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Desde que, em 1633, o matemático italiano Galileu Galilei foi obrigado pela Igreja Católica a renunciar a suas idéias sobre o movimento dos astros, ciência e religião mantêm uma relação de acirrado conflito. No entanto, é fácil verificar que, se os radicalismos forem deixados de lado, ambas podem viver harmoniosamente. E mais ainda: podem se ajudar a conhecer mais profundamente o homem e o Universo. Exemplo maior desse conflito e da possibilidade de conciliação é a questão do surgimento da vida no planeta, vista de modos tão opostos pela Bíblia e pela teoria da evolução, concebida no século 19 pelo cientista inglês Charles Darwin. Na minha opinião, apesar das divergências, é possível conciliar os criacionistas (aqueles que crêem ter sido o mundo criado por Deus) e os evolucionistas (os seguidores modernos de Darwin).

Antes de tudo, para chegar à conciliação, evolucionistas e criacionistas precisam se despir de radicalismos e preconceitos. Os fiéis ao relato bíblico do Gênesis devem considerar que a teoria da evolução, em suas linhas gerais, é inegável. Ao longo de milhões de anos, as espécies realmente sofrem mutações e desenvolvem mecanismos de adaptação ao meio, que transformam suas características e garantem sua sobrevivência. É inconcebível uma atitude que comumente se vê entre religiosos: o desprezo a Darwin. Um dos maiores cientistas da história, o autor de A origem das espécies era dotado de rigor científico e honestidade acadêmica inatacáveis, tanto que esperou ter certeza dos resultados obtidos em pesquisas – o que levou 20 anos – para publicar suas idéias.

Os criacionistas também têm de parar de negar as revelações da ciência. Uma delas diz respeito à idade do Universo. Decididamente, o início de todas as coisas não se deu há cerca de 6 mil anos, conforme defendem setores fundamentalistas do cristianismo e do judaísmo. Isso é impossível, como provam simples datações de rochas de milhões de anos e a distância das estrelas, medida em milhões de anos-luz.

Nem a Terra e os céus foram feitos em sete dias, tal como entendemos o dia, um período de 24 horas. Até mesmo a Bíblia insinua que as escalas de tempo humana e divina não são as mesmas, ao dizer que, para Deus, “mil anos são como o dia de ontem que se foi e como a vigília da noite” (Salmo 90:4). É necessário aceitar o que dizem os cientistas – que, a meu ver, não fazem mais do que exercer uma tarefa dada por Deus ao homem, relatada no capítulo 2 do Gênesis. Esse trecho diz que Deus, após ter formado os animais do campo e as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para que este desse o nome a cada um – um típico trabalho de investigação, análise e classificação de qualquer biólogo moderno.

A mesma atitude flexível se espera dos cientistas, que não podem desprezar um livro tão profundo e de tão vastas conseqüências para a humanidade como a Bíblia. É intrigante perceber, nos primeiros capítulos do Gênesis, que a Criação se deu na mesma seqüência apontada pela ciência: primeiro foram criados os céus e os mares, depois a relva e a vegetação, em seguida os seres do mar, logo mais os animais da Terra e, finalmente, o homem. Um milênio e meio antes de Cristo, Moisés – tido como o autor do Gênesis – antecipou o que a ciência moderna revelaria quanto à origem da vida.

A Bíblia merece crédito também por suas visões proféticas da história. Cem anos antes da formação do império persa, no século 6 antes de Cristo, o livro do profeta Isaías citou pelo nome o rei Ciro e a libertação trazida por ele ao povo judeu, então escravizado pelos assírios. O livro do profeta Daniel previu outro acontecimento marcante: a dissolução do império da Macedônia, no final do século 4 antes de Cristo, e sua divisão em quatro grandes reinos. Claro que os céticos sempre discutem a datação desses dois livros do Velho Testamento, situando-os depois dos fatos descritos – mas isso é improvável.

Pode-se ainda recorrer ao testemunho da filosofia em favor do criacionismo. O filósofo grego Platão, no diálogo chamado Timeu, considera logicamente que as coisas existentes não podem ter vindo do nada, mas têm um princípio criador. Mais: um efeito bom só pode ter como causa algo bom, porque o bem não produz o mal, assim como uma árvore boa não produz frutos ruins. Logo, como o mundo é maravilhoso – o céu, o mar e a flor, por exemplo, são de uma beleza incontestável –, ele só pode ter um princípio sumamente bom, que o filósofo chama de “o artífice” ou “a divindade”.

