Quando o Corinthians jogava, toda a família torcia.
Só colar o ouvido em um rádio não bastava.
Ele espalhava outros rádios pela casa, para não perder
nenhum lance. Sentia-se na pele do ponta-direita. E se a emoção
fluía, não era por menos. Quem vê as fotos do
time campeão do Centenário da Independência,
vai encontrá-lo entre os grandes. Formiga ou Formiguinha
fazia valer o apelido. Quando entrava em campo, a torcida vibrava
com a sua agilidade. Ficou no Corinthians até 1927. Seu nome
também está na história do futebol do centenário
Clube Atlético Ypiranga (CAY), onde jogou figurando entre
os grandes, como Teptel, Friedenreich, Og e outros que chegaram
às seleções paulista e brasileira. Tinha só
15 anos quando começou no futebol do São Bento, outro
clube paulistano.
A paixão de Formiga pela bola está também na
história da arte brasileira. Formiga ou Francisco Rebolo
(1902-1980) foi um dos primeiros a pintar o futebol em campo, na
década de 1930. Como bom atacante, Formiga foi passando a
bola para o artista (pendurou as chuteiras no CAY em 1932). E Rebolo
continuou jogando entre pincéis e tintas. Com a mesma garra
do ponta-direita.
É esse futebol à flor da pele, onde a emoção
cresce entre cores e movimentos, que o público pode apreciar
em Futebol & Arte, mostra que está sendo
apresentada pelo Espaço Cultural Vivo. A exposição
valoriza toda a gestualidade do futebol, explica Lisbeth Rebolo
Gonçalves, curadora e professora da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP. Reunimos obras de 11 artistas, ou seja,
um time da arte moderna e contemporânea.
Lisbeth lembra que a exposição é resultado
de uma pesquisa desenvolvida há alguns anos na ECA. Os
primeiros registros do tema futebol na arte brasileira são
da década de 1930, bem antes de o Brasil ganhar a primeira
Copa do Mundo, o que só aconteceu em 1958. As cenas sobre
futebol surgem dentro da proposta estética do Modernismo,
reforçando o questionamento sobre o que é ser brasileiro.
E o futebol é onde se revela a nossa identidade, o nosso
cotidiano. Outro momento importante do futebol na arte é
a década de 1960. É um dos temas da arte contemporânea,
representando a cultura popular e discutindo a questão da
brasilidade.
Nessa exposição, a bola entra em campo com o quadro
pioneiro de Rebolo. Em Futebol, de 1936, o artista faz o seu auto-retrato
em um drible típico do Formiguinha. Há obras de Claudio
Tozzi, Ivald Granato, José Roberto Aguillar, José
Zaragoza, Nelson Leirner, Roberto Magalhães e Rubens Gerchmann.
Há ainda uma homenagem especial a Aldemir Martins (1922-2006)
com Pelé, de 1970. Outro desenhista muito bem lembrado é
Miécio Caffé (1920-2003), que foi o primeiro a caricaturar
Pelé e Garrincha, em 1958, quando o Brasil ganhou sua primeira
Copa do Mundo, na Suécia. Tem, também, a participação
de Fúlvio Pennacchi (1905-1992), que integrou o Grupo Santa
Helena com Rebolo, Bonadei, Graciano, Zanini, Volpi e outros artistas.
Um
sonho, uma paixão
Mal sabia andar. E ele já estava ali chutando bola. Cresceu
sonhando em ser um jogador profissional. Um sonho que ensaiava nas
peladas com os meninos da vizinhança lá em Campos,
no Rio de Janeiro. Gostava tanto de futebol que torcer para um time
só era pouco. Torcia para o Americano, Flamengo e Corinthians.
O jogador, no entanto, passou a bola. E foi jogar em outra área:
a dos artistas plásticos. Hoje, Ivald Granato, de 56 anos,
perdeu a conta dos dribles, dos gols e das vitórias que documentou
com as suas tintas. Cenas que mostram muito bem a arte do futebol.
