Professor,
escritor, ministro das Relações Exteriores
nos governos Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, embaixador,
chefe da Missão Permanente do Brasil na Organização
Mundial do Comércio (OMC) e nas Nações Unidas
em Genebra, presidente do Conselho Geral da OMC, membro do Comitê Consultivo
das Nações Unidas para assuntos de desarmamento:
a seu vasto currículo, do qual aqui se dá apenas
uma pequena amostra, o professor da Faculdade de Direito da USP
Celso Lafer adicionou no dia 21 de julho a eleição
para a cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras (ABL), ocupada
por 31 anos pelo também professor e ex-reitor da USP Miguel
Reale, falecido em abril. A eleição representa “uma
expressão de acolhida”, diz Lafer, que completou 65
anos no último dia 7. A posse está marcada para o
dia 1º de dezembro. Na entrevista a seguir, concedida em seu
escritório em São Paulo, o professor fala de sua
formação e sua trajetória intelectual e também
aborda temas da política nacional e internacional. “Em
matéria de política externa o governo Lula tem prioridades
demais e, portanto, clareza de menos”, afirma, referindo-se à área
em que atuou como ministro de Estado.
Jornal da USP – Como o senhor recebe a eleição
para a Academia? É uma espécie de coroamento de sua
trajetória intelectual?
Celso Lafer – Hannah Arendt, quando foi homenageada pela
American Academy of Arts and Sciences e recebeu a Medalha Emerson-Thoreau
(em 1969), disse que há certas coisas que você pode
disputar: um concurso para professor titular, uma livre-docência
etc. Agora, o tema do reconhecimento é uma espécie
de presente, independe de você. Para ela, se o reconhecimento é bom,
o acolhimento é ainda melhor. Minha eleição
foi uma expressão, mais do que de reconhecimento, de acolhida,
o que muito me toca e me sensibiliza. Fui eleito para uma cadeira
cujo ocupante anterior era o professor Miguel Reale, de quem fui
aluno e também sucessor na disciplina de Filosofia do Direito
na Faculdade de Direito da USP. Lembro que o antecessor dele foi
Fernando de Azevedo, também um importante professor da nossa
universidade. O antecessor de Azevedo foi o professor Carneiro
Leão, que era um grande educador. É uma linhagem
de educadores que se confirma com o fundador da cadeira, Clóvis
Bevilacqua, homem de largo pensamento que foi consultor jurídico
do Itamaraty durante muitos anos, a convite do Barão do
Rio Branco. Tendo eu sido ministro das Relações Exteriores,
há com o Clóvis esse vínculo. O patrono da
cadeira é Franklin Távora, que é uma espécie
de precursor do romance do Nordeste. A idéia e a concepção
que ele tinha de romance, que não chegou a realizar plenamente,
antecipa esse tipo de preocupação que depois desdobrou-se
na nossa vida cultural com o grande ciclo do romance do Nordeste.
Antonio
Candido (à cima),
Miguel Reale,
Sábato Magaldi e Alfredo Bosi (imagens distribuídas ao
longo da matéria): mestres e
amigos do
novo imortal
da Academia
Brasileira
de Letras
JUSP – A Academia ainda tem o peso e a ressonância
cultural que já teve em outros momentos?
Lafer – Naturalmente as circunstâncias são distintas
daquelas que levaram, na passagem da Monarquia para a República, à idéia
de uma instituição como a Academia Brasileira de
Letras. Mas ela reúne, na diversidade de seus membros, uma
dimensão muito representativa daquilo que é o pluralismo
cultural do Brasil. Ela também tem tido uma atuação
importante no que se pode chamar de “a política da
cultura”, como dizia Norberto Bobbio – ou seja, o desenvolvimento
daquelas atividades que propiciam a expansão da cultura
no Brasil. Vejo a Academia como tendo duas dimensões importantes.
Uma é a da convivência acadêmica, do contato
com as pessoas e do prazer desse contato; e a segunda é essa
idéia de uma política da cultura. Bobbio diz o seguinte:
a política divide, a cultura une. Acho que é essa
a idéia que presidiu a fundação da Academia.
Ela reuniu republicanos e monarquistas num espaço comum
voltado para essa dimensão superior e unificadora da cultura
que procurava criar convergências, e não estimular
conflitos. A Academia continua desempenhando esse papel pelas conferências
e ciclos que promove e pelas publicações que edita.
Há outros professores da USP que lá estão
e que compartilham esse tipo de objetivo, como Sábato Magaldi,
um nome da maior importância na pesquisa do teatro no Brasil,
e Alfredo Bosi, que como sabemos todos é uma das grandes
figuras das nossas letras.
