Processo
de cartas marcadas, escolha não-democrática, vitória
dos grandes grupos da comunicação – especialmente
a Rede Globo –, modelo de TV digital com sistema analógico:
críticas como essas foram feitas por diversos grupos e entidades
após o anúncio da escolha do modelo japonês
de alta definição para a TV digital brasileira. Da
cerimônia, realizada no dia 29 de junho no Palácio
do Planalto, em Brasília, participou o coordenador do Laboratório
de Sistemas Integráveis (LSI) da Escola Politécnica
da USP, Marcelo Knörich Zuffo, que discursou representando
as instituições acadêmicas brasileiras que
participaram do processo.
Zuffo não nega que haja pressões e interesses econômicos
fortes envolvidos em toda a questão. Representantes da indústria
eletroeletrônica, por exemplo, querem alijar a academia dos
passos seguintes da discussão e implantação
da TV digital. O tamanho do mercado justifica a atenção
na disputa. “Em cinco anos, serão cem milhões
de terminais fixos de televisores digitais, cem milhões
de monitores de LCD e cem milhões de celulares com TV digital”,
diz o professor.
De acordo com o decreto que estabelece a
implantação
do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre, as
emissoras de TV abertas receberão automaticamente um canal
digital e terão prazo de 18 meses para iniciar as transmissões – primeiramente,
nas capitais e no Distrito Federal. Em sete anos, as emissoras
terão que garantir o serviço em todo o território
brasileiro e, em dez anos, o sinal analógico deixará de
ser transmitido. Quem quiser receber o sinal digital assim que
ele começar a ser emitido não precisará de
um novo aparelho de televisão, mas terá que instalar
um adaptador ou caixa de conversão.
“Hoje temos a liberdade de propor, desenvolver, aprimorar,
produzir e oferecer tecnologia moderna e flexível de TV
digital. A associação com o Japão é de
fundamental importância, e desde já convido os nossos
colegas cientistas e engenheiros japoneses a enfrentarmos juntos
o desafio da interoperabilidade da TV no mundo para superarmos
as atuais incompatibilidades dos demais sistemas, de tal forma
que, num futuro próximo, os produtos brasileiros e japoneses
possam operar em qualquer país do mundo e a questão
do padrão A, B ou C seja irrelevante ao consumidor final”,
disse Zuffo em seu discurso no Palácio do Planalto.
Hélio Costa (à direita,
no lançamento do decreto em junho ): governo discutiu documentos
feitos pela academia
Sobre essas e outras questões, o professor – no mesmo
dia em que retornava de outra viagem a Brasília, 19 de julho – concedeu
a seguinte entrevista ao Jornal da USP nas instalações
do LSI na Poli:
Jornal
da USP – O senhor pode traçar um
histórico
do desenvolvimento da TV digital
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Marcelo Zuffo – O
conceito de TV digital surge com a invenção
do conceito de alta definição pelos japoneses nos
anos 70. Naquele instante não havia tecnologia de semicondutores
para viabilizar o processo. Aventava-se, na época, o uso
de tecnologias que eram utilizadas para fins militares, com o uso
de compostos que acabaram se revelando extremamente caros. Ao longo
dos anos 80, tivemos o congelamento dessa discussão em escala
mundial. Foram criados os primeiros padrões de decodificação
multimídia – a família MPEG (Motion Picture
Experts Group) –, e o movimento da digitalização
da TV se reiniciou especialmente nos Estados Unidos na década
de 90. O foco deles nem era a TV aberta, mas a TV a cabo, porque
nos anos 80 houve a transição deles para o cabo.
Na época, havia a visão de um padrão único
entre europeus e japoneses, mas, a partir do momento em que os
americanos patentearam a tecnologia, os europeus e japoneses abandonaram
a aliança e ela se enfraqueceu muito. Ao mesmo tempo, observamos
a evolução das tecnologias pilares – internet,
codificação multimídia e finalmente a tecnologia
das comunicações móveis. Esses três
pilares foram tecnologias disruptivas, no sentido de transformar
ao longo da década de 90 a visão do que é TV
digital. De mero serviço de som e imagens, mudou para algo
mais avançado. Na virada do milênio, surgiu uma quarta
tecnologia disruptiva: a de semicondutor para displays. Com isso
veio a obsolescência dos tubos de raios catódicos,
substituídos pelo plasma e mais recentemente pelo LCD.
