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Eirene – em português, Irene –, filha de Zeus e de Thêmis, é a deusa grega da paz. Filha de um iraquiano com uma libanesa, nascida de família judia em Beirute há 45 anos, Irene Karaguilla Ficheman agradece por poder celebrar e viver a paz em São Paulo, depois de uma peregrinação que incluiu o conflagrado Oriente Médio, Itália, Canadá, Suíça, Luxemburgo, Israel, Estados Unidos e finalmente o Brasil. “Essas mudanças são traumatizantes. Você é sempre um estrangeiro”, diz ela. “Até os 20 anos de idade eu não tinha nacionalidade nenhuma. Então, finalmente me naturalizei luxemburguesa e meu passaporte até hoje é de lá.”

Os conflitos do Oriente Médio foram a razão dos primeiros êxodos da família. De origem judaica, o pai de Irene deixou um país árabe – o Iraque – e se mudou para outro, o Líbano, onde se casou e teve duas filhas. Em 1968, depois da Guerra dos Seis Dias, muitos judeus saíram do Líbano, entre eles os Karaguilla. A essa altura, o pai de Irene já era apátrida, pois não havia conseguido renovar seu passaporte iraquiano no Líbano. “Meu pai tentou conseguir residência em vários lugares, mas isso não é fácil quando você não tem uma nacionalidade”, conta. Depois de um breve período na Itália, a família permaneceu cerca de quatro anos em Montreal, no Canadá. As dificuldades da não-adaptação levaram a nova mudança, mas Irene lembra agradecida que esse período lhe proporcionou o domínio do inglês, que seria fundamental na sua vida. Mais um ingrediente da “salada” que já tinha árabe e francês, as línguas nas quais foi alfabetizada.

créditos: Cecília Bastos
A doutoranda da Escola Politécnica Irene Ficheman, nascida em Beirute, de família judia: “Não se pode esquecer o passado”

O pai começou a trabalhar num banco, por isso as mudanças, por curto período, para a Suíça e a seguir para Luxemburgo. Irene tinha então 11 anos e a perspectiva, para piorar a “salada” de línguas, era de estudar em alemão, idioma das escolas públicas. Os pais então a matricularam numa escola privada de língua francesa. Aos 18 anos, Irene decidiu que queria fazer faculdade em Israel, mesmo contra a vontade inicial dos pais. Estudou em Tel-Aviv, onde a família tinha parentes. De alguma forma, a viagem representou uma busca pelas raízes e pela independência. “Foi como se eu tivesse renascido lá. Claro, você tem 18 anos, vai para a faculdade, o mundo está ao seu alcance”, considera. “Fui lá, lutei para aprender hebraico, para entrar na faculdade, consegui entrar, saí, arrumei emprego, tudo sozinha. Ninguém me disse o que fazer: eu decidi o que queria e conquistei meu espaço”, conta.

No seu caso, a grande importância do judaísmo reside na preservação de tradições e valores, de geração em geração. “Minha família nunca foi muito religiosa, mas conservou as tradições. Como mudei muito, valorizo isso como a minha identidade, a única que eu sei que sou: eu sei que sou judia.” Até hoje, em sua casa, a família se reúne todas as sextas-feiras para o jantar. As mulheres acendem duas velas antes do anoitecer e fazem uma oração. O chefe de família – “Aí tem que ser o homem”, ela ri – faz uma oração sobre o vinho. “Todos tomam um gole, e eu sirvo um pão especial para o sábado. Fazemos uma reza sobre o pão e jantamos juntos”, conta. “Não fazemos porque somos religiosos, mas pelo costume. É gostoso porque é uma oportunidade de reunir e conviver em família.”

Aproximação – Em Israel, Irene conheceu seu marido, um judeu brasileiro cuja família, oriunda do Leste Europeu, já estava na terceira geração em São Paulo. O astral dos colegas latino-americanos da faculdade a encantou. “No começo dos anos 80, as festas dos jovens na Europa eram em ambientes escuros, bebia-se muito, era um clima sempre ‘deprê’: as pessoas diziam que não valia a pena estudar porque não haveria emprego”, diz. “Em Israel, as festas do pessoal da América Latina tinham alegria, tudo era cheio de luzes, as pessoas dançavam e riam. Eu adorei.”

O clima tenso da região deixou marcas, claro. “Sempre houve conflito. As bombas estouravam nas ruas, nos mercados”, relata. “Para entrar em lugares públicos, como a própria faculdade, tinha que abrir a bolsa, ser revistado. A gente acaba se acostumando porque é para a própria segurança, mas isso também nunca deixa você esquecer que existe o perigo.” Colegas israelenses eram eventualmente chamados como reservistas para o exército, mas Irene diz não lembrar de alguém que tenha ido e não voltado.

