Mês
de férias na USP. Época em que muitos
alunos e professores aproveitam para descansar, viajar e rever
familiares. Há, no entanto, uma pequena parcela daqueles
que aproveitam o período para exercitar a profissão
fora da tradicional sala de aula. Foi o que aconteceu no mês
de julho com um grupo de oito estudantes e professores da Faculdade
de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP. Embarcaram
numa expedição até o Médio Xingu,
no Mato Grosso, para o trabalho acadêmico e de extensão
que a unidade desenvolve com os índios da região
desde 2004.
Depois de 35 horas de viagem de ônibus, avião e
barco, o grupo da Forp foi recepcionado na aldeia dos ikpengs.
Com um sorriso estampado no rosto e uma alegria contagiante,
o barqueiro Yambra anunciou, na língua caribe, a chegada
dos dentistas às margens do rio Kuluene, afluente do Xingu: “Areprï USP
ningkïn! Areprï USP ningkïn!” (“A
USP chegou! A USP chegou!”).
Os ikpengs, mesmo tendo mais contato com
o coordenador do projeto, professor Wilson Mestriner Junior,
identificam no projeto a instituição
USP – talvez influenciados pelo trabalho da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), que atua no local há 40
anos, num projeto criado pelo professor Roberto Baruzzi e hoje
coordenado pelo médico sanitarista Douglas Rodrigues.
Para alcançar a aldeia dos ikpengs, onde funciona um dos
três pólos de saúde indígena da Fundação
Nacional do Índio (Funai) e da Unifesp, chamado de Pavuru, é preciso
enfrentar situações climáticas opostas.
Um calor escaldante dava lugar, numa trégua estratégica,
a um frio intenso e úmido, ao cair da noite. O rio baixo
e o peso da embarcação – uma canoa de nove
metros de comprimento com um motor de 40 hp – impediam
que a viagem fosse mais rápida. Apesar do desconforto,
principalmente para os marinheiros de primeira viagem, tudo transcorreu
tranqüilo nas mãos do barqueiro Yambra, neto de cacique
grande e guerreiro. O pai de Yambra, ou Chico, era mestiço.
O nativo conduz a embarcação por entre rios, afluentes
e igarapés há mais de 20 anos, tempo suficiente
para fazê-lo se acostumar com cada pedra ou obstáculo
escondido sob as águas. “É mais perigoso
navegar na cheia, perigosos os paus que rodam no rio”,
ensina. Sua destreza em manejar a canoa faz história. “Nunca
passei por nenhum problema no barco.” Para pegar o grupo
da Forp, foram 20 horas de navegação entre o Pavuru,
onde a equipe da Forp se instalou, e a fazenda Sayonara, que
faz divisa com o Parque Nacional do Xingu. Ida e volta. A distância
para os ikpengs se mede por hora.
Dos nove integrantes da expedição, cinco são
alunos de graduação, um de pós-graduação,
dois professores e esta jornalista. A chegada na aldeia se deu
no meio da noite, mas a exaustão da viagem teve que esperar
um pouco mais. Era preciso descarregar a bagagem, composta por
caixas de equipamentos e materiais odontológicos, comidas
e malas. E, para alguns, ainda faltava se ajeitar no quarto da
oca destinada aos visitantes, e na nova cama – a rede.
Ikpengs
não têm pressa – No alvorecer, a beleza
exuberante do local se revelou em sua plenitude. De um lado, o
grande rio; do outro, a aldeia cercada e protegida pela mata. É no
amanhecer também que a cultura dos ikpengs começa
a se revelar. O tempo na aldeia parece não querer passar.
Tudo obedece a uma lógica criada pelos índios. A
calma é para que a qualidade venha sempre à frente
da quantidade. Qualquer ação dentro da aldeia, mesmo
que para iniciar um trabalho já programado, necessita do
aval do cacique Melobo. As primeiras atividades são, como
na cultura dos caraíbas, reuniões. Primeiro com o
pessoal da Unifesp, depois com o cacique Melobo.
Enquanto isso, os professores da Forp,
Mestriner e Maria da Glória
Chiarelo de Mattos, explicavam para os novatos na expedição
algumas normas de conduta básicas. Por exemplo, as falas
devem ser feitas com o olhar nos olhos do outro. E assim o dia
vai transcorrendo, como se todos estivessem fazendo um reconhecimento
da área e aprendendo um pouco mais sobre a cultura desse
povo.
Entre as atividades dos dentistas
está uma parada para assistir,
numa das noites na aldeia, à festa dos guerreiros para comemorar
a ida deles, com outras etnias do parque, ao local de enfrentamento
com os brancos, para bloquear a construção de uma
das barragens programadas em cabeceiras de rios afluentes do Xingu.
No meio deles o barqueiro Yambra, que virou guerreiro.
Entre as muitas curiosidades do povo ikpeng – último
grupo do parque a fazer contato com o homem branco, na década
de 70, quando receberam a visita dos irmãos Villas-Boas –,
nota-se a grande preocupação com o bem-estar de suas
crianças. Elas vivem soltas e são comportadas demais
para os padrões do povo branco. Criança ikpeng não
chora, não faz birra, não cria tumulto nem é teimosa.
