É surpreendente
aonde pode chegar o descaso com a coisa pública, a ponto
de comunidades inteiras se exporem ao risco de vida pela má atuação
de poderes locais. Felizmente, desde o estabelecimento das bases
do nacional-desenvolvimentismo no País, na década
de 1930, passando pela agenda de reformas e democratização
dos anos 1980, a área da administração pública
somou um tal nível de experiências que já se
tornou possível evitar o pior, desde que sociedade e governos
se disponham a atuar em conjunto para uma melhor qualidade de
vida. Em síntese, é isso o que mostra o livro Inovação
no campo da gestão pública local – Novos
desafios, novos patamares, organizado pelos professores Pedro
Jacobi, da Faculdade de Educação da USP, e José Antônio
Gomes de Pinho, da Escola de Administração da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
Lançado pela Editora FGV, a obra traz estudos de casos e
seus respectivos paralelos conceituais e teóricos sobre
administração pública, com o denominador comum
que todos os textos abordam o assunto sob o ponto de vista da inovação
na gestão. Os estudos compõem o acervo do Programa
de Gestão Pública e Cidadania, desenvolvido pela
Fundação Getúlio Vargas de São Paulo
desde 1996, com apoio da Fundação Ford e BNDES.
A tradicional abordagem de inovação se limita ao
foco tecnológico de análise do conceito. No setor
público, porém, o tema incorpora novas perspectivas,
tais como inovação estrutural, cultural, estratégica,
humana, política e de controle. Todos esses aspectos são
apresentados ao longo da leitura, com as colaborações
de diversos especialistas.
Peter Spink, coordenador do Programa de Gestão Pública
e Cidadania do Centro de Estudos em Administração
Pública e Governo da FGV, faz uma reflexão sobre
a tênue diferença entre inovação e melhores
práticas. Entre outros autores, a coordenadora do curso
de graduação em Administração da Escola
de Administração de Empresas de São Paulo
da FGV, Marta Ferreira Santos Farah, discorre sobre a inovação
em governos municipais no Brasil desde os anos 1980. Destaca os
processos de rupturas de modelos e paradigmas, as novas abordagens
públicas sob a perspectiva dos direitos e garantias individuais
e coletivas e da sustentabilidade, assim como a presença
e interação de novos atores na formulação
de políticas públicas e programas, entre os quais
as organizações não-governamentais (ONGs).
Más condições de moradia,
a destinação
do lixo e a degradação de mananciais estão
entre
os principais problemas
das cidades
brasileiras
atualmente:
livro traz
sugestões de cientistas para a administração
pública
Recursos naturais – Deseducação e falta de
consciência ambiental dos habitantes. Descaso e falta de
planejamento dos poderes públicos locais. Estava construída
a fórmula perversa que exporia ao risco, por mais de uma
vez, a população de cidades ao norte do Estado de
Santa Catarina, na divisa com o Paraná.
Em 1997, as Prefeituras de São Bento do Sul, Rio Negrinho,
Campo Alegre e depois, Corupá, todas pertencentes à bacia
hidrográfica do alto rio Negro catarinense, juntaram esforços
em torno do Consórcio Quiriri. A aliança buscava
equacionar o problema da destinação final dos resíduos
sólidos, decorrente da falta de aterros sanitários
na região. Uma população total aproximada de 125 mil habitantes
estava ameaçada pela contaminação dos ricos
recursos hídricos e lençóis freáticos
e pela degradação da fauna e flora, uma vez que o
lixo daquelas cidades era depositado a céu aberto e os resíduos
infectantes e industriais não eram incinerados nem recebiam
qualquer tratamento.
Antes daquela data, um precedente de caráter ambiental já havia
ameaçado a economia e o ambiente da região e foi
por iniciativa do governo estadual que uma política de reflorestamento
de essências exóticas, como pinus e eucaliptus, permitiu
suprir a escassez de matéria-prima para a indústria
moveleira, uma das principais fontes de renda daqueles municípios.
Esse antecedente e a iminência de um risco ainda maior que
ameaçava a própria vida dos moradores impulsionou
aquelas comunidades a arregaçar as mangas e mudar hábitos.
Dirigido por vários conselhos representativos da sociedade
civil, o Consórcio Quiriri conseguiu implantar uma política
sistemática de coleta seletiva de lixo, o que representa
uma inovação para cidades com menos de 100 mil habitantes.
Segundo Jabobi, autor deste capítulo, o mecanismo contribuiu
para a geração de empregos em torno do comércio
de recicláveis, bem como para a redução significativa
do volume de dejetos destinados aos aterros. A política
participativa dos municípios quanto à gestão
do lixo otimizou recursos das Prefeituras e entre outras coisas
disciplinou a disposição final dos resíduos
infectantes, pela incineração conjunta para todos
os municípios no incinerador de São Bento do Sul.
A experiência inovadora vem servindo de modelo para outros
projetos semelhantes no Estado de Santa Catarina, entre eles o
Consório Iberê, o Consórcio Esmeralda, o Consórcio
Rio Benedito, o Consórcio Lambari e o Consórcio Bem-te-vi,
que abrigam dezenas de municípios, cita o autor.
Adversidades – Uma crise ou situação que envolva
alguns tipos específicos de tensões gera o processo
e a necessidade de inovação, mostram os autores do
capítulo 3, o professor Luis Roque Klering e a professora
Jackeline Amantino de Andrade, ambos da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. É o famoso “dar a volta por cima” em
circunstâncias adversas, em outras palavras.
A necessidade de eficiência interna, lidar com a complexidade
e transpor rotinas, equilibrar múltiplas atividades mantendo
a criatividade, gerar resultados e dividir responsabilidades são
alguns focos de tensão que explicam a necessidade de inovação
nas organizações públicas, afirmam Klering
e Amantino de Andrade.
Um estudo de caso sobre o município baiano de Vitória
da Conquista mostra que o desafio da administração
da cidade entre 1997 e 2000 era romper com a estrutura política
conservadora e clientelista existente até 1997. Segundo
o livro, a política local era herdeira de uma falência
financeira, administrativa e moral que gerava uma forte crise de
governabilidade.
O professor José Antônio Gomes de Pinho, da UFBA,
explica no capítulo 7 como a nova administração
de oposição em Vitória da Conquista deflagrou
uma política de “saneamento das finanças e
a aplicação de política tributária
progressiva”, implantada com a “participação
organizada da população” e a “publicização
da situação financeira do município”.
O pilar fundamental de inovação, o de saneamento
das finanças, permitiu desembaraçar a estrutura clientelista,
conquistar a autonomia política e melhorar serviços
de educação e saúde que resultaram em maior
credibilidade para aquela administração.
Além de diferenciar distintas formas de inovação
e suprir o leitor com um amplo leque de conceitos sobre administração
pública, o livro, com 204 páginas, traz, entre outras
informações, as maneiras de avaliar se as práticas
inovadoras de fato apresentam uma relação custo-benefício
satisfatória. Existe um rol de atributos no capítulo
3 que permite ao gestor checar a importância transformadora
de um projeto público ou social. Entre eles, a melhoria
da qualidade de vida do público-alvo, a auto-sustentabilidade
do projeto, viabilidade técnica, gerencial, econômica
e financeira, credibilidade pública, accoutability (transparência
e prestação regular de contas), desenvolvimento de
tecnologia, responsabilidade na utilização de recursos,
consolidação e ampliação do diálogo
com a sociedade civil, articulação entre diferentes
setores da sociedade, inclusão de minorias sociais e incorporação
de tecnologias facilitadoras da ação pública,
entre outros.
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