Os
libaneses e israelenses talvez não saibam, mas a pacata cidade
fluminense de Paraty foi palco, nos últimos dias, de uma
grande caixa de ressonância do conflito no Oriente Médio.
O embate aconteceu durante a quarta edição da Festa
Literária Internacional de Paraty, a Flip, que terminou no
dia 13, e em alguns momentos esmaeceu o brilho da literatura –
que deveria ter sido a grande protagonista do evento. O paquistanês
Tariq Ali, autor de Um sultão em Palermo, obra lançada
pela Record como parte de um ciclo de romances sobre a cultura islâmica,
semeou o debate com sua palestra marcadamente política. O
autor aproveitou a conferência para divulgar o manifesto contra
a guerra no Oriente Médio que estava correndo entre os autores
convidados. Ensaísta, romancista, editor da revista inglesa
New Left Review, Ali defendeu a relação entre política
e literatura e alertou para o predomínio de apenas três
línguas no mundo atual: inglês, espanhol e chinês.
“A questão do idioma vai se tornar cada vez mais política”,
afirmou. Segundo ele, tem diminuído o número de obras
estrangeiras traduzidas para a língua inglesa, o que é
nocivo para a diversidade mundial. “Quem decide o que é
traduzido?”, indagou.
O debate ganhou força com o jornalista
Christopher Hitchens, inglês radicado nos Estados Unidos,
considerado o representante moderno da crítica cultural polêmica.
Autor de Amor, pobreza e guerra, lançado na Flip pela Ediouro,
Hitchens deveria discutir a profissão de repórter
ao lado de Fernando Gabeira, que já trilhou caminhos na literatura
(O que é isso, companheiro?) e no jornalismo. No entanto,
o Oriente Médio invadiu a mesa