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créditos: cecília bastos/ Jornal da USP
A cidade-exposição – Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914, de Heloisa Barbuy, Editora da USP (Edusp), 304 páginas, R$ 92,00. O lançamento será no dia 29 de agosto, terça-feira, a partir das 18h30, na Livraria Cultura (avenida Paulista, 2.073).

 

créditos: cecília bastos/ Jornal da USP

Imagine a rua Direita. Não a de hoje, repleta de lojas, camelôs, de gente apressada, de cartazes escondendo a fachada e poluindo a paisagem. Tente voltar no tempo. 1862. Ao fundo, no Largo da Sé, está o sobrado onde Anatole Louis Garraux mantinha uma livraria e uma bela loja com artigos finos e variados, importados da França.

Anos depois, em 1880, vê-se a rua da Imperatriz (hoje a 15 de Novembro, povoada por instituições financeiras). Nessa rua, a Casa Garraux abriu seu segundo endereço. O edifício ainda existe, sendo ocupado por um restaurante. Outro edifício que continua lembrando a São Paulo com todo o brio arquitetônico é o do Brasilianische Bankfür Deuschland, conhecido como Banco Alemão, que foi construído há 106 anos.

São essas e outras imagens que são mostradas na exposição “Cidade-comércio”, no Museu Paulista, e no livro A cidade-exposição – Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914, que a Editora da USP lançará no dia 29. Sob a curadoria e autoria de Heloisa Barbuy, a mostra e o livro convidam o paulistano a percorrer as principais ruas que desenham o centro comercial de São Paulo. “Este trabalho analisa o microterritório formado pelas três principais ruas comerciais na passagem do século 19 para o 20, ou seja, as ruas 15 de Novembro, Direita e São Bento, que compunham o chamado Triângulo”, explica Heloisa. “A nossa proposta não é contar a história da cidade. Queremos proporcionar a compreensão do desenvolvimento da cidade, refletido, por exemplo, na introdução gradual de uma estética cosmopolita, tanto na arquitetura dos edifícios quanto na exibição dos produtos ou cartazes publicitários.”

Na avaliação do historiador e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Benedito Lima de Toledo, que assina o prefácio, o visitante/leitor vai poder apreciar a cidade como lugar de convívio, de troca de informações, de animação, de residências, de comércio elegante e popular. “É a cidade de atualização, de encontros e com os edifícios religiosos destacados na paisagem. Em suma, essas são as características de uma pólis, de um lugar de urbanidade, de política e civilidade.”

créditos: cecília bastos/ Jornal da USP

Negligência com o passado – “O brasileiro moderno não gosta de se lembrar desses esforços dos antepassados. Estima que sua civilização atual, as ferrovias, as grandes cidades de aspecto londrino, parisiense ou berlinense, a eletricidade profusa, os incontáveis bondes, os hospitais-modelo, os teatros monumentais, as universidades gigantes, as escolas exemplares, as inigualáveis instalações higiênicas e policiais merecem exclusivamente admiração.” Essa crítica é de 1914 e foi feita pelo escritor francês Paul Adam (1862-1920), que escreveu Les visages du Brésil. “O prodigioso esforço efetivado no tempo colonial durante três a quatro séculos, considera-o nada perto daquele realizado a partir de 1880 e, sobretudo, de 1900. A glória do paulista é ser avançado. Ele despreza os países atrasados, esses que somam menos trilhos, menos estações, menos mobiliário vienense em madeira recurvada, menos eletricidade nas luminárias das lojas, mais casas antigas cor-de-rosa, azuis, marrons e brancas com arcadas, mais cadeirões em jacarandá maciço e entalhado, mais igrejas azuis e brancas de dois sinos e com amplos pórticos em estilo jesuíta.”

créditos: cecília bastos/ Jornal da USP

A crítica de Adam continua sendo muito atual. “A negligência dos brasileiros com seu passado, com suas tradições é singular. Ninguém sabe a data inicial das velhas igrejas nem os nomes dos primeiros arquitetos. Certamente esses documentos existem; mas eles não se lançam aos arquivos. As pessoas mais instruídas, e que o espantarão por seu saber de filósofos, letrados ou matemáticos, permanecem mudas diante dessas questões rudimentares. Inexoravelmente, os paulistas demoliram seus monumentos de outrora, tanto temem, mais que tudo, parecer atrasados.”

Adam ficaria impressionado se visse, algumas décadas depois, a demolição dos casarões da avenida Paulista e de outros pontos da cidade. Também ficaria horrorizado ao observar, nos dias de hoje, as estátuas feitas por grandes mestres sendo destruídas. Há bustos inteiros sendo roubados e derretidos. São essas reflexões que o livro de Heloisa Barbuy propicia.

“Quando eu era uma jovem advogada, para quem a verdadeira Sé, o marco zero, era e, confesso, ainda é a ancestral Academia de Direito do Largo São Francisco, e andava pela cidade sentindo-me envolta pelo ambiente histórico e urbano das velhas ruas, entrei, como de hábito, na Livraria Saraiva, que então existia na rua José Bonifácio, e bisbilhotando por lá encontrei dois livros que me encantaram e me encantam sempre”, conta Heloisa. “Um deles era História e tradições da cidade de São Paulo, de Ernani Silva Bruno, e o outro, São Paulo – três cidades em um século,de Benedito Lima de Toledo.”

