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Semear interdisciplinaridade. Essa foi a meta que aliou pesquisadores e estudantes de todo o País na maior maratona científica da América Latina. De 16 a 21 de julho, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promoveu, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, a 58ª Reunião Anual, apresentando pesquisas nas mais diferentes áreas do conhecimento e refletindo sobre o futuro social, econômico, cultural e tecnológico do País. Cerca de 10 mil pesquisadores participaram do evento.

Foram 50 conferências, 60 simpósios e 30 mesas-redondas, entre inúmeros eventos paralelos, como exposições, minicursos, apresentações de corais, teatro, performances e bandas de rock, que atraíram um público diário de 15 mil pessoas. Pela primeira vez, a reunião teve palestras transmitidas ao vivo via internet, que foram assistidas por internautas em vários países.
Diante dessa ampliação dos debates via internet, o presidente da SBPC, professor Ennio Candotti, acredita que a reunião dos cientistas brasileiros passa a enfrentar novos desafios. “A ampliação do acesso aos debates exige novas responsabilidades e posturas, já que um número muito maior de pessoas pode acompanhar suas colocações.”

Candotti lembrou a importância de reformular e acabar com o excesso de leis que limitam o desenvolvimento científico no País. “Eu meu refiro às restrições que impedem a atividade científica, como as leis que regulam o acesso ao patrimônio genético no Brasil. Os biólogos brasileiros protestam por enfrentar uma burocracia irracional para coletar amostras. É proibido proibir o estudo da natureza.”


O ministro Sergio Rezende e a abertura da reunião: interdisciplinaridade marcou os debates do encontro

Durante a reunião da SBPC, foram debatidos temas como o problema da violência em São Paulo. A criminalidade, segundo Candotti, precisa ser enfrentada com inteligência, preparo e obediência ao estado de direito. Os pesquisadores discutiram ainda a saúde, a educação e o ambiente, compondo dossiês que formarão documentos para ser apresentados aos candidatos à Presidência da República. Embora a SBPC tenha levantado, em poucos dias, um perfil da realidade do País, os candidatos não apareceram. “Alguns se mostraram interessados e reiteramos que as portas da universidade estavam abertas, mas não vieram.”


Estudantes de várias regiões do Brasil participaram da reunião: palestras abordaram temas ligados a todas as áreas do conhecimento

Com o tema Semeando Interdisciplinaridade, a reunião destacou a expansão da tecnologia, incluindo na programação temas importantes para a indústria nacional, como a implantação da TV digital – que poderá promover a diversidade cultural e a inclusão social através de cursos de educação a distância e canais locais e educativos. Foram discutidas também as novas tecnologias na produção do petróleo, a nanociência e a nanotecnologia, engenharia biomédica e os desafios da indústria da construção, entre outros temas. “A divulgação da ciência e tecnologia deve alcançar também os empresários, que transformam a tecnologia em produtos de mercado. Esse, na verdade, foi um dos grandes desafios da reunião. Pela primeira vez, jovens empresários, interessados em inovar, vieram à SBPC contar o que estão fazendo e como gostariam de crescer”, observou Candotti. “Inauguramos um espaço novo dentro da SBPC, preocupado em explorar a parceria entre universidade e empresa.”

Para o ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Machado Rezende, a participação dos empresários foi um dos méritos da reunião da SBPC. “É muito importante incentivar uma relação mais estreita entre a produção e a aplicação do conhecimento.” Disse que é essencial priorizar a formação de pesquisadores: “O Brasil deveria ter, no mínimo, 600 mil pesquisadores e só tem 60 mil. Porém, neste ano, a expectativa é de formar mais 10 mil doutores e as bolsas de mestrado e doutorado que, em 2002, somavam 11.400, alcançarão 16.200 até o final de 2006, ou seja, um aumento de 42%”. Rezende disse que é importante fazer dos recursos públicos e da formação de quadros em ciência e tecnologia insumos para o desenvolvimento nacional.

 


Como salvar esse patrimônio da humanidade?

Foi com a expectativa de ser ouvida por todos os cientistas, estudantes e, especialmente, pelo Ministério do Meio Ambiente que a arqueóloga Niède Guidon, de 72 anos, foi à reunião da SBPC, a fim de defender o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. “Vim para conscientizar a todos da importância de salvar esse nosso parque, considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco”, declarou.

Depois de viajar vários dias – ela nem soube precisar quando havia saído do município de São Raimundo Nonato, no Piauí –, Niède Guidon chegou em Florianópolis na manhã do dia 19. Entrou no auditório ao lado de Ennio Candotti, que reiterou o empenho da SBPC pela preservação do parque. “Essa é uma das grandes prioridades deste nosso encontro.”


