Imagine
a rua Direita. Não a de hoje, repleta de lojas, camelôs,
de gente apressada, de cartazes escondendo a fachada e poluindo
a paisagem. Tente voltar no tempo. 1862. Ao fundo, no Largo da
Sé, está o sobrado onde Anatole Louis Garraux mantinha
uma livraria e uma bela loja com artigos finos e variados, importados
da França.
Anos depois, em 1880, vê-se a rua da Imperatriz (hoje a 15
de Novembro, povoada por instituições financeiras).
Nessa rua, a Casa Garraux abriu seu segundo endereço. O
edifício ainda existe, sendo ocupado por um restaurante.
Outro edifício que continua lembrando a São Paulo
com todo o brio arquitetônico é o do Brasilianische
Bankfür Deuschland, conhecido como Banco Alemão, que
foi construído há 106 anos.
São essas e outras imagens que são
mostradas na exposição “Cidade-comércio”,
no Museu Paulista, e no livro A cidade-exposição – Comércio
e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914, que a Editora
da USP lançará no dia 29. Sob a curadoria e autoria
de Heloisa Barbuy, a mostra e o livro convidam o paulistano
a percorrer as principais ruas que desenham o centro comercial
de São
Paulo. “Este trabalho analisa o microterritório
formado pelas três principais ruas comerciais na passagem
do século
19 para o 20, ou seja, as ruas 15 de Novembro, Direita e São
Bento, que compunham o chamado Triângulo”, explica
Heloisa. “A nossa proposta não é contar
a história
da cidade. Queremos proporcionar a compreensão do desenvolvimento
da cidade, refletido, por exemplo, na introdução
gradual de uma estética cosmopolita, tanto na arquitetura
dos edifícios quanto na exibição dos produtos
ou cartazes publicitários.”
Na avaliação do historiador e professor da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Benedito Lima de Toledo,
que assina o prefácio, o visitante/leitor vai poder
apreciar a cidade como lugar de convívio, de troca de
informações,
de animação, de residências, de comércio
elegante e popular. “É a cidade de atualização,
de encontros e com os edifícios religiosos destacados
na paisagem. Em suma, essas são as características
de uma pólis, de um lugar de urbanidade, de política
e civilidade.”
Negligência
com o passado – “O brasileiro moderno
não gosta de se lembrar desses esforços dos antepassados.
Estima que sua civilização atual, as ferrovias, as
grandes cidades de aspecto londrino, parisiense ou berlinense,
a eletricidade profusa, os incontáveis bondes, os hospitais-modelo,
os teatros monumentais, as universidades gigantes, as escolas exemplares,
as inigualáveis instalações higiênicas
e policiais merecem exclusivamente admiração.” Essa
crítica é de 1914 e foi feita pelo escritor francês
Paul Adam (1862-1920), que escreveu Les visages du Brésil. “O
prodigioso esforço efetivado no tempo colonial durante três
a quatro séculos, considera-o nada perto daquele realizado
a partir de 1880 e, sobretudo, de 1900. A glória do paulista é ser
avançado. Ele despreza os países atrasados, esses
que somam menos trilhos, menos estações, menos mobiliário
vienense em madeira recurvada, menos eletricidade nas luminárias
das lojas, mais casas antigas cor-de-rosa, azuis, marrons e brancas
com arcadas, mais cadeirões em jacarandá maciço
e entalhado, mais igrejas azuis e brancas de dois sinos e com amplos
pórticos em estilo jesuíta.”
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A crítica de Adam continua sendo muito
atual. “A negligência
dos brasileiros com seu passado, com suas tradições é singular.
Ninguém sabe a data inicial das velhas igrejas nem os nomes
dos primeiros arquitetos. Certamente esses documentos existem;
mas eles não se lançam aos arquivos. As pessoas mais
instruídas, e que o espantarão por seu saber de filósofos,
letrados ou matemáticos, permanecem mudas diante dessas
questões rudimentares. Inexoravelmente, os paulistas demoliram
seus monumentos de outrora, tanto temem, mais que tudo, parecer
atrasados.” Adam ficaria impressionado se visse, algumas décadas depois,
a demolição dos casarões da avenida Paulista
e de outros pontos da cidade. Também ficaria horrorizado
ao observar, nos dias de hoje, as estátuas feitas por grandes
mestres sendo destruídas. Há bustos inteiros sendo
roubados e derretidos. São essas reflexões que o
livro de Heloisa Barbuy propicia.
“Quando eu era uma jovem advogada, para quem
a verdadeira Sé,
o marco zero, era e, confesso, ainda é a ancestral Academia
de Direito do Largo São Francisco, e andava pela cidade
sentindo-me envolta pelo ambiente histórico e urbano das
velhas ruas, entrei, como de hábito, na Livraria Saraiva,
que então
existia na rua José Bonifácio, e bisbilhotando por
lá encontrei dois livros que me encantaram e me encantam
sempre”,
conta Heloisa. “Um deles era História e tradições
da cidade de São Paulo, de Ernani Silva Bruno, e o outro,
São Paulo – três cidades em um século,de
Benedito Lima de Toledo.”
Foram essas edições que definiram a pesquisa de Heloisa.
No Museu Paulista, o conhecido Museu do Ipiranga, ela vem se
dedicando a resgatar não só a história da
cidade como o comportamento e o cotidiano dos paulistanos. “Através
desta mostra e deste livro, meu objetivo é contribuir
para a compreensão de processos de desenvolvimento e uso
da cidade de São Paulo na passagem do século 19
para o 20, tendo como eixo as casas de comércio da área
central. É um
trabalho que se insere no campo da história urbana.”