JUSP – Hannah Arendt e Norberto Bobbio estão entre
os autores que marcaram a sua formação, enquanto
na sua trajetória profissional o professor Miguel Reale
teve grande destaque. Gostaria que o senhor falasse da importância
desses e de outros nomes na sua formação.
Lafer – Como disse, o patrono da cadeira 14 é Franklin
Távora, e eu tomei contato com ele lendo em 1959 o grande
livro Formação da literatura brasileira, do professor
Antonio Candido. Fiz o meu vestibular, não só para
a Faculdade de Direito, mas também para Letras, que não
cheguei a concluir, com base nesse livro. Fui aluno de Antonio
Candido e tenho escrito sobre a obra dele. É uma pessoa
que me marcou muito. Outra pessoa que também me marcou no âmbito
de Letras foi o professor Sigismundo Spina, um dos grandes mestres
em Camões e Gil Vicente, autores sobre os quais eu escrevi.
Na Faculdade de Direito, o professor Reale foi um grande mestre
e um extraordinário reitor da Universidade. Uma das notas
de sua personalidade era a imensa convicção que tinha
na capacidade nomotética do espírito, como ele dizia
citando Kant, que é a capacidade de lidar e compreender
as coisas. O professor Gofredo da Silva Telles marcou a minha geração
e as que se sucederam pela visão iniciática do direito
e do papel da Justiça. Tive também um grande professor
de Direito do Trabalho, Cesarino Júnior, que realçou
a idéia do direito como instrumento de atuação
social e de redução das desigualdades. Fui aluno
também do professor Vicente Marota Rangel, de Direito Internacional
Público, e aprendi muito com ele.
JUSP – E o senhor teve o privilégio
de ser aluno de Hannah Arendt.
Lafer – Fui aluno de Hannah Arendt em Cornell (Estados Unidos)
e não preciso dizer da importância e do impacto da
obra dela na minha reflexão e na minha postura diante das
coisas. Também fui aluno do Octavio Paz, que estava passando
um semestre como professor lá, e foi uma oportunidade única
de convívio. Além de grande poeta, Paz era um grande
pensador e crítico e me estimulou muito. Na linha dessas
grandes influências, cabe ressaltar Norberto Bobbio. Conheci-o
pessoalmente por meio do professor Reale, e depois entabulei com
ele uma relação de amizade e de convivência.
Dediquei-me muito a pensar sobre Bobbio e a divulgar a sua obra
no Brasil. A obra e as preocupações de Bobbio são
muito convergentes com os temas recorrentes do meu interesse.
JUSP – Entre os autores literários,
quem o senhor citaria?
Lafer – Comecei escrevendo sobre Gil Vicente e continuei
depois me dedicando a Camões, o que é um grande marco
da minha sensibilidade e da minha maneira de perceber o fenômeno
poético. Se você me perguntar quem eu acho um grande
escritor da língua portuguesa, estou de acordo com Fernando
Pessoa, que dizia que o padre Antonio Vieira é o imperador
da nossa língua. Admiro a sutileza arguta, sem fim, da obra
de Machado de Assis e tenho pela obra de Guimarães Rosa
uma admiração imensa. Gosto da poesia brasileira
do século 19, na qual a Faculdade de Direito foi um ponto
inspirador, com Castro Alves, Fagundes Varela e Álvares
de Azevedo. Gosto dessa recuperação que se faz da
obra dos parnasianos, como é o caso de Olavo Bilac. Admiro
a obra de Carlos Drummond de Andrade, gosto de Murilo Mendes, Cecília
Meirelles, João Cabral de Melo Neto... Fui muito amigo de
Haroldo de Campos, com quem tive algumas iniciativas conjuntas,
sobretudo na divulgação da obra de Octavio Paz. Graças
a ele, conheci algumas figuras importantes, como Roman Jakobson,
na área da lingüística, e também Julio
Cortázar, que era amigo dele e me abriu para o campo da
criação ficcional latino-americana. Entre os autores
do mundo latino-americano que gosto muito colocaria tanto Gabriel
García Márquez quanto Vargas Liosa.
JUSP – Que avaliação o senhor faz do momento
político do País, na esteira da crise que se arrasta
desde o ano passado e na perspectiva da eleição presidencial
de outubro?
Lafer – Preocupo-me muito com o tema da corrupção
e com essa diminuição que hoje verificamos de uma
cultura cívica e de uma visão republicana. A corrupção é um
problema complicado. Há uma imagem clássica de que
a corrupção é uma espécie de cupim
que vai comendo os materiais. Sou membro do PSDB, participei do
governo FHC, sou de oposição ao governo Lula, mas
sinceramente não esperava que o tema com o qual teríamos
que nos confrontar, como um dos pontos importantes do governo,
fosse a corrupção das instituições.
Escrevi logo no início do governo um artigo chamado “O
quem e o como”, recorrendo um pouco a uma reflexão
de Bobbio sobre a democracia. Dizia ele: no trato da política
você tem duas perguntas: “quem” governa e “como” governa.