“Essa situação de guerra é triste, muito triste”, lamenta, a respeito dos últimos acontecimentos na região. “Só posso falar do lado de Israel. Para mim, Israel está se defendendo contra ataques de um grupo terrorista. Não há nada contra o Líbano, não se trata de um conflito Israel-Líbano. Israel tem todo o interesse de estar em paz com os países da região. Se houver paz lá, todos podem prosperar, não só Israel. Vai ser melhor para todo mundo”, diz.

Para o futuro do Oriente Médio, Irene olha com mais fé do que convicção baseada em análises racionais. “Eu gostaria de enxergar a paz, mas do jeito que há interesses de manter conflitos por lá, não sei se a minha geração vai vê-la. Temos que fazer de tudo por ela, mas acho que teremos momentos de conflitos e momentos melhores.” Irene acredita que dificilmente as questões vão se resolver sem mediação política internacional – “mas em paralelo devem haver ações de aproximação e de educação de todos os lados”, defende.

Índio e esfirra – Irene e o marido trabalharam por um período nos Estados Unidos e depois vieram para São Paulo. “Falo tão bem do Brasil. Moro aqui há 19 anos e acho que as três maiores riquezas do País são o povo brasileiro, depois o clima e depois a natureza.” Ela reconhece que no Brasil existe preconceito contra algumas comunidades, “mas isso é nada em relação à Europa, nada em relação a outros lugares”, compara. “No meu primeiro dia de aula em Luxemburgo, o professor perguntou de onde vinha cada aluno e eu respondi que era canadense, como meu pai tinha falado. Aí o professor deu uma gargalhada e disse na frente de todo mundo que pela cor da minha pele eu não parecia canadense. Como pode?”

Irene logo evoca episódios que considera reveladores das riquezas brasileiras. “Fui para um congresso em Manaus e vi um índio com uma barraca na rua vendendo esfirra. Se eu perguntasse a origem daquela comida, tenho certeza que ele diria que é típica do Brasil”, relata. “A secretária que trabalha comigo tem um irmão de 20 anos que se chama Israel Salomão. Isso não existe na Europa, jamais alguém vai dar o nome de Israel.” Outro caso: na porta do escritório de um amigo judeu está uma mezuzá (pequeno rolo de pergaminho em cujo interior se colocam duas passagens bíblicas manuscritas). “A rigor, cada vez que se passa por ela tem que beijá-la. Então o patrão passa lá e beija, aí o boy passa e beija também. Se é bom para o patrão, por que não vai ser bom para ele?”, pergunta. “Quando conto isso na Europa ninguém acredita, mas eu acho o máximo.”

Irene gosta de freqüentar a região da rua 25 de Março, em São Paulo, e acha que cabe à mídia brasileira ressaltar os exemplos positivos de integração que o País dá – como um lojista libanês com um judeu comendo um quibe numa barraca de alguma esquina. “O Brasil tem muito futuro, mas tem que investir mais em educação”, avalia. “O lado ruim é que quando as coisas não estão bem, principalmente os serviços públicos, as pessoas não reclamam, não exigem, porque acham que está bom assim.”

À USP, Irene chegou depois de ter conhecido um professor da Escola Politécnica num congresso e começado a se informar sobre possibilidades de mestrado. Mais tarde, conheceu a professora Roseli de Deus Lopes, do Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) da Poli. “Comecei a fazer o mestrado e me entendi tão bem com ela que fiquei aqui como pesquisadora”, conta. Agora faz doutorado e é bolsista do LSI, onde pesquisa novas tecnologias para educação e entretenimento.

A doutoranda não pensa em sair do Brasil, e quer que suas duas filhas adolescentes também permaneçam por aqui. “A família dos meus pais está toda espalhada, em Nova York, no México, na Suíça, em Israel, meus pais e minha irmã estão em Luxemburgo... Não quero que minhas filhas morem em outro lugar.”

O desejo é reflexo do aprendizado de tantas andanças. Durante algum tempo, Irene deu aulas de informática em São Paulo. Um de seus alunos era um psiquiatra que certa vez lhe disse: quem não tem passado não tem futuro. “Vi que ele estava certo. O tempo todo eu tentei esquecer meu passado, mas vi que você fica meio perdido”, afirma. “Valorizo muito isso agora, inclusive minha raiz libanesa, que eu tentava negar. Não por causa dos conflitos, mas por sempre ter de me adaptar a um lugar novo e esquecer o anterior”, diz. “Não se pode esquecer o passado.”