Novas
formas de sociabilidade – Heloisa explica
que no início
da década de 1920 – tempo de nacionalismos entre intelectuais
brasileiros – se buscava, em São Paulo, uma identidade
nas raízes tradicionais da cultura local. “Isso decorria,
talvez, do rodamoinho de novos hábitos e mentalidades impressas à vida
cotidiana pela presença dos imigrantes e pelo processo de
globalização capitalista.”
A historiadora faz um levantamento cuidadoso dos
hotéis
que sediaram a primeira geração de restaurantes da
cidade. “Em 1854, o Hotel Paulistano, de Adolpho Dusser,
anunciava a contratação de um cozinheiro francês
e seus quitutes a preço fixo.” Em 1857, ano em que
foi publicado o primeiro almanaque comercial da cidade, já havia
cinco hotéis: o Recreio Paulistano, na rua da Imperatriz,
o Paulistano, na rua de São Bento, o Universal, no Largo
do Colégio, o Comércio, também no Largo do
Colégio, e o da Providência, na rua do Comércio.
Heloisa lembra também a construção
do Grande Hotel, num lote que ia da rua de São Bento até a
de São José (atual Líbero Badaró).
Foi o primeiro edifício construído expressamente
para hotel em São Paulo e inaugurava um novo padrão
de hotelaria na cidade. “Com seus candelabros a gás
no vestíbulo de entrada e escadaria de mármore branco,
deixava para trás os velhos casarões adaptados, que
agora pareciam desconfortáveis e caipiras demais para os
anseios da modernidade cosmopolita.”
Nos anos que se seguiram, outros hotéis
de categoria foram se instalando. “Além das funções
básicas
de hospedagem e refeições, os hotéis se tornaram,
então, importante lugar para a realização
da vida social, baseada num maior refinamento das instalações
e das restaurações gastronômicas.” A
historiadora lembra que hóspedes de fama internacional ilustraram
os tempos de glória do Grande Hotel, na década de
1880, como o príncipe Henrique, da Prússia, a princesa
Isabel e a atriz Sarah Bernhardt.
Na primeira década do século 20, outros hotéis
foram surgindo, tanto no centro como fora dele. “Inumeráveis
pensões e hotéis grandes, médios e pequenos
vinham se somar aos antigos. A cidade crescia, pessoas em trânsito
chegavam e partiam todos os dias. Havia também certo hábito
de residir em hotéis. Enquanto o Grande Hotel e o Sportsman
se mantinham entre os melhores e o Grande Hotel D’Oeste,
entre os bons, continuavam a surgir novos estabelecimentos hoteleiros
no Triângulo. Mas era em torno da Estação da
Luz que se multiplicavam em maior número. A modernidade
era avaliada na conjugação de dois de seus principais
elementos: as estações de trem e os hotéis.”
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A
cidade da gastronomia – A São Paulo da
gastronomia, como comprova o livro A cidade-exposição,
começou
a ser delineada em meados do século 19. Mas foi somente
na década de 1870 que os restaurantes passaram a se integrar
ao cotidiano da cidade, sendo implantados por imigrantes do norte
e do leste europeus, que aqui eram genericamente denominados de “alemães”.
Um dos points da boemia paulistana daquela época ficava
na rua Direita: era o Zur Stadt Coblenz, em homenagem à cidade
alemã conhecida por suas tavernas e vinhos espumantes e
secos. Pertencia ao alemão Jacob Friedrich, que transformou
completamente a antiga confeitaria de Gaspard Leonard. Também
na rua do Ouvidor, outro alemão, Henrique Schonburg, mantinha
a cervejaria literária O Corvo. Nessa pesquisa, Heloisa lembra que o mais lendário
dos estabelecimentos foi o do húngaro de nome germânico
José Fischer,
com sua casa de banhos Sereia Paulista, que, de pelo menos 1861
até 1890, funcionou com restaurante anexo e janelas para
o Largo de São Bento, mais precisamente para a igreja. Observa: “Um
indivíduo como Fischer, que viera de alguma cidade do império
austro-húngaro para o Brasil, na década de 1860 ou
pouco antes, trouxera consigo um pouco daquele universo e acabara
por se notabilizar em São Paulo exatamente por introduzir
aqui novos hábitos, como os banhos fora de casa e o restaurante
onde se podia comer um bife a cavalo amaciado com leite de folhas
de mamoeiro ou apreciar a cozinha fria, tudo regado a vinho ou
cerveja. Ainda que só para homens, representava uma microderivação
daquela nova dimensão da vida corporal e social que se instalara
na Europa.”
Nos novos padrões urbanísticos que se implantavam,
as vistas panorâmicas eram cada vez mais valorizadas e comercializadas. “Conjugavam-se
com os novos hábitos sociais da freqüentação
cada vez mais intensa de teatros e outras casas de espetáculos
e de cafés e restaurantes. Faziam parte da nova conformação
visual da cidade, que criava o cenário da urbe cosmopolita”,
observa Heloisa. “Assim, fora do Triângulo, na cidade
nova, isto é, para além do Anhangabaú, multiplicavam-se
os terraços e salas com vistas panorâmicas. Era a
cidade em exposição, fazendo pano de fundo para a
vida moderna e proporcionando a sensação de amplitude,
de liberdade e, talvez, de futuro.”
A exposição “Cidade-comércio” está em
cartaz no Museu Paulista da USP (Parque da Independência,
sem número, Ipiranga, São Paulo), de terça-feira
a domingo, das 9 às 17 horas. Ingresso: R$ 2,00. Grátis
no terceiro domingo de cada mês. Menores de seis anos e maiores
de 60 anos não pagam. Mais informações pelo
telefone (11) 6165-8026. |