A tradição de esquerda sempre foi um pouco a de que
se “quem” governa é uma expressão do
proletariado, que é uma classe universal, o “como” se
resolve pelo “quem”. Eu dizia que o governo Lula tinha
a legitimidade do “quem”, ou seja, a idéia de
democracia brasileira como de inclusão social, aberta através
do PT a essa nova presença de pessoas que antes não
tinham tido acesso aos cargos e comandos, mas que o “quem” não
resolvia o “como”. Na discussão do “como”,
da qualidade, o que tem acontecido é um problema de grande
magnitude. Minha expectativa é a de que a eleição
que temos pela frente contribua para clarear os ares e fortalecer
esse tema da democracia e das instituições. Alexis
de Tocqueville dizia que é preciso ter em relação
ao futuro essa preocupação salutar que faz velar
e combater. Eu tenho essa preocupação e é ela
que me move nessa área.
JUSP – O senhor verifica na população um descrédito
nos políticos e nas instituições que pode
ser perigoso para a democracia brasileira?
Lafer – Verifico que há uma sensação
de desconforto grande com isso, mas ao mesmo tempo acho que são
momentos passageiros e espero que não tenham esse efeito
negativo sobre as instituições. É claro que
estamos nos confrontando com um tema complicado, que são
as promessas não cumpridas da democracia, as realizações
que estão aquém das expectativas. Esse é um
capítulo não só brasileiro, mas também
latino-americano e internacional. Eu diria, para citar o Bobbio
novamente, que uma das grandes virtudes da democracia é que é um
sistema que conta cabeças, e não que corta cabeças.
JUSP – Como o senhor avalia a política
externa do governo Lula?
Lafer – Sou muito crítico da condução
da política externa. Na sua gestão, você precisa
evitar dois riscos fundamentais: um é o de subestimar o
que o País representa para os demais, porque isso leva ao
conformismo e à inércia; outro é o de superestimar
o que você representa para os demais, porque isso leva à inconseqüência
ou por vezes à temeridade. O governo Lula tem incidido negativamente
nesses dois campos. Há ocasiões em que superavalia
o que o Brasil representa para o mundo – por exemplo, ao
achar que vai alterar o capítulo da fome no plano internacional – e
há outras em que subestima o papel do Brasil, por exemplo,
ao não reagir como deveria em termos de firmeza e de defesa
do interesse nacional em relação ao recente conjunto
de problemas criados pelo governo Evo Morales, da Bolívia.
O governo também tem sido acomodatício em relação
ao papel que vem sendo representado pelo governo Hugo Chávez
na América Latina. Do nosso ponto de vista, o empenho fundamental
tem que ser o de procurar cooperação e convergência.
O que o Chávez busca, para promover a revolução
bolivariana, é a tensão. O risco que corremos em
relação à América do Sul é o
do nosso isolamento, o que a diplomacia brasileira tenta evitar
desde o século 19. O governo também superavalia o
que pode resultar das parcerias com a China e com a Índia.
Nem um nem o outro têm uma visão de Terceiro Mundo
nos moldes em que ela existia nos anos 70. Ambos buscam valer-se
do seu relacionamento com os Estados Unidos para promover os seus
interesses, e a idéia de uma oposição erga
omnis aos Estados Unidos não está na cabeça
desses dois importantes atores no plano internacional. Sem dúvida
nenhuma, os Estados Unidos, na administração Bush,
promovem uma tensão de hegemonia no plano internacional.
Agora, dada a sua presença no mundo com as características
que ela tem, o que cabe fazer, do ponto de vista dos nossos interesses, é ver
quais são os espaços possíveis de convergência.
Eles existem, cabe aproveitá-los: não buscar o conflito
indiscriminado em relação aos Estados Unidos, e se
opor a eles especificamente naquilo que é prioritário
para o interesse nacional. Governar é escolher, dizia Mendès-France,
um político francês por quem eu tinha grande admiração.
Em matéria de política externa o governo Lula tem
prioridades demais e, portanto, clareza de menos.
JUSP – Dentro do chamado bloco BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China), o senhor diria que o Brasil está ficando para
trás em termos de importância internacional e de desenvolvimento?