Guerras do Golfo – Para boa parte do mundo ocidental, a primeira Guerra do Golfo é a de 1990-1991, quando uma coalizão liderada pelos Estados Unidos invadiu o Iraque para forçar o país a sair do Kuwait, no primeiro conflito transmitido ao vivo pela televisão em escala global. A segunda é a iniciada em 2003, também sob o comando dos Estados Unidos – agora governados por George Walker Bush, filho do presidente do começo dos anos 90, George Bush – e que segue produzindo vítimas e destruição até os nossos dias. Para os povos do Oriente Médio, no entanto, a contagem é outra: a primeira Guerra do Golfo é a que se estendeu entre Irã e Iraque de 1980 a 1988.

Quando começou esse conflito, o iraquiano Khalid Tailche estava na escola. “Imagine você ter 12, 13 anos e o seu dia-a-dia ser tomado pela propaganda. Depois do desenho animado, passa algo sobre guerra na TV. Você cresce com isso, portanto precisa ter muita tranqüilidade para não se deixar influenciar”, conta. Tempos depois, passaria pela experiência de servir no exército em tempos de conflito. “Terminei a escola e entrei na faculdade. A guerra com o Irã acabou em 1988, aí eu estava feliz, porque finalmente iria concluir a faculdade e, então, seria vida nova. Mas, por incrível que pareça, comecei o serviço militar quando o Iraque invadiu o Kuwait, e aí começou outra guerra”, relata.

Khalid não chegou a estar no front, porque servia num setor ligado a construções. “Mas é claro que você entra no clima. Tem que andar na rua de metralhadora e uniforme. Estávamos prontos para ser chamados para a batalha a qualquer momento.” Embora tivesse muitos conhecidos entre os soldados que estavam servindo na época, Khalid não perdeu nenhuma pessoa de sua família ou entre seus amigos mais próximos. “Mesmo assim, você fica sabendo de muita gente que morreu e sabe quem são as pessoas do seu bairro que foram para a guerra e não voltaram.”

Na sua visão, a guerra “é algo que ninguém entende como funciona, não é como aquilo que passa na televisão”. “Há muitos segredos. Não sabemos por que a invasão americana naquela época acabou parando e não chegou à capital. Anos depois, vem o Bush filho e desta vez invade a capital. Por quê?”, pergunta. Para o iraquiano, o interesse dos Estados Unidos não é arrumar a casa, e sim continuar os seus próprios investimentos e manejar as questões políticas e econômicas como melhor lhes convier. “Eles têm interesses, não têm amigos. O objetivo é controlar a todos”, avalia.

A alardeada reconstrução do Iraque também não é bem-vista por Khalid, que evoca um provérbio árabe – “dinheiro solto chama o ladrão” – para dizer que não houve planejamento no processo, e que os partidos políticos colocados no poder não têm tradição. “O que aconteceu de 2003 até agora foi, na verdade, uma destruição maior do que aconteceu na própria guerra”, diz. “A infra-estrutura do país foi destruída. Quando eu morava lá, enchia o tanque de um carro grande pelo equivalente a R$ 1. Hoje, meu irmão me conta que precisa ficar mais de dez horas na fila e não consegue abastecer. O nosso petróleo não é mais nosso. No segundo produtor do mundo você não tem gasolina? Isso é absurdo.” Para Khalid, controles de fora não vão adiantar. “Quem consegue arrumar a casa é o próprio morador, o próprio povo.”

créditos: Francisco Emolo

Um sonho – Essa situação é a responsável pelo adiamento da visita que Khalid quer fazer aos pais, que não vê pessoalmente desde que deixou o Iraque, há 12 anos. “É uma decisão pessoal. Não quero ver o país nessa situação, fico triste só de assistir na televisão”, lamenta. “Bagdá é um sonho, não é uma cidade. É a mesma coisa quando você fala de Beirute. São cidades que têm uma magia própria. Quem passa por lá vai descobrir coisas que nem imaginava”, diz, com olhar emocionado.

