está
reproduzida no livro. Uma das grandes conquistas do
debate foi focalizar a necessidade premente de que o bibliotecário
e o professor, urgentemente, trabalhem de mãos dadas,
diz Neusa, para quem a realidade atual é de desconhecimento
mútuo das atividades de um e de outro. Ambos
são educadores e devem interagir e compartilhar conhecimentos
e práticas, em prol de reforço ao ensino-aprendizagem
mais coeso, tendo a biblioteca escolar como parceira da escola.
Sem-livros
De acordo com o Censo Educacional de 2004, divulgado pelo
Ministério da Educação, de um total de
58,6 milhões de estudantes matriculados na educação
básica e profissional do País, 27,6 milhões
não têm bibliotecas na escola ou seja:
48% dos estudantes brasileiros podem ser chamados de sem-livro
ou sem-biblioteca em seu local de estudo.
Das 214 mil escolas que responderam ao Censo, 56,7 mil (26,4%)
afirmaram possuir biblioteca dessas, 35,1% são
privadas e 64,9%, públicas. Das escolas brasileiras
que a possuem, 87,4% estão em áreas urbanas
e 12,6% em áreas rurais. Apenas 2% das instituições
de ensino básico e profissional têm um bibliotecário
como profissional responsável pelo setor. Nas demais,
o responsável é um professor, um profissional
técnico-administrativo ou outras pessoas.
Para Neusa, é preciso alertar sociedade e governos
sobre os gargalos que impedem que os livros cheguem às
mãos dos alunos. Briga-se por tudo na educação,
menos pela biblioteca. Os documentos públicos da área
da educação esquecem dela e do bibliotecário,
diz. A professora afirma que há um grito surdo
acadêmico-profissional para que o País
tenha bibliotecas modernas, especialmente no ensino público.
Também é preciso, defende, ter fé
na abertura das bibliotecas às comunidades. Num
país como o nosso, a biblioteca escolar tem que ser
comunitária. Os pais teriam que entrar nelas para saber
o que elas são, afirma. Nós falamos
muito para nós mesmos, mas temos que estar ligados
com a comunidade. Ela tem muito a nos dizer.
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A
missão de formar leitores
Quando
trabalhava numa das mais tradicionais escolas particulares
de Porto Alegre, na década de 1980, o professor Paulo
Coimbra Guedes foi um dos idealizadores de um projeto de longo
prazo para formação dos alunos em língua
portuguesa e literatura brasileira. No primeiro ano do ensino
médio, estudava-se literatura gaúcha contemporânea
(para aproximar a literatura da vida real); no
segundo, estudava-se literatura brasileira do século
20, também com uma dimensão de tempo não
tão distante; e no terceiro fazia-se a revisão
histórica das escolas e movimentos a partir do século
16.
Na segunda série os alunos tinham uma tarefa
obrigatória: chegar no fim do ano com um livro escrito
com nossa orientação, claro, explica
Guedes. Saíam algumas coisas muito boas, o pessoal
que chegava no segundo ano pedia para ler o livro do fulano
do ano anterior. O resultado mais bonito era que, quando eles
chegavam na terceira série e tinham que ler O Guarani,
nenhum dizia: mas que saco esse Guarani. O livro
passou a significar trabalho. Eles sabiam que doía
botar uma palavrinha atrás da outra para escrever.
Mudou a relação deles com o livro a partir daí,
conta o professor.
Docente do Instituto de Letras da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1994 Guedes defendeu tese de
doutorado na qual afirmava que a primeira tarefa do professor
de língua portuguesa é formar leitores, usando
como padrão os autores da literatura brasileira. Só
faz sentido dar aula de português para quem é
leitor, diz. No ensino fundamental, podemos dar
um monte de livros para a criançada ler e dizer: vocês
vão escrever como o que vocês lerem nesses livros.
Claro que vamos discutir uma série de coisas como concordância,
mas, basicamente, vamos discutir a inteligibilidade, antes
da adequação a uma norma culta que a gente não
sabe qual é e antes da boniteza.
Não à-toa, sua tese, defendida na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, intitula-se
Ensinar português é ensinar a escrever
literatura brasileira.
Vale
tudo
Para Guedes, vale tudo para o aluno descobrir que ler
é uma coisa interessante. Nesse tudo
entram romances água-com-açúcar como
Sabrina e Júlia, revistas de histórias em quadrinhos,
Paulo Coelho etc. O professor oferece caixas de livros com
várias opções, e depois discute com os
alunos o que eles leram. É claro que tu vais
botar umas pedras no caminho, vais dar Monteiro Lobato, Ruth
Rocha e outros. Mas não vais discutir o livro do Paulo
Coelho, e sim o do Lobato, explica. Nessa etapa,
o importante é fazer com que eles descubram que ler
é bom. A gente não vira leitor porque leu o
Machado de Assis, e sim porque leu o Tarzan ou o Zorro
coisas agradáveis quando a gente estava se formando
leitor. Não dá, por exemplo, para começar
com Monteiro Lobato, porque ele é difícil. Tens
que preparar teu aluno para chegar a isso.
Paulo Guedes integra a Comissão para Definição
da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa e Promoção
da Língua Portuguesa (Colip), ligada ao Ministério
da Educação. No final do ano passado, a partir
da Colip foi criado o Instituto Machado de Assis, que tem
como um de seus objetivos ser referência para o ensino
e a formação de professores para a área.
Nessas atividades, o docente gaúcho carrega a experiência
do Núcleo de Integração Universidade-Escola
da UFRGS. Um dos carros-chefe do núcleo é o
projeto Ler e Escrever: Compromisso da Escola, que defende
que a leitura e a escrita são atividades que cabem
a todos os professores em todas as disciplinas, e não
exclusivamente ao professor de língua portuguesa. Os
textos-base do projeto estão reunidos no livro Ler
e escrever: compromisso de todas as áreas, já
em sexta edição pela Editora da UFRGS. Também
há um bom material do projeto à disposição
na internet, no endereço eletrônico: www.tvebrasil.com.br/SALTO/boletins2002/ler/ler0.htm
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