Foram essas edições que definiram a pesquisa de Heloisa. No Museu Paulista, o conhecido Museu do Ipiranga, ela vem se dedicando a resgatar não só a história da cidade como o comportamento e o cotidiano dos paulistanos. “Através desta mostra e deste livro, meu objetivo é contribuir para a compreensão de processos de desenvolvimento e uso da cidade de São Paulo na passagem do século 19 para o 20, tendo como eixo as casas de comércio da área central. É um trabalho que se insere no campo da história urbana.”

créditos: cecília bastos/ Jornal da USP

Novas formas de sociabilidade – Heloisa explica que no início da década de 1920 – tempo de nacionalismos entre intelectuais brasileiros – se buscava, em São Paulo, uma identidade nas raízes tradicionais da cultura local. “Isso decorria, talvez, do rodamoinho de novos hábitos e mentalidades impressas à vida cotidiana pela presença dos imigrantes e pelo processo de globalização capitalista.”

A historiadora faz um levantamento cuidadoso dos hotéis que sediaram a primeira geração de restaurantes da cidade. “Em 1854, o Hotel Paulistano, de Adolpho Dusser, anunciava a contratação de um cozinheiro francês e seus quitutes a preço fixo.” Em 1857, ano em que foi publicado o primeiro almanaque comercial da cidade, já havia cinco hotéis: o Recreio Paulistano, na rua da Imperatriz, o Paulistano, na rua de São Bento, o Universal, no Largo do Colégio, o Comércio, também no Largo do Colégio, e o da Providência, na rua do Comércio.

Heloisa lembra também a construção do Grande Hotel, num lote que ia da rua de São Bento até a de São José (atual Líbero Badaró). Foi o primeiro edifício construído expressamente para hotel em São Paulo e inaugurava um novo padrão de hotelaria na cidade. “Com seus candelabros a gás no vestíbulo de entrada e escadaria de mármore branco, deixava para trás os velhos casarões adaptados, que agora pareciam desconfortáveis e caipiras demais para os anseios da modernidade cosmopolita.”

Nos anos que se seguiram, outros hotéis de categoria foram se instalando. “Além das funções básicas de hospedagem e refeições, os hotéis se tornaram, então, importante lugar para a realização da vida social, baseada num maior refinamento das instalações e das restaurações gastronômicas.” A historiadora lembra que hóspedes de fama internacional ilustraram os tempos de glória do Grande Hotel, na década de 1880, como o príncipe Henrique, da Prússia, a princesa Isabel e a atriz Sarah Bernhardt.

Na primeira década do século 20, outros hotéis foram surgindo, tanto no centro como fora dele. “Inumeráveis pensões e hotéis grandes, médios e pequenos vinham se somar aos antigos. A cidade crescia, pessoas em trânsito chegavam e partiam todos os dias. Havia também certo hábito de residir em hotéis. Enquanto o Grande Hotel e o Sportsman se mantinham entre os melhores e o Grande Hotel D’Oeste, entre os bons, continuavam a surgir novos estabelecimentos hoteleiros no Triângulo. Mas era em torno da Estação da Luz que se multiplicavam em maior número. A modernidade era avaliada na conjugação de dois de seus principais elementos: as estações de trem e os hotéis.”

créditos: cecília bastos/ Jornal da USP

A cidade da gastronomia – A São Paulo da gastronomia, como comprova o livro A cidade-exposição, começou a ser delineada em meados do século 19. Mas foi somente na década de 1870 que os restaurantes passaram a se integrar ao cotidiano da cidade, sendo implantados por imigrantes do norte e do leste europeus, que aqui eram genericamente denominados de “alemães”.

Um dos points da boemia paulistana daquela época ficava na rua Direita: era o Zur Stadt Coblenz, em homenagem à cidade alemã conhecida por suas tavernas e vinhos espumantes e secos. Pertencia ao alemão Jacob Friedrich, que transformou completamente a antiga confeitaria de Gaspard Leonard. Também na rua do Ouvidor, outro alemão, Henrique Schonburg, mantinha a cervejaria literária O Corvo.

Nessa pesquisa, Heloisa lembra que o mais lendário dos estabelecimentos foi o do húngaro de nome germânico José Fischer, com sua casa de banhos Sereia Paulista, que, de pelo menos 1861 até 1890, funcionou com restaurante anexo e janelas para o Largo de São Bento, mais precisamente para a igreja. Observa: “Um indivíduo como Fischer, que viera de alguma cidade do império austro-húngaro para o Brasil, na década de 1860 ou pouco antes, trouxera consigo um pouco daquele universo e acabara por se notabilizar em São Paulo exatamente por introduzir aqui novos hábitos, como os banhos fora de casa e o restaurante onde se podia comer um bife a cavalo amaciado com leite de folhas de mamoeiro ou apreciar a cozinha fria, tudo regado a vinho ou cerveja. Ainda que só para homens, representava uma microderivação daquela nova dimensão da vida corporal e social que se instalara na Europa.”

Nos novos padrões urbanísticos que se implantavam, as vistas panorâmicas eram cada vez mais valorizadas e comercializadas. “Conjugavam-se com os novos hábitos sociais da freqüentação cada vez mais intensa de teatros e outras casas de espetáculos e de cafés e restaurantes. Faziam parte da nova conformação visual da cidade, que criava o cenário da urbe cosmopolita”, observa Heloisa. “Assim, fora do Triângulo, na cidade nova, isto é, para além do Anhangabaú, multiplicavam-se os terraços e salas com vistas panorâmicas. Era a cidade em exposição, fazendo pano de fundo para a vida moderna e proporcionando a sensação de amplitude, de liberdade e, talvez, de futuro.”

A exposição “Cidade-comércio” está em cartaz no Museu Paulista da USP (Parque da Independência, sem número, Ipiranga, São Paulo), de terça-feira a domingo, das 9 às 17 horas. Ingresso: R$ 2,00. Grátis no terceiro domingo de cada mês. Menores de seis anos e maiores de 60 anos não pagam. Mais informações pelo telefone (11) 6165-8026.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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