JUSP – Como foram criados os diferentes padrões?
Zuffo – Quando houve, por volta de 1995, a ruptura da chamada
grande aliança, as tecnologias de comunicação
móvel começaram a afetar o quadro. Ou seja, a capacidade
de transmitir um sinal com maior qualidade e menos energia começou
a ser uma realidade, em função da tecnologia móvel.
Essas tecnologias mais robustas foram adotadas pelos europeus,
que tinham um problema: tiveram que unificar 33 países que
trabalhavam com sistemas de locação de canais totalmente
incompatíveis, uma loucura. Os europeus tiveram o mérito
de, no bojo da estruturação da União Européia,
harmonizar padrões, mas tiveram que nivelar por baixo. Os
japoneses acompanharam isso de perto e usaram a mesma base para
fazer um sistema melhor de modulação.
JUSP – E no Brasil?
Zuffo – No Brasil, constituíram-se grupos que acompanharam
esse quadro e produziram análises comparativas. Os estudos
mostraram que a tecnologia japonesa era mais robusta, porque era
mais ousada na questão da mobilidade – eles já pressupunham
que num futuro muito próximo os celulares teriam TV. É preciso
dizer que em menos de 40 anos a TV virou uma tecnologia universalizada
no Brasil, a despeito da baixa renda média da população.
O IBGE afirma que hoje temos mais de 96% das unidades habitacionais
com televisão. O Brasil tentou uma coalizão. Houve
uma comissão formada por volta de 1997 que tentou negociar
o padrão estendido europeu, com o apoio dos japoneses. Essa
proposta foi totalmente refutada. Foi uma decepção
muito grande, porque o Brasil viu que era tratado como mero consumidor
e que o tal padrão aberto não era tão aberto
assim.
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JUSP – A Universidade teve
influência na mudança
desse quadro?
Zuffo – A USP começou
a trabalhar com TV digital em 1996. Já naquele ano fizemos
um teste de transmissão
em TV digital para o programa “Vitrine”, da TV Cultura.
Em 2000 tínhamos um projeto chamado Siscompro – Sistemas
Avançados de Comunicação e Processamento,
com foco em TV digital. Tentávamos mobilizar os agentes
públicos, porque havia um nó na questão, e
esse nó afetava a questão regulatória. A Lei
de Concessão de Radiodifusão remete às capitanias
hereditárias, que arbitravam sobre bens naturais, e nós
temos hoje um bem natural que está escasseando e não
se renova, que é o espectro. Com a emergência dos
novos serviços digitais, multimídia, novas gerações
de celulares etc., a radiodifusão ocupa um espaço
significativo de espectro com uma regulamentação
extremamente retrógrada, e quem paga o pato por isso é a
população, com menos qualidade de serviços
e menos possibilidade de inserção de novas tecnologias.
A TV é a última mídia a ser digitalizada no
Brasil, e a digitalização não é só uma
questão técnica, mas envolve todo um arcabouço
jurídico regulatório que vai ter que ser transformado,
por isso o cenário é de muita pressão. Alguns
analistas dizem que o mercado de radiodifusão brasileiro
gera 5% do PIB e que o mercado brasileiro de TV é o quarto
do mundo. JUSP – Quando
o governo deflagrou o atual processo?
Zuffo – Uma delegação
da Escola Politécnica
esteve com o então ministro Miro Teixeira, das Comunicações,
no início do governo Lula. O quadro exposto era o da existência
de um grande espaço de desenvolvimento, com muitas coisas
novas surgindo na área de comunicações. O
Brasil tem dimensões continentais, não possui semicondutores
e tem uma população ávida pela tecnologia
digital, que oferece não só excelente qualidade de
som e imagem a baixo custo, mas todos os novos serviços
de radiodifusão digital, propiciando a interatividade. Houve
a sensibilização do ministro, que promoveu um grande
debate ao longo de todo o ano, sofrendo todas as manobras possíveis
e imagináveis dos lobbies que se constituíram. Em
novembro de 2003 veio o decreto de consolidação do
Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), cujo pressuposto era
o de que tínhamos um sistema analógico que deveria
migrar para o digital. O SBTVD deixa bem claro que o Brasil terá três
fases na sua transição: a etapa de tomada de decisão,
a de desenvolvimento e a de implantação. Com o novo
decreto, estamos saindo da primeira para a segunda fase.
JUSP – Como foi a participação
da USP na primeira fase?