Candotti e Niède: apoio da SBPC à preservação do patrimônio cultural

Niède, paulista de Jaú, filha de imigrantes franceses, coordena as pesquisas na Serra da Capivara desde 1973 e é considerada uma das maiores especialistas em pré-história sul-americana. Já recebeu vários prêmios internacionais e, no ano passado, foi indicada para receber o Prêmio Nobel da Paz. O reconhecimento mundial do seu trabalho, no entanto, não bastou para conscientizar o governo brasileiro da importância da Serra da Capivara. “Há mais de um ano que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) não repassa a verba para a manutenção do parque”, protestou. “Temos conseguido manter o parque e as pesquisas graças ao apoio da Petrobras, da Companhia Vale do Rio Doce e de algumas doações. Mas essa verba vai acabar no final deste mês e todos os 300 funcionários terão de ser demitidos. Já levamos o problema para a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, mas ela alega que nenhum parque federal tem orçamento fixo e, portanto, nós também não precisamos ter.”

Se não conseguir apoio para a manutenção do parque, Niède Guidon disse que vai deixar o País. “Eu não suporto mais tanto descaso”, desabafou. “O governo tem que tomar uma decisão. Um único sítio arqueológico na França atrai 2 milhões de turistas. Dentro do parque, temos 400 sítios arqueológicos e o nosso projeto era atrair cerca de 3 milhões de turistas por ano.”

créditos:Niède Guidon\Fumdham

A cientista mostra as fotos do lugar destinado para o aeroporto, completamente abandonado. Também apresenta detalhes das pinturas rupestres. Uma delas está sendo avaliada e há a expectativa de que tenha 35 mil anos, sendo a mais antiga do mundo. “A primeira vez que me deparei com essas imagens foi em 1963, quando trabalhava no Museu Paulista da USP. Estava apresentando uma exposição com as pinturas de Lagoa Santa, em Minas Gerais, e um sujeito se aproximou e disse que lá na sua terra, no Piauí, estava cheio de imagens parecidas. Ele me mostrou as fotos e eu fiquei surpresa com essa descoberta.”
Em 1964, a arqueóloga da USP foi para a França, mas começou a idealizar um projeto para pesquisar em São Raimundo Nonato. “Finalmente, em 1973 consegui organizar uma missão franco-brasileira e comecei as pesquisas. Em 1978, formei uma equipe multidisciplinar e iniciamos a escavação no sítio da Pedra Furada.”

As descobertas provocaram uma grande polêmica nos estudos arqueológicos. Até então, as pesquisas indicavam que o homem veio para a América pela Ásia, passando pelo estreito de Behring, há 12 mil anos. Porém os fósseis de hominídios encontrados no Nordeste brasileiro datam de 50 mil anos, portanto, bem mais antigos do que os já encontrados na América do Norte. “Nós comprovamos que as sociedades que viveram naquela região tinham uma grande cultura não só através das pinturas, mas na parte tecnológica, com o tratamento da pedra lascada, da pedra polida e também a criação das cerâmicas. As de Marajó são uma obra de arte com uma tecnologia especial. É difícil fazer urnas daquele tamanho sem que ela se parta no momento da queima. Também as casas da Amazônia são obras-primas da arquitetura, totalmente adaptadas ao clima. Nós temos tudo isso, que deveria ser motivo de orgulho e consciência.”

Niède diz que é muito difícil falar em proteção ambiental onde as pessoas morrem de fome, sem alternativas de trabalho. “Através do turismo, poderíamos gerar fontes de renda, empregos para a população. Mas quem vai pensar em trabalhar com a política atual do Fome Zero? Esse assistencialismo só prejudica. Não se forma um povo transformando-o em dependente, em mendigo. Triste também ver as meninas engravidando para receber a verba que o governo liberou de R$ 1.200,00. Mas e depois? O que vai acontecer com elas e as crianças?”

Niède alerta que, se os assentamentos continuarem, o risco das queimadas também aumentam. Diante dessa realidade e da falta de apoio, a cientista está cansada. “Eu não me conformo. O Parque Nacional da Serra da Capivara tem a mesma importância das cavernas de Lascaux, na França, ou as da Austrália. Mas quantos brasileiros já ouviram falar nesse patrimônio chamado Parque Nacional da Serra da Capivara?”


créditos:Niède Guidon\Fumdham
Santos Dumont no campus da Universidade Federal de Santa Catarina: inventor brasileiro foi inovador, que em seu projeto de construção do 14 Bis utilizou materiais até então desprezados

Na trilha do cientista do futuro

Para defender a importância dos morcegos no ambiente, 28 cientistas do futuro, hoje entre 14 e 17 anos, não mediram esforços. Eles são do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia e vêm estudando o mamífero há vários anos. Porém só divulgar as pesquisas nos arredores da escola, em Barreiras, a 853 quilômetros de Salvador, não basta. Esses jovens cientistas querem sempre ir mais longe. Há quatro anos, sua escola marca presença nas reuniões da SBPC Jovem, também realizada em Florianópolis, de 16 a 21 de julho, dentro da 58a Reunião da SBPC. Mas, para participar, eles conseguem sozinhos a verba da passagem, alimentação e hospedagem promovendo festas, bailes e vendendo doces.