Citemos ainda os milhões de seres humanos que, ao longo da história, encontraram nas Escrituras respostas para os seus mais profundos anseios, o que faz crer que o homem tem necessidade de se voltar para o Criador, como afirma a Bíblia: “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim por ti, ó, Deus, suspira a minha alma” (Salmo 42:1). Tudo isso é um apelo gritante aos evolucionistas, para que não se limitem apenas ao que nossos sentidos são capazes de perceber, mas considerem também a realidade transcendente.

Se a Bíblia e a ciência devem ser respeitadas e se as Escrituras e as pesquisas científicas estão de acordo a respeito da origem do Universo e da vida, elas não devem divergir sobre o aparecimento do homem na Terra – o tema realmente mais delicado, de mais difícil conciliação e que mais controvérsias suscita. Nesse sentido, um autor cristão do século 4, Eusébio de Cesaréia, pode nos ajudar. No livro 1 de sua História eclesiástica, Eusébio afirma:

Pois logo no princípio, após aquele feliz estado, o primeiro homem, negligenciando os mandamentos divinos, caiu na presente condição mortal e afligida, trocando sua antiga alegria pela terra presente, sujeita à maldição. Os descendentes deste, tendo enchido nossa terra e se comprovado muito piores, começaram certo modo de vida brutal e desordeiro. Não tinham cidades nem estados, artes nem ciência, mesmo em imaginação. Leis e justiça, virtude e filosofia não conheciam, mesmo por nome. Vagavam sem leis pelo deserto, como animais selvagens e ferozes, destruindo a faculdade intelectual do homem e exterminando as próprias sementes da razão e da cultura da mente humana pelo excesso de perversão obstinada e pela entrega total de si mesmos a todo tipo de iniqüidade.

À luz do texto de Eusébio, podemos pensar que o homem foi criado por Deus de modo especial, o ponto culminante de um maravilhoso processo evolutivo. No entanto, houve uma ruptura entre a criatura e o Criador – que o Gênesis chama de Queda. Essa ruptura não se deu sem profundas conseqüências, porém: o ser humano se destituiu do perfeito estado em que fora criado e se arrojou num abismo ético, espiritual e físico, de modo que se tornou um animal errante, sem leis, sem razão, sem cultura, como um macaco. Isso é confirmado por outro autor cristão, que se denomina Dionísio Areopagita, do século 6, no livro Da hierarquia eclesiástica: “Desde o princípio, a natureza humana perdeu os dons com que Deus a havia enriquecido. Deixou-se levar por múltiplas paixões e terminou em morte destruidora”.

Podemos especular também que são os fragmentos desse homem, destituído dos dons originais e transformado num animal – tal a violência da ruptura com o Criador –, que os antropólogos encontram em suas escavações. Pensando tratar-se de macacos e dos primeiros hominídeos que, ao evoluir, deram origem ao Homo sapiens, esses cientistas, na realidade, estariam reconstituindo os traços degenerados de uma criatura antes perfeita. Visto desse ponto de vista, o macaco – resultado da degeneração do ser humano – é que viria do homem, e não o contrário. Afinal, o parentesco entre ambos é inegável: 97% do genoma do homem e dos símios é idêntico. O homem só saiu dessa condição graças à misericórdia de Deus – acrescenta Eusébio –, que lhe permitiu reconstituir a razão aos poucos.

Se a ciência só consegue traçar a trajetória do homem a partir de alguns milhões de anos, isso não significa que essa trajetória não seja muito mais longa. O filósofo austríaco Karl Popper, que melhor do que ninguém explicou o método científico, mostrou que a ciência tem um caráter provisório. A qualquer momento, o acúmulo de novos dados pode tornar falsa uma tese até então considerada verdadeira. Embora hoje prevaleça a idéia de que os primeiros hominídeos surgiram na África há cerca de 4,5 milhões de anos, nada impede que, no futuro, os cientistas descubram que aventura humana na Terra é muito mais antiga.

Evidentemente, as idéias aqui esboçadas são mera especulação, dificilmente confirmadas pela experiência. No entanto, elas servem pelo menos para mostrar que é possível a conciliação entre o evolucionismo (evidente na natureza) e o criacionismo (descrito por um livro que não pode ser desconsiderado, a Bíblia). Servem também como um estímulo para o diálogo entre cientistas e teólogos, entre a ciência e a religião – o modo mais prático e eficiente, parece-me, de descobrir os profundos e tão intrigantes mistérios da vida, do homem e do Universo.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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