Em
fevereiro de 1858, na vila francesa de Lourdes, a menina Bernadete
Soubirous, então com 14 anos, viu a primeira de uma série
de 18 aparições da Virgem Maria. Reconhecidas pela
Igreja, as aparições transformaram o lugar num dos
principais pontos de peregrinação católica
no mundo. De saúde frágil, Bernadete tornou-se freira
e depois de sua morte, com apenas 35 anos, foi canonizada. A jovem
foi tema de um diálogo do escritor francês André
Malraux com Pablo Picasso, no qual Malraux conta ao pintor espanhol
que, no convento, Bernadete foi apresentada a todo tipo de imagens
da Virgem, mas não reconhecia em nenhuma delas a que tinha
visto na gruta de Lourdes. Enquanto o bispo chamado à clausura
folheava álbuns com algumas das imagens mais conhecidas da
mãe de Jesus, surgiu ao acaso A Virgem de Cambrai. “Bernadete
se levanta, com os olhos arregalados, ajoelha-se: ‘É
esta, monsenhor!’”, escreve Malraux. A imagem identificada
pela jovem havia sido levada a Roma em 1440 pelo cônego da
vila francesa de Cambrai. Era um quadro da Santa Virgem que fora
conservado em Constantinopla e cuja autoria, segundo a tradição,
é do evangelista Lucas.
A
história abre o fascinante O ícone – Uma escola
do olhar, do francês Jean-Yves Leloup, que acaba de ser lançado
pela Editora Unesp e traz na capa a imagem de Cambrai. Psicólogo,
filósofo e teólogo, Leloup tem o que ele mesmo chama
de uma longa “itinerrância”, num roteiro que já
o fez de ateu a monge dominicano e, atualmente, padre da Igreja
Ortodoxa. Leloup já traduziu os evangelhos apócrifos
de Tomé e Maria e tem outros títulos publicados no
Brasil pela Editora Vozes, como Além da luz e sombra –
Sobre o viver, o morrer e o ser e O corpo e seus símbolos.
“Por que Bernadete, a vidente, ela que afirma ter visto a
Virgem, recusa todas as formas de representação, até
mesmo aquelas que consideramos as mais belas e mais aptas a despertar
o sentimento religioso (Rafael, Murillo)? Será que a mulher
que ‘apareceu’ para Bernadete teria lhe aberto os olhos
a um outro olhar? Teria lhe permitido entrar nesse mundo de onde
os sábios e profetas sorvem as imagens significantes por
meio das quais transmitem seus ensinamentos?”, pergunta o
autor.
“Para
os cristãos do Oriente, a teologia é a contemplação
silenciosa, no Espírito, de Cristo diante do Pai”,
explica, na apresentação do volume, Afonso Soares,
teólogo e cientista da religião da Pontifícia
Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “O
ícone é caminho seguro no processo de divinização
(theosis) do ser humano, pois é ‘a imagem do Deus que
se encarnou, mostrou-se na carne sobre a terra, misturou-se aos
homens em sua inefável bondade e assumiu a natureza, a densidade,
a forma e as cores da carne’”, diz, citando São
João Damasceno. Completa Leloup: “O ícone, mediante
curiosos processos de cores, símbolos e perspectivas invertidas,
não tem outra função além daquela de
abertura à transcendência. Ele é uma escola
para o olhar que, do visível, de maneira paciente, nos leva
ao invisível. Nossos sentidos, quando são assim despertados,
merecem o nome de ‘portas da percepção’:
eles não buscam mais apreender o real, nem objetivá-lo,
mas se abrem sobre uma vasta paisagem que contemplam como se contempla
um semblante; então, encontram a verdade, ao mesmo tempo
próxima e distante, presente e inacessível”.
|
Revelação
divina – A palavra ícone (do grego eikon)
significa “imagem”. Para compreender sua origem, é
preciso voltar ao século 10, quando o cristianismo foi instaurado
como religião oficial na Rússia. Data dessa época
o primeiro grande cisma da religião iniciada com Jesus Cristo:
por fatores ligados a questões culturais, dogmáticas,
disciplinares, litúrgicas e políticas, consolidou-se
entre os anos de 1054 e 1204 uma ruptura entre as partes oriental
e ocidental da Igreja. A partir do cisma, a Igreja Católica
Apostólica Ortodoxa Grega passou a ter como primaz o patriarca
de Constantinopla (atual Istambul), localizada na antiga colônia
grega de Bizâncio, mais tarde incorporada a Roma. Com a fé
cristã, os russos adotaram de Bizâncio também
a teologia da iconolatria.