Lafer – Tanto a China quanto a Índia têm revelado
um desempenho econômico muito importante e expressivo e têm
manejado os seus interesses com mais resultados do que nós
temos feito. Parte desses problemas deriva de manejo interno da
política econômica, parte deriva do fato de que creio
que perdemos algumas oportunidades nos últimos anos, porque
o governo Lula enfrentou um período de calmaria econômica
no cenário internacional que ninguém sabe quanto
tempo vai durar. Anthony Giddens, que é um analista interessante
do processo de globalização, fala na sociedade de
risco. O risco é um dos temas importantes do mundo em que
vivemos. Política, inclusive a externa, é uma gestão
de riscos, e eu creio que não há por parte do governo
Lula uma percepção clara do número de riscos
que nos cerca. Um internacionalista belga, Charles de Visscher,
faz uma distinção importante entre tensão
e controvérsia. A controvérsia é específica
e se amolda com mais facilidade à lógica jurídica
e da negociação diplomática. Por exemplo,
os nossos contenciosos na OMC, por mais intensos que sejam, são
controvérsias. A tensão é algo mais difuso,
não tem um objetivo específico, e está permeada
não apenas por conflitos de interesse, mas por conflitos
de concepção. Existe no plano internacional uma tensão
de hegemonia que é fruto da ação norte-americana.
Você tem outras tensões que são fruto do solipsismo
ou do unilateralismo. A posição americana exprime
esse solipsismo da soberania, e a razão terrorista também
o exprime. Chávez promove na nossa região uma tensão
de equilíbrio ou de desequilíbrio. O que está ocorrendo
no Oriente Médio exprime tensões complicadas e de
difícil encaminhamento. Há também a indagação
sobre como vai marchar a economia mundial, qual o papel que terá a
desaceleração ou não da economia norte-americana.
O governo subestima os riscos que nos cercam, e eles estão
aí, começando exatamente por essas questões
de equilíbrio na nossa região.
JUSP – O senhor chamou a atenção num artigo
para o fato de que o cenário mundial mudou depois dos atentados
do 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, assim como têm
crescido as redes que operam na ilegalidade, como o narcotráfico,
o crime organizado etc.
Lafer – Vivemos hoje num mundo que opera por redes, tanto
para o bem quanto para o mal. As redes que operam com irregularidades
(crime organizado, drogas, tráfico de armas etc.) colocam
problemas muito complicados, inclusive temas de segurança.
No Brasil, o próprio Primeiro Comando da Capital (PCC) opera
por rede, e a rede se contrapõe à pirâmide
hierárquica do poder. Esse é um desafio da governança
nos dias de hoje.
JUSP – Os governos e as instituições internacionais
estão conseguindo responder a esses desafios?
Lafer – Primeiro é preciso saber operar com redes
e ver como elas funcionam. A percepção de uma criminalidade
internacionalmente organizada nós já tínhamos
com o Pacto da Sociedade das Nações (criada em 1919,
após o fim da Primeira Guerra Mundial), mas hoje a dimensão
disso tem outra característica, porque o processo de globalização é a
expressão de uma realidade gerada por novas técnicas
que diluem o papel das fronteiras. A globalização,
no fundo, significa que o mundo, as suas tensões e os seus
problemas se internalizam na vida dos países, e ao fazer
isso expõem os países a esses problemas. O 11 de
setembro foi, para os Estados Unidos, a internalização
das tensões do mundo dentro do seu território, coisa
que eles nunca esperavam que pudesse acontecer. A Organização
das Nações Unidas (ONU), a OMC e outros organismos
internacionais são sempre a expressão da necessidade
de coordenação e uma resposta aos custos da não-coordenação.
Elas foram criadas para lidar com um mundo de complexidades das
interdependências assimétricas, e hoje lidam com um
mundo globalizado, que é muito mais complicado.
JUSP – A universidade pública brasileira está diante
de desafios como, de um lado, a revolução tecnológica,
e de outro a questão do acesso, com um número cada
vez maior de jovens “represados” às suas portas.
Como enfrentar esses desafios?
Lafer – São grandes questões, de resposta não
clara. Com todas as dificuldades que tem, a USP é um centro
de excelência. Ela é pesada como instituição
e esse fato a torna às vezes mais imobilizada do que seria
de se desejar. Fui chefe de departamento e representante da Congregação
da Faculdade de Direito no Conselho Universitário e não
atiro a primeira pedra porque sei como essas coisas são
difíceis. Porém, insistir nessa dimensão da
qualidade do ensino e da importância de sua pesquisa e extensão é uma
obrigação nossa. Cabe-nos uma preocupação
com o rigor.
JUSP – E em relação
ao acesso?
Lafer – Precisamos gerar meios de lidar com as desigualdades
do Brasil e devemos lutar contra o preconceito, inclusive com políticas
afirmativas, mas me pergunto se as cotas são o caminho.
Quando estava no Itamaraty, propus e executei uma medida afirmativa
que foi a criação de um sistema de bolsas por concurso
público, gerando, para aqueles que viessem a ser contemplados,
a possibilidade de estudar durante um ano por meio dessa bolsa
para se prepararem para o vestibular do Instituto Rio Branco. Era
uma medida geradora de oportunidades, mas não se operava
através de cotas. |