Em todos os atendimentos elas sempre são as primeiras. São
extremamente curiosas, mas rodeiam aqueles que trabalham na aldeia
sem manifestar um só sussurro.
Até há pouco tempo, o infanticídio ainda era
uma prática comum. Entretanto, apesar de o assunto ainda
ser tabu, os índios do Xingu utilizam uma prática
do homem branco para resolver a questão, a adoção.
De acordo com relatos dos coordenadores de saúde indígena,
já são mais de 30 adoções entre os
cerca de 5 mil índios que vivem no parque.
Respeito
ao outro – A Unifesp mantém dentistas contratados
nos Pólos de Saúde dentro do Parque Nacional do Xingu.
Entretanto, os problemas eram muitos e em 2003 veio o convite para
a Forp integrar o projeto. Uma das dentistas da Unifesp, Raquel
Pacagnella, formada pela Forp, intermediou o contato – o
que veio ao encontro da nova proposta pedagógica da unidade,
de formar profissionais completos, formar agentes de saúde.
Os problemas de saúde bucal dos povos do Xingu se agravaram
desde os primeiros contatos com o homem branco, seus hábitos
e costumes. Entre eles, o consumo do açúcar industrializado,
o que gerou dependência dos índios ao consumo do produto
ou de doces. Em 2004, a USP e a Fundação Nacional
de Saúde (Funasa) estabeleceram convênio para o desenvolvimento
de atividades da Forp no parque.
Desde o início das atividades no Xingu, a Forp já atendeu
a cerca de 3 mil índios e colocou 180 próteses. Os
indicadores apontam uma inversão da situação
e o sucesso nos procedimentos e na política adotada. “No
início, para cada cinco extrações era feita
uma restauração. Hoje, o quadro mudou. Para cada
cinco restaurações há uma extração”,
comemora Wilson Mestriner Junior.
Nesta expedição, a professora Maria da Glória
Chiarelo de Mattos – responsável pelas próteses
que estão sendo colocadas em alguns dos índios – é a
primeira a iniciar o trabalho. Muitos na tribo, de cerca de 180
pessoas, já usam próteses, parcial (pontes) ou total
(dentaduras).
Professores e alunos aprendem que trabalhar
com o povo indígena
não é simplesmente chegar e atender àqueles
que precisam de um tratamento ou de uma prótese. Com os índios, é necessário,
acima de tudo, conquistar a confiança das lideranças
da aldeia. Apresentar um plano de trabalho e, principalmente, mostrar
que conhece e respeita a cultura local. A sensação é de
estar o tempo todo sendo avaliado. Mesmo o trabalho de jornalista.
O cacique Melobo anda o tempo todo entre os visitantes e, questionado
sobre o trabalho da Forp, é incisivo: “Estamos contentes
com o trabalho da USP. Se não estivesse bom, já teriam
ido embora”. Sobre o que poderia ser melhorado ou se tinha
alguma reclamação, vem a surpresa: “A pergunta é a
mesma, a resposta também: se não estivesse bom, vocês
não estariam mais aqui”.
Homem de poucas palavras, mas vaidoso, Melobo
escancarou um sorriso depois de trocar a prótese superior. Não é para
menos: na nova prótese reluzia um grande dente de ouro.
A alegria do povo ikpeng com as próteses é visível.
Eles riem de tudo para exibir os novos dentes. Finalmente, depois de dois dias conhecendo o
território
no qual exerceriam o trabalho, todos, alunos e professores, iniciam
definitivamente as atividades. Nesse momento os alunos aprendem
outras formas de trabalhar em odontologia. Aprendem o verdadeiro
sentido do trabalho multiprofissional, o que é infra-estrutura
precária, dificuldades geográficas e, principalmente,
o que é adversidade. Conhecem o respeito por outra cultura,
a troca do individual pelo coletivo. Aprendem a somar e a multiplicar – subtrair,
jamais – e que a qualidade, mesmo numa cultura tão
diferente, é essencial.
Aprendem ainda algumas das coisas mais importantes
na relação
com o paciente: entender o universo do outro, respeitá-lo,
colocar-se no lugar dele, passar confiança no trabalho que
está sendo executado. E tudo isso na prática. O instrumental
de trabalho é o mesmo de um consultório da cidade,
mas as cadeiras são bancos de madeira e o encosto para a
cabeça é uma maca. Um a um, todos – principalmente
as crianças – são atendidos, ordenadamente
e, não podemos esquecer, “sem pressa”. Afinal,
tem hora para ir ao posto, mas tem hora para banhar-se, brincar,
pescar...
As próteses são instaladas e ajustadas. A colocação
dessas próteses, no entanto, encontra um inconveniente:
o tempo entre sua moldagem, sua construção e sua
colocação, que pode chegar a um ano. Nesse período,
nos casos de próteses parciais, a movimentação
natural dos dentes faz com que haja diferenças entre o que
foi construído e a boca que o profissional vai encontrar
na hora da instalação. Mas nada que abale a confiança
dos índios no trabalho e que não os faça aguardar
pacientemente que os ajustes sejam feitos. A frase que mais se
houve ao final de uma sessão é: “Vou experimentar”.