Zuffo – A USP teve um papel fundamental, por meio do LSI
e outras unidades. Numa situação sem precedentes
na história do Brasil, 22 consórcios foram consolidados,
dos quais três foram contratados pela USP. Ficamos com a
responsabilidade da definição do terminal de acesso,
do consórcio de áudio e do consórcio de MPEG4
em vídeo. O maior consórcio foi conduzido por esta
universidade, que envolveu mais de 30 instituições,
e todo um processo de consolidação que ficou sob
a responsabilidade do LSI. Apesar de toda a burocracia e de todas
as dificuldades, cumprimos todos os prazos. No dia 9 de dezembro
do ano passado, os 22 consórcios estiveram aqui e demonstraram
a tecnologia integrada, com a presença do ministro Hélio
Costa. Essa integração era a ponta do iceberg, porque
no bojo dela veio um arcabouço documental com uma enorme
coleta de informações. Pela primeira vez fizemos
documentos e relatórios que o governo começou a ler
e a discutir. A partir do momento em que os documentos foram entregues,
de dezembro de 2005 a fevereiro deste ano, houve todos os desdobramentos
políticos disso, com tentativas de desqualificação
do nosso trabalho etc. Ao mesmo tempo, vieram as pressões
econômicas. Há setores da indústria forçando
que as universidades não participem da segunda fase. A robustez
e a fundamentação científica foram decisivas
para mantermos a nossa tranqüilidade. Eu me orgulho muito
pelo LSI ter montado os principais e maiores consórcios
do Brasil. Tivemos agruras, mas esta é uma universidade
tão rica que os canais comunicantes permitiram que a gente
concluísse o projeto, apesar da burocracia e dos entraves.
JUSP – Qual o cenário para a segunda fase do processo,
que começa agora?
Zuffo – Teremos três agentes envolvidos: a radiodifusão,
que é muito bem constituída e não quer abrir
mão do seu espectro, alegando ter direito adquirido – e
sob certas condições o tem. Além deles, estão
envolvidos a indústria – que assim como os radiodifusores
vem com um viés econômico muito forte –, e a
universidade, que deve colocar o interesse público em primeiro
lugar. A universidade não pode abrir mão da questão
do marco regulatório, pela sua neutralidade. Há ainda
o governo arbitrando. O cenário é de um jogo de xadrez
extremamente interessante. É importante que ele seja jogado
de forma equânime. Cabe ao governo saber lidar com as pressões
e não nivelar por baixo um trabalho que a universidade fez
por cima.
JUSP – O tamanho do mercado justifica essas pressões,
correto?
Zuffo – Os números que despontam no momento mostram
que em cinco anos serão cem milhões de terminais
fixos de televisores digitais, cem milhões de monitores
de LCD e cem milhões de celulares com TV digital. Tudo isso
terá que ser desenvolvido. É um processo enorme de
transferência dessa inovação para a sociedade.
O esforço agora não é só da ciência,
mas da engenharia. Para cada cientista, vamos precisar de dez a
cem engenheiros envolvidos em todo o processo de implantação – ou
seja, estamos falando de 20 mil a 30 mil engenheiros. Podemos engatar
um imenso círculo virtuoso, cujo único limitante é a
demanda: a população que vai comprar a TV no final.
Se não trabalharmos na condição do baixo custo,
compatível com a renda dos brasileiros, não vai dar
para escalar o processo, ou seja, começar do zero e chegar
a cem milhões. Nosso foco não é só técnico,
mas também econômico. O Brasil despontou como o primeiro
país emergente a ter tomado uma decisão de inovação. É um
processo de inovação sem precedentes.
JUSP – Procede a crítica de que a escolha do modelo
japonês atendeu a interesses privados?
Zuffo – Procede no seguinte sentido: na questão da
robustez, 66% das residências em São Paulo recebem
o sinal da TV analógica com fantasma ou chuvisco. Com a
TV digital, não receberiam sinal nenhum. Como radiodifusor,
você assinaria embaixo de uma proposta assim? Por isso houve
a socialização das informações em reuniões
com o pessoal das emissoras. O grande gargalo nosso são
os transmissores de altíssima potência, para as grandes
concentrações das capitais brasileiras.
JUSP – Quais são os pontos-chave que precisam ser
mudados na legislação brasileira sobre comunicações?
