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A região do sul do Piauí é a maior reserva de caatinga do planeta, conserva mais de 3 mil espécies de plantas e possui uma imensa riqueza em pinturas rupestres: “Será que é mesmo necessário fazer assentamento nessa área?”, pergunta a
pesquisadora Niède Guidon


A
ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assinou portaria para implementar um corredor ecológico de 412 mil hectares, equivalente a mais de 400 mil campos de futebol, visando a facilitar a dispersão de vegetais e a circulação de animais numa área localizada no sul do Estado do Piauí, entre os Parques Nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões. Nessa região há mais de 3 mil espécies de plantas, muitas delas endêmicas (que só vivem ali). A área possui a maior reserva de caatinga do planeta. Rica em sítios pré-históricos repletos de pinturas rupestres e pedras lascadas, é considerada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco desde 1991.

O corredor ecológico interliga os Parques Nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões e deixa de formar uma área isolada de vegetação. O conglomerado desses três conjuntos – pouco mais de 1 milhão de hectares – forma agora um mosaico integrador de áreas de conservação. A manutenção da biodiversidade é essencial para a evolução de sistemas necessários à vida da biosfera e, portanto, importante para promover a reprodução sexuada e assexuada dos organismos. A Política Nacional da Biodiversidade (PNB) afirma que a “diversidade biológica tem valor intrínseco”, merecendo zelo, independente de seu valor para o homem.

O corredor ecológico deve ser gerenciado por um conselho de entidades governamentais e não-governamentais, lançando o desafio de associar proteção ambiental-cultural e desenvolvimento socioeconômico. Para tanto, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pretende assentar no corredor 1 mil famílias (5 mil pessoas) de trabalhadores rurais de diversas regiões.

Invasões

Na localidade Boqueirão Grande (conhecida como Serra Branca), as invasões em terras do Estado proliferam, exemplo de degradação cultural e ambiental. Os lavradores abrem estradas e desmatam a caatinga para a produção de agricultura de subsistência: feijão, milho, melancia e mandioca. Eles se instalam em tocas – na base de imensos paredões de rochas – e, com troncos das árvores derrubadas, constroem camas, cercas, portas e até depósitos para alimentos, instrumentos agrícolas e armas. A fumaça negra dos fogões a lenha e das lamparinas invade e cobre de fuligem o teto de grutas milenares, manchando pinturas rupestres. Já há 25 sítios invadidos. E, lembrando as pichações nas grandes cidades, denotam-se inscrições gravadas na pedra, que fazem imitar e concorrer grosseiramente com a arte rupestre.

Indignada, a arqueóloga Niède Guidon, fundadora e presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), afirma: “Será necessário fazer assentamentos numa área nobre de proteção ambiental-cultural e sem recursos hídricos? Como haverá desenvolvimento na seca da caatinga? Estou aqui há 35 anos e jamais vi alguém conseguir algo. Não fizeram análises dos solos, da topografia acidentada, de viabilidade econômica, dos produtos cultiváveis, de mercados potenciais. É um grande adensamento que vai ajudar a dilapidar rapidamente um patrimônio mundial”.

Liberar o corredor ecológico em documento é tão frágil quanto a recente criação do Parque Nacional Serra das Confusões (1998), unidade não aberta a visitação, onde o único funcionário do Instituto Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis (Ibama) nada pode fazer nos seus 502 mil hectares. Diariamente são alvejados ali animais em extinção, como o tamanduá-bandeira, o tatu-canastra, o zabelê, o veado-campeiro, a onça-pintada e a jacutinga, além do queixada e do caititu. Em 2003, foi feito um pedido à Unesco para que toda a área (corredor ecológico e os dois parques nacionais) fosse declarada Patrimônio Mundial Natural. O relatório é favorável, desde que haja estrutura semelhante à do Parque Nacional Serra da Capivara.

Não por acaso, o Parque Nacional Serra da Capivara, administrado em parceria pela Fumdham e Ibama, é o melhor sistema do mundo quanto à proteção do patrimônio rupestre – seu padrão de excelência se diferencia dos demais parques nacionais brasileiros. Hoje, com 800 sítios arqueológicos, é considerado pelo ONU e Unesco o parque nacional mais bem equipado da América Latina. Conta com 70 técnicos nos seus 129 mil hectares, dispondo de postos de vigilância a cada dez quilômetros. Possui 123 sítios arqueológicos para visitação e 300 quilômetros de estradas e trilhas turísticas. Mobilizou investimentos na ordem de US$ 20 milhões, comportando padrão internacional em região miserável.

São Raimundo Nonato, cidade próxima, é um município esquecido do sertão piauiense. Saltam aos olhos as dificuldades com limpeza pública, urbanização, energia elétrica, abastecimento de água, telefonia. O acesso pelas estradas é um mosaico de buracos, via Teresina (PI) ou Petrolina (PE), uma tortura ao viajante e um entrave ao desenvolvimento.

Tesouro

O tesouro imagético da região sintetiza uma estética singular, que não oculta o processo de violência e genocídio dos índios tapuias. Verifica-se que a cultura nativa não era inferior à portuguesa ou à negra, mas diferente. Verdadeiro museu a céu aberto, evidencia traços artísticos com expressiva carga narrativa, representando homens, animais e figuras geométricas. Há cenas simbólicas de caça, dança, sexo, rito e luta. “O mais importante é garantir a presença desses sítios para extrair resposta a duas perguntas fundamentais: identificação da linhagem produtora e posicionamento cronológico”, afirma a pesquisadora Anne-Marie Pessis, diretora científica da Fumdham.

O Sítio do Boqueirão da Pedra Furada é o local mais antigo e importante das Américas. Uma farta fauna fóssil foi revelada: cavalos, elefantes, lhamas, mastodontes, preguiças, tatus gigantes. A convivência desses animais com o homem desapareceu quando, por volta de 12 mil anos atrás, o clima mudou e transformou a floresta tropical úmida. Escavações arqueológicas permitiram a descoberta de vestígios, que – datados pelo Carbono 14 – alcançam até 48 mil anos, revelando dados sobre o povoamento ancestral das Américas. A pesquisa arqueológica tenta demonstrar que, ao contrário do afirmado pela teoria clássica antiga, o homem adentrou o continente americano muito antes de 30 mil anos.

Deve-se garantir direitos básicos de sobrevivência ao povo sertanejo. Um caminho possível para o corredor ecológico e o Parque Nacional Serra das Confusões é a criação de Núcleos de Apoio à Comunidade, como já é desenvolvido no Parque Nacional Serra da Capivara: escola, posto de saúde, cursos profissionalizantes, atividades econômicas alternativas (apicultura, cerâmica, plantas ornamentais, turismo). Isso garante às novas gerações locais orgulho e zelo pelo lugar em que vivem. Aziz Ab’Sáber, geógrafo e Professor Emérito da USP, tece críticas à política ambiental do governo Lula, reconhecendo que falta um conjunto de estratégias para as questões nacionais, regionais e setoriais.

Apesar de todos os enfrentamentos, Niède Guidon desbrava solos sertanejos, dirigindo sua caminhonete de tração nas quatro rodas. Como alavanca para um futuro pólo turístico mundial, gerando desenvolvimento sustentável, sonha com o Aeroporto Internacional Serra da Capivara, promessa federal e estadual. Mas ela trabalha com “os pés no chão”. Num dos espaços da Fumdham, passa-se sob um portal com inscrições em italiano da Divina comédia de Dante Alighieri: Lasciate ogni speranza voi che entrate (Deixai qualquer esperança, vós que entrais).

Atílio Avancini é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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