O grupo da Forp visitou outras aldeias para
atendimento, mas para a colocação das próteses os pacientes precisam
se deslocar até o Pavuru. Como fez o cacique da aldeia Morena,
Tuiaraiup, e sua mulher. Ele afirma que seu povo está satisfeito
com o trabalho da USP. Sempre “USP”, a instituição. “Precisava
de alguém para assumir esse compromisso com as comunidades.
Gostamos da proposta da USP, que tem ido bem”, diz Tuiaraiup.
Sobre sua prótese, ele também é econômico
nas palavras: “Vou experimentar”. |
“Minha vida é viver”,
diz a guerreira Ayré
Ela é uma mulher idosa. Parece frágil, desprotegida
e pequena. Não tem mais do que 1,50 m de altura. Questionada
sobre sua idade, diz apenas que é “antiga”, tem
vários filhos, muitos netos. Não sabe contar na língua
dos caraíbas. E sai andando pela aldeia, desinibida. Sigo
atrás. Vai mostrando as várias ocas por onde se espalham
seus filhos e netos. São, pelo menos, umas oito. “Por
aí dá pra ver minha idade”, e sorri. Seu nome:
Ayré. Só fala a língua dos ikpengs, o caribe,
bem diferente do tupi. Por isso é preciso ter sempre a companhia
de um tradutor.
Aos poucos, a convivência com essa índia revela uma
outra mulher. De frágil não tem nada. Basta conhecer
um pouco de sua vida. Alegre, extrovertida, gosta de cantar e mantém
a tradição de andar nua.
Falante, Ayré não esconde a alegria de receber visitas
e contar as histórias da família e do seu povo. A fala,
meio cantada, ora parece uma lamúria, ora um canto de guerra. Diz
que as pessoas não vão visitá-la, mas que sua
casa está aberta e recepciona todos com um abraço bem
apertado, caloroso.
Dá como presente o suco de uma fruta, que seu povo chama de “lágrima
das estrelas”. Extremamente doce, tem um sabor indescritível,
diferente de tudo que se experimenta na vida urbana. Ayré fala
sem parar, contando histórias sobre as guerras de que participou.
A seu modo, é uma revolucionária. Rompeu com a organização
patriarcal do grupo e assumiu uma das funções destinadas
somente aos homens: ser guerreira.
Diz que namorou muito, mas que o marido escolhido
já foi,
os espíritos o levaram. Ela se prepara para uma festa que
haverá logo mais e que vai reunir toda a tribo. Enquanto se
arruma, vez por outra dá uma pausa na vaidade e conta de algumas
guerras em que esteve presente. Em uma delas, participou do roubo
de crianças de outra tribo. Mas ressalta que o ataque foi
organizado e estudado. Numa dessas batalhas, seu povo aproveitou
o momento em que as meninas de outra tribo estavam colhendo pequi
e roubou uma delas. Em outra guerra, precisou recuar porque o pai
achou muito perigoso. “Guerreávamos com todos, achávamos
que ninguém podia nos vencer.” Orgulhosa, diz que não
tem medo de nada. Na tribo existiam outras guerreiras. Todas morreram,
só ela está viva. Hoje passa a experiência das
guerras para os filhos.
Ayré nasceu numa região chamada Jatobá, território
original dos ikpengs, fora do Parque Nacional do Xingu. Quando mudou
para o local onde estão, no médio Xingu, já era
uma mulher, tinha um filho e uma filha. Já não participa
mais de guerras, os filhos não deixam. Nem por isso sua rotina
deixa de ser intensa. Faz redes, pesca, planta e colhe, principalmente
ervilhas. É ainda a parteira da tribo. “Muitas das crianças
que nasceram aqui fui eu que fiz nascer.” Aprendeu a ser parteira
com a mãe quando tinha uns sete anos. Fez o parto do próprio
filho, o primogênito.
A forte relação com a terra e com o passado vem à tona
quando se refere a Jatobá – uma nova luta que o povo
ikpeng inicia, de voltar para sua terra de origem. “Lá é onde
nasci, onde está minha placenta, onde estão enterrados
meus pais e minhas irmãs. Esse lugar onde estou não é minha
terra, vim de lá, onde não falta nada, tem tudo o que
preciso. O brinco que uso é único, aqui não
tem o que preciso para fazer outro.”
Ayré participou de um filme sobre o povo ikpeng, onde narra
a chegada dos brancos, o susto de seu povo com o barulho do avião – “grande
pássaro” –, nos primeiros sobrevôos dos
irmãos Villas-Boas sobre as tribos para os contatos. Foi Ayré que
recebeu a primeira prótese dentária da aldeia, feita
pela equipe da USP. Agora come bem, mastiga, mas tem receio de engasgar
com o peixe. Ayré diz que não tem medo de morrer, que
só pensa em viver, se divertir e fazer amizade com todo mundo. “Minha
vida é viver e me divertir.” |