Zuffo – O ponto-chave é que, com o decreto atual,
a Lei Geral de Telecomunicações de 1962 morreu. O
radiodifusor não quer a multiprogramação,
não quer a segmentação que a TV digital permite,
daí a importância da visão pública nessas
definições. Por que a TV Câmara, a TV Senado
ou a TV Justiça não são abertas? Para ter
acesso a essas informações públicas, é preciso
pagar. A lei não dá conta do serviço de dados
também. Se você não conseguir transmitir dados,
não terá interatividade. Na telefonia, eu transmito
dados a você. Na radiodifusão, eu coloco um dado e
todos têm condição de receber. É claro,
os lobbies da radiodifusão não querem isso. Os radiodifusores
e a indústria estão com muita pressa, porque querem
ganhar dinheiro. Cabe a contraposição do argumento
fundamentado contra os argumentos econômicos “de rapina”.
O aspecto regulatório do direito do consumidor em TV digital é uma
coisa complexa. Hoje, por exemplo, quem diz que vende televisores
de alta definição está vendendo gato por lebre.
Para o lado que se olhar, a lei está obsoleta. Nós
temos a chance histórica de consertar esses problemas. Pleitos
históricos como critérios públicos para a
concessão de canais, editais e legislação
de direito do consumidor terão que surgir no debate que
se dará no Executivo e no Legislativo.
JUSP – E as críticas de que o modelo escolhido não
favorece a democratização das comunicações?
Zuffo – A questão da estrutura de poder existente é complicada.
O fato é que ocorreu uma ruptura, e ela tem que ser acompanhada
de uma mudança. Num certo momento tentou-se escolher uma
tecnologia obsoleta para contrariar os interesses de grupos da
comunicação. Mas isso é uma estratégia
de “quinto mundo”, totalmente equivocada, que equivaleria
a enterrar de vez a radiodifusão no Brasil e criar uma condição
em que a única saída seria a TV paga. A democratização é uma
luta – cuja legitimidade tem que ser questionada – de
grupos que querem derrubar a Rede Globo, ou é ter acesso
de qualidade técnica para todos e, dentro de um cenário
em que teremos mais oferta de conteúdo e outros serviços,
batalhar pela qualidade no âmbito de um marco regulatório?
JUSP – A produção audiovisual também
será beneficiada?
Zuffo – Escolher uma tecnologia de alta definição
puxa todo o segmento de produção de audiovisual brasileiro
para a inserção num patamar no circuito internacional
de comercialização de conteúdo. O Brasil se
gaba de sua capacidade “noveleira”, mas compare o quanto
exportamos de novela com o que México ou Venezuela exportam.
Escolher a alta definição é uma forma de puxar
o mercado para cima. Isso vai criar um diferencial competitivo.
Em termos da indústria, nossas avaliações
mostraram que em menos de três anos o preço do televisor
de alta definição vai ser o mesmo do de baixa. Vamos
admitir que as fábricas fiquem obsoletas ou vamos reatualizar
nosso parque industrial? Vamos fabricar aparelhos de baixa definição
para vender ao Terceiro Mundo ou vamos só fabricar aparelhos
de alta definição exclusivamente para a classe A
brasileira? Temos problemas interessantíssimos por aí.
JUSP – O que muda com
a TV digital?
Zuffo – De cara, o público vai perceber uma incrível
qualidade de som e imagem. Além disso, com TV digital no
celular, interatividade etc., será que vamos assistir à televisão
do mesmo jeito? Está aí uma excelente questão
para as escolas de Comunicação do Brasil, que vão
ter que saber inovar. O Brasil está numa posição única
no mundo para criar novos formatos de ver TV. Vamos ver se aquele
papo de que brasileiro é criativo é verdade. A bola
está nas mãos das faculdades de comunicação
na questão da interatividade.
JUSP – O senhor fez um alerta sobre o cenário imediato
para a TV digital na reunião da Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência (SBPC), em Florianópolis, na
semana passada. O que o senhor disse?
Zuffo – Tivemos mais de 650 pessoas assistindo a esse debate,
com gente sentada no chão por falta de lugar. Lembrei que
estamos apenas no início das discussões, aos seis
minutos do primeiro tempo de jogo. Os próximos seis meses
serão fundamentais. Se der errado, faremos teses e discutiremos
nas próximas reuniões anuais da SBPC por que a TV
digital deu errado no Brasil. Nós apenas definimos o marco
tecnológico. Agora o pessoal tem que se mexer. |