Khalid Tailche nasceu em Mossul, no norte do Iraque, há 39 anos. Fez o curso de Letras em Bagdá, formando-se em Literatura Inglesa, e começou a trabalhar como professor de inglês. Depois de formado, trabalhou dois anos na Líbia e há dez está em São Paulo, para onde veio depois de fazer contato com uma prima cuja família já está na terceira geração brasileira. Um de seus amigos fazia mestrado em História na USP, e a convite dele conheceu a Universidade. Mais tarde entrou também no mestrado na área de Cultura Árabe da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

Em seu projeto de dissertação, com conclusão prevista para o início do ano que vem, traduziu uma peça árabe para o inglês e o português. “A idéia é apresentar um novo olhar sobre o Otelo, de Shakespeare, por meio da peça Desdêmona, texto de 1989 de Yousif El-Saigh”, explica. Na peça, as personagens originais aparecem como se tivessem saído do livro de Shakespeare para entrar no nosso tempo. Elas estão sendo investigados por um detetive do século 20, e o encontro de seres de duas épocas diferentes cria um choque para os que vêm do passado. “É interessante estar no Brasil e fazer um trabalho em português sobre uma peça iraquiana baseada em Otelo.”

Em seus primeiros tempos de Brasil, o professor de inglês acostumou-se a responder a todo tipo de curiosidade sobre seu país. “A imagem que se tem do Oriente Médio é aquela dos noticiários de televisão: explosões, gente morta, ambulâncias passando, e acabou”, diz. Da mesma forma, do Brasil sabia apenas sobre café, futebol e carnaval, embora tenha sido proprietário de um carro fabricado aqui. “Eu não tinha idéia da indústria e da infra-estrutura enormes que existem no Brasil. Às vezes mostro para as pessoas algumas fotos de belas paisagens e elas dizem: mas isso é o Iraque? Sim, lá não temos mar, mas temos montanhas e muitas coisas bonitas”, compara.

A sociedade, é claro, tem suas particularidades. “Você não espera que um país oriental seja como o Brasil ou outro país ocidental. Mas você tem sua vida, trabalha, anda na rua com roupa como as que estamos usando agora”, comenta, lembrando que todos os países muçulmanos têm a lei conectada à Sharia, a lei religiosa muçulmana. “Morei na Líbia e achei que era um país um pouco mais reservado, mais fechado, até que me acostumei com a mentalidade, e é um outro país árabe, mas pode-se viver normalmente.”

Khalid é católico, que no Iraque é uma minoria religiosa – no tempo em que vivia lá, eram cerca de 3% da população. “As pessoas me perguntam: existem cristãos lá? Eu respondo: o cristianismo começou lá, depois se espalhou. Os cristãos moram junto com os xiitas, os sunitas, os muçulmanos e outros grupos. Hoje as pessoas querem empurrar o assunto para o lado religioso, mas o lado que mais pesa é mesmo o político”, diz.

De sua experiência de uma década no Brasil, diz que o povo é muito hospitaleiro e que ninguém se sente realmente estrangeiro aqui. “Para mim, o mais interessante do Brasil é a paixão pela vida. No Ocidente, na Europa, as pessoas estão mais preocupadas com a grande tecnologia, o progresso, e o lado humano fica meio afastado. No Oriente em geral se sofre mais com o lado emocional das coisas, e os brasileiros conseguem levar as coisas de forma mais leve e com essa paixão”, acredita.

O piloto – Em relação ao atual conflito no Oriente Médio, Khalid é da opinião de que, “se Israel tivesse algum tipo de problema com o Líbano ou com o Hezbollah, poderia resolver isso de forma mais civilizada”. Para ele, “a população libanesa acabou pagando um preço muito caro e não se resolveu nada. Ao contrário, você vai incentivar esse tipo de comportamento”, diz. É uma opinião que reforça a experiência pessoal de que “o efeito principal da guerra não é o que acontece no momento, mas sim o que acontece depois”. Assim, é fundamental se preocupar com o que as novas gerações estão aprendendo hoje. “O maior perigo é, em vez de criar uma nova geração que acredita em paz e negociação e conviver em tolerância com os outros, você criar radicais nos dois lados”, acredita.

Certa vez Khalid estava com amigos tomando cerveja e descobriu que no grupo havia um ex-piloto americano que tinha participado da Guerra do Golfo. “Eu perguntei: você já pensou que poderia ter me matado sem sequer me conhecer? Você acha que eu sou uma pessoa que merecesse ser morta assim?”, conta. O americano parou e respondeu: você já foi soldado e sabe do que estou falando. Como soldado, você não faz o que quer, mas recebe ordens. “Temos que incentivar a idéia de paz, não a guerra. Não podemos olhar para o outro só como inimigo, em algum momento é preciso mudar o jogo”, diz Khalid. “Os próprios governos e lideranças políticas que controlam tudo precisam investir mais em educação e tomar cuidado com a propaganda que transmitem.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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