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E
m janeiro deste ano, o ministro da educação da França, Gilles de Robien, surpreendeu os educadores franceses com uma atitude pouco comum naquele país: publicou uma circular desaconselhando práticas pedagógicas influenciadas pelas concepções que, segundo ele, levam em conta aspectos ideovisuais no ensino e na aprendizagem da leitura (rotulados também como métodos globais) e, em contrapartida, recomendou enfaticamente o uso de alguns procedimentos didáticos centrados na decodificação e na capacidade de reconhecer palavras, que são as premissas basilares de uma tradicional linha de alfabetização, o método fônico (MF), que desde a década de 70 havia sido descartada por boa parte dos educadores e pesquisadores franceses sob o argumento de que a excessiva ênfase no ensino sistemático da correlação grafema-fonema dificultava a formação de leitores proficientes.

Nas palavras do ministro Robien ressoa, além de um tom severo – “Espero que essa instrução seja posta em prática sem delonga” –, uma convicção subsidiada por uma organização fundada em 1995, o Observatoire National de La Lecture (ONL), que sistematiza e reforça um dos pólos discursivos do ensino da leitura na França. Em suas entrevistas deste ano, o ministro repete exaustivamente que não é bem ele que afirma a superioridade da metodologia fônica e a inferioridade dos métodos globais, mas sim os cientistas, os especialistas da neurociência que provaram ser o cérebro humano mais propenso à aprendizagem da leitura por um processo silábico do que por meio de práticas de leitura que levam em conta as unidades maiores e seus contextos (frases, textos, revistas, livros), como fazem os construtivistas, sociointeracionistas e outros.

Em fevereiro de 2006, um mês após, o ministro brasileiro da Educação, Fernando Haddad, também veio se posicionar: “Na oportunidade em que estamos mudando a estrutura e o padrão de financiamento da educação (com a aprovação do Fundeb), entendemos que seria interessante iniciar um debate sobre alfabetização, tendo em vista os altos índices de repetência na primeira série do ensino fundamental. O ministério não está tomando partido de nenhuma corrente, mas, se o mundo inteiro fez esse debate, achamos que é preciso fazê-lo no Brasil também” (Folha de S. Paulo, 11 de fevereiro de 2006, caderno Cotidiano).

É muito importante e sempre oportuno debater a alfabetização no Brasil. Entretanto é preciso interpretar essa palavrinha – debate – dessa forma, posta no singular. É preciso lembrar que, na última década, houve (e ainda está havendo) “um debate”, mas parcial, bem parcial. Nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França, as organizações ligadas ao MF conseguiram elevar o tom de voz e aparecer nas mídias como “o debate”, como o novo pólo vencedor de uma antiga contenda. Claro que para além desse debate estão acontecendo muitos outros, bem mais amplos, que talvez não se enquadrem nessa abrangência hiperbólica que o ministro está assumindo nessa sua entrevista (que “o mundo inteiro fez”).

Polarização

Uma leitura mais atenta de alguns documentos produzidos por esse especial “debate” e dos protestos que suscita só evidencia que é preciso dar um corte nessa polarização – método fônico versus métodos globais – para sairmos de vez desse jogo das sucessões de métodos no poder. Há mais de cem anos que essa dança da sucessão vem ocorrendo, com algumas variações, mas quase sempre mantendo um script básico: as avaliações revelam números alarmantes no campo da leitura; alguns especialistas atribuem a responsabilidade a um método de ensino ou a uma linha de pesquisa; as autoridades acabam concordando que é preciso remover um método e implementar um “novo”; e, então, em nome desse novo, um grupo se implanta no poder e movimenta a maquinaria discursiva e econômica da leitura e da alfabetização.

Como a queda dos números se dá muito lentamente e como é impossível saber antecipadamente se o método novo vai mesmo formar leitores proficientes, o grupo fica um bom tempo no poder. Até que um novo ministro aceite reassumir o pólo contrário para tentar dar conta da renitência dos números.