“A
iconografia é um procedimento que dá a conhecer a
revelação divina, uma forma na qual se associam as
ações do divino e do humano. Por isso, muitas vezes
os ícones são chamados de ‘teologia em cores’”,
relata Olga Poliakova, curadora da mostra Ícones, a alma
da Rússia, exibida no Museu de Arte Brasileira (MAB) da Faap,
em São Paulo, em 1999. Até por isso, para pintá-los
existe toda uma preparação, tanto por parte de quem
vai realizar o trabalho como do material a ser utilizado. O autor,
que não assina a pintura, deve ser uma pessoa de caráter
reconhecidamente ilibado e pleno de fé – em geral são
monges. Entre os requisitos está fazer alguns dias de jejum,
ficar em abstinência sexual e não ingerir bebidas alcoólicas.
O material deve ter origem animal, mineral ou vegetal, como madeira,
água, argila e terra colorida. “O ícone transmite
o conteúdo da Sagrada Escritura não sob forma de ensino
teórico, mas de maneira litúrgica, isto é,
de um modo vivo, dirigindo-se a todas as faculdades do homem”,
explica Bernard Sartorius, citado pelo professor Mauricio Loiacono,
da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em texto sobre a Igreja
Ortodoxa publicado na edição número 67 da Revista
USP, lançada no início deste ano.
Face
de Cristo – Para se encontrar com o sagrado, celebrar
um mistério ou ainda ter revelado um segredo, é necessário
um pouco mais que olhos: é necessário um olhar, defende
Jean-Yves Leloup. Conduzir o leitor por alguns desses caminhos –
a exemplo do que acontece com os fiéis ortodoxos, que desde
a infância são acostumados a cultivar uma ligação
íntima com as santas imagens – é a proposta
do livro. Por meio de diferentes leituras estéticas, teológicas,
litúrgicas, tradicionais e antropológicas, o livro
“ensina” a mergulhar nos detalhes de alguns dos ícones
mais antigos e conhecidos. O foco são os principais temas
utilizados nas imagens: episódios da vida de Cristo (como
seu nascimento, batismo, descida aos infernos e ressurreição),
passagens do Novo e Antigo Testamentos (inclusive dos evangelhos
apócrifos), histórias dos profetas e também
dos santos russos.
O primeiro
ícone da Sagrada Face de Cristo seria o Achéiropoietes
(ou seja, não feito pela mão do homem), que segundo
a tradição foi enviado por Jesus ao rei Abgar V Uchama,
príncipe de Osroeme. A imagem seria a do próprio Filho
de Deus, que teria colocado um pano sobre seu semblante, imprimindo-lhe
os seus traços. Durante séculos a imagem mudou de
lugar várias vezes até desaparecer nos saques das
invasões cruzadas a Constantinopla, em 1204. Maria (a Theotokos,
ou Mãe de Deus) também ganha destaque. “Depois
da adoção do cristianismo, a fé dirigida em
particular à Virgem Maria em favor da Rússia se tornou
um traço característico da consciência religiosa
russa. As idéias da integridade do Estado, de sua independência,
se uniram à imagem da Virgem Maria”, explica Olga Poliakova
no livro-catálogo da mostra do MAB.
As
representações iconográficas, para os ortodoxos,
podem ser compreendidas como exemplos a serem seguidos em sua vida,
e intensificam a intimidade respeitosa que eles têm com a
dimensão mística em seu cotidiano. Ao contrário
do que acontece nas igrejas latinas, em que se pode conferir às
imagens esculpidas o caráter de representação
de ídolos, o ícone não tenta representar ou
imitar, mas “propõe a visão de ‘alguém’
que não é nem um objeto nem uma imaginação,
mas uma Pessoa Outra”, define Leloup. Nunca é “uma
descrição, mas uma evocação” e,
portanto, diante dele “não há problema a ser
resolvido, simplesmente um deslumbramento a ser compartilhado”.
A belíssima impressão do volume, em formato 20 por
26 centímetros, e a farta reprodução de ícones
e seus detalhes são convites a esse deslumbramento.
Para
quem quiser começar a tentar essa trilha, uma visita à
Catedral Ortodoxa de São Paulo, no bairro do Paraíso,
após um mergulho no livro de Leloup, pode ser o passo inicial.
Será uma maneira de compreender a importância dos ícones
para os fiéis ortodoxos. Como define Mauricio Loiacono, eles
são “uma força que os leva a encarar a vida
num estágio de maior esperança, e principalmente a
fazer com que procurem exaltar em sua pessoa a imago Dei, recordando-lhes
que, enquanto obra do Pai, receberam centelha da substância
divina, a qual deverão cada vez mais intensificar em si,
com o objetivo também de serem um ícone vivo de Jesus
Cristo”. |