E o futebol na arte em uma estética construída com
criatividade, dedicação e sonhos. Granato sua a camisa
como artista e já conquistou, por duas vezes, o título
de Melhor Desenhista do Ano, concedido pela Associação
Paulista de Críticos de Arte (1979 e 1982). O futebol
faz parte da minha vida, da minha arte, conta. Em 2006,
lancei uma série de gravuras sobre o Corinthians. E agora
estou organizando uma exposição na Embaixada Brasileira
em Berlim, com a participação de 11 artistas brasileiros.
A mostra será inaugurada em maio. Vamos mostrar essa nossa
arte com paixão. Através dessa exposição,
o curador Granato começa a preparar o clima da torcida brasileira
na Alemanha.
Se não fosse tão perna-de-pau, o paulistano José
Roberto Aguilar, de 64 anos, teria sido jogador de futebol. Era
o meu sonho, mas não deu certo. Eu queria jogar, mas era
péssimo. O pessoal acabava me tirando do campo. O encanto
pelo futebol é desde sempre. Eu tinha 7 anos quando
meus irmãos me levaram no estádio do Pacaembu. Fui
ver o São Paulo, que ganhou de 3 a 1 do Ypiranga. Você
quer saber qual foi a escalação? Sei de cor.
Aguilar é pintor, gravador, compõe músicas,
escreve e edita livros. É um multimídia, um artista
da pelota. Na mostra Futebol & Arte, apresenta uma
obra emblemática, dois quadros de um tríptico da coleção
do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Fiz esses
quadros em 1966, quando o Brasil perdeu a Copa do Mundo na Inglaterra.
Um deles mostra o Pelé entregando a bola para um fantasma.
No
estádio, na praia, na rua
Como bem dizia Carlos Drummond de Andrade, poeta apaixonado pelo
futebol:
Futebol se joga no estádio?
Futebol se joga na praia,
futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma.
A bola é a mesma, forma sacra
para craques e pernas-de-pau.
Mesma a volúpia de chutar
Na delirante copa-mundo
ou no árido espaço do morro.
São vôos de estátuas súbitas
desenhos feéricos, bailados
de pés e troncos entrançados.
Instantes
lúdicos: flutua
o jogador, gravado no ar
afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade.
Foi
o futebol do estádio, da praia, da rua, que mexe com a alma
do povo, que encantou Claudio Tozzi. Um corintiano que não
sabe o nome dos jogadores, mas que se deixou apaixonar pelo tema.
Em 1966, fiz uma serigrafia do Garrincha que acabei vendendo
na saída do estádio do Pacaembu, conta. Tozzi
participa da mostra com três quadros da série A Jogada,
de 1982, e dois com o nome Futebol, de 1998.
Embora não tenha intimidade com a bola, Tozzi, de 61 anos,
sabe muito bem transformar os instantes lúdicos e os dribles
que desafiam a lei da gravidade em arte. O artista é embalado
pelo sonho popular. Em A Jogada, foca as pernas dos jogadores em
um bailado. O jogador dribla a bola, cai no chão. Um movimento
sob a emoção da arquibancada que levanta os braços,
grita, torce.
Quem não perde um lance e faz muitos gols de placa na arte
é o carioca Rubens Gerchmann, que ilustrou o livro Bola de
cristal, de Armando Nogueira. É o artista que mais documentou
o futebol. Em 1998, expôs suas obras na Copa do Mundo, na
França. Neste ano, também estará participando
da exposição na Embaixada Brasileira em Berlim. Em
Futebol & Arte, apresenta dois quadros, Cem por
cento grafite, cem por cento negro, de 2005, e Pelé, de 1996.
Sou flamengo, adoro futebol. Mas fui um péssimo ponta-direita,
ele confessa. Uma frustração que o jogador compensou
com o talento de artista.
A
exposição Futebol & Arte ficará
até 9 de julho no Espaço Cultural Vivo (avenida Dr.
Chucri Zaidan, 860, térreo, Morumbi, em São Paulo),
de segunda a sexta-feira, das 9 às 20 horas. A entrada é
gratuita.
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