Depois de 38 horas de ônibus, enfim, os pesquisadores-mirins chegam em Florianópolis. E montam, cuidadosamente, o seu estande. Na entrada, um caixão chama a atenção dos visitantes, que são recebidos pelo “drácula” Wanderson Brito, de 16 anos. Capa preta, boca e olhos arroxeados, o drácula convence o visitante que “o morcego está longe de morder pescoço de gente”. Explica: “Esses mamíferos voadores de tanta má fama estão entre os maiores responsáveis pela preservação das nossas matas e florestas, especialmente o cerrado, que sem eles fica condenado a desaparecer. A reconstituição da cobertura vegetal das margens das represas depende dos morcegos, que polinizam e reconstituem a nossa flora”.

A performance de Wanderson Brito logo atrai o público. “Os morcegos são devoradores de insetos e ajudam a diminuir o número dos nocivos às lavouras, contribuindo com a agricultura”, continua. A estudante Laercia Ursino lembra que, apesar da sua importância, é muito comum o extermínio de morcegos na zona rural. “As pessoas matam porque imaginam que todos os morcegos transmitem raiva. Mas só três espécies se alimentam de sangue, entre as cerca de mil existentes. E o rebanho que fica sujeito a esse contágio deve ser vacinado.”

Escola do Futuro – Com a colaboração da Escola do Futuro da USP, os alunos da Escola Estadual Dona Idalina Macedo Costa Sodré, de São Caetano do Sul, participam, há nove anos, dos encontros da SBPC Jovem. Porém, contam com o apoio da Prefeitura e das empresas da região. “Nós trouxemos 36 estudantes”, diz o professor Eduardo Ruiz Maldonado. “Estamos apresentando 11 projetos, que variam de ciências biológicas a ciências sociais.”

Enquanto os alunos baianos defendem o morcego, os de São Caetano do Sul apresentam suas pesquisas em prol da vida dos beija-flores. “Os bebedouros tradicionais que estão à venda nos pet-shops e mercados, por terem um orifício, atraem outros tipos de animais, como abelhas e sabiás, propiciando a formação de fungos”, explica Larissa Ferreira, 17 anos, estudante da terceira série do ensino médio. “Quando o beija-flor entra em contato com esse orifícios, esses fungos acabam causando a sua morte.”
Os estudantes apresentaram os bebedouros que eles próprios desenvolveram para os beija-flores e orientam o público a fazer o mesmo. São garrafinhas de plástico nas cores amarela (para dias ensolarados), vermelha (para dias quentes) e azul (para dias nublados). “O furo para a saída da água deve ser feito a mão, pois assim somente o beija-flor, com seu bico extremamente fino, consegue beber a água”, orientam. “Para cada 200 ml de água misturamos duas colheres de sopa rasas de açúcar muito bem dissolvido. A água deve ser trocada todos os dias, pois senão acaba fermentando e se torna um veneno.”

Os alunos dessa escola de São Caetano do Sul têm como meta popularizar a ciência e mostrar que ela está presente no cotidiano, embora passe despercebida. Renata Colombo, 16 anos, e sua equipe apresentam um projeto para que o público possa entender a clonagem através do plantio de dálias e violetas. “Toda vez que a pessoa tira uma folhinha de uma violeta, coloca na água para criar raízes e replanta na terra, ela está fazendo um clone.” Ao ouvir a explicação, Maria Kirsch, de 70 anos, que veio visitar a SBPC com os netos, conclui: “Nossa, eu faço clonagem todos os dias.”

Orgulhoso, o presidente Enio Candotti diz que os estudantes do ensino fundamental e médio, com o seu idealismo e determinação, abrem novos horizontes para a ciência brasileira. “Com a SBPC Jovem, incentivamos o desenvolvimento do espírito científico e cultural dos estudantes ao aproximá-los dos grandes pesquisadores e sociedades científicas brasileiras. Através desse programa, abrimos um novo espaço para a produção científica desses alunos antes que eles cheguem às universidades.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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