A idéia de que há um método eficiente que surge para excluir o ineficiente tem sido sistematicamente combatida há muito tempo pelos pesquisadores e educadores em geral, embora as redes escolares quase sempre, premidas pelas suas cruciais demandas, acabem aceitando de bom grado certa versão facilitada desta ou daquela linha teórica. É bem possível, por exemplo, que um pesquisador consiga isolar um dos aspectos da aprendizagem da leitura – como o fez Emília Ferreiro e como talvez tenham feito alguns pesquisadores que defendem o MF –, entretanto não é aconselhável fazer desse conhecimento parcial um “método” a ser adotado nas redes escolares, sobretudo como quer o MF: à revelia das diferenças, ou seja, o que serve para os Estados Unidos, Inglaterra e França deve servir para o Brasil; o que dá certo em laboratório pode ser aplicado nas escolas brasileiras.

Enfeixar diversas conclusões teóricas buscando uma síntese útil e contextualizada e refletir sobre ela em função de demandas contextualizadas constituem dois movimentos fundamentais em educação, que exigem muito esforço coletivo e, sobretudo, coragem para aceitar os limites desta ou daquela abordagem. Ao mesmo tempo, exigem fôlego para fazer das singularidades brasileiras um campo de reflexão e de novas pesquisas.

Teorias e políticas – Nas décadas de 80 e 90, no Brasil e no mundo, construiu-se um intenso entrecruzamento de teorias, uma rede interdisciplinar veio tecendo um estado de conhecimento rico e denso que, se por um lado está disponível para os educadores na forma de bibliografia ou mesmo de cursos universitários, também se configura como um desafio bem complexo, sobretudo quando se pensa em sua transposição para o campo aplicado. Como se não bastasse, a situação das redes escolares e do próprio ensino em geral veio se tornando bem mais complexa. Se antes uma perspectiva homogeneizante se impunha, já que se menosprezavam as diferenças e se apregoava a elitização, hoje as idéias de diversidade e de heterogeneidade dão o tom discursivo, embora quase sempre diante de um sistema escolar ineficiente, já que os gestores se apressam em assumir o discurso hegemônico, o politicamente correto, mas nem sempre dão conta de transformar as redes escolares para que elas possam de fato enfrentar as novas demandas.

Nesse contexto de dificuldades, em que os educadores se vêem diante dos limites das teorias e das políticas, abre-se um terreno propício à aceitação dessas situações polarizantes. É bem o caso, agora. Diante de um discurso que apregoa na mídia que há um método de alfabetização barato, prático, de eficácia “cientificamente comprovada” e que está sendo assumido pelos países ricos, podemos assistir a decisões eufóricas tomadas num roldão discursivo que nada tem a ver com a complexidade e a seriedade que o sistema escolar brasileiro exige.

O ensino da leitura, sobretudo com foco em suas fases iniciais, como forma de evitar o desempenho ruim ou mesmo a evasão escolar, vem sendo prioridade em diversos países e para alguns importantes organismos internacionais. Esse destaque do campo da leitura é de fato precioso. No entanto, associá-lo a um debate que polariza duas tendências significa perder uma importante ocasião de promover reflexões mais amplas sobre o ensino de leitura no País.

Em um de seus recentes artigos, o ministro fala em “visão sistêmica” em educação, em contraposição à “visão fragmentada da educação” e às “falsas oposições”. Creio que essa interessante visão não condiz com a oposição que a notícia da Folha apregoava na ocasião da entrevista do ministro, cuja manchete era a seguinte: “MEC discute a volta do ‘vovô viu a uva’”.

Uma visão sistêmica possivelmente deverá se centrar em uma pluralidade de ações e de procedimentos que levem ao fortalecimento das condições gerais das redes escolares. Se uma das prioridades é a alfabetização e a leitura, a qualidade do ensino, como um todo, passa a ser o objeto de preocupação. Contrariando o que afirmam os defensores deste ou daquele método, há uma ampla rede de consenso, constituída nas duas últimas décadas, evidenciando que um grupo de professores bem formados, bem assistidos, em um ambiente produtivo e estrategicamente organizado, amplia seus conhecimentos, pesquisa sua realidade e aceita o desafio de assumir que a metodologia de sua escola ou de sua rede escolar, por mais eficiente que seja, não recobre as demandas brasileiras. O que se deve buscar como parte desse conjunto sistêmico é um enlaçamento mais produtivo entre as universidades que fazem pesquisas (em geral, as públicas) e as redes escolares. Contrapor métodos e optar por um significa apenas repisar o velho script.

Claudemir Belintane é professor de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa da Faculdade de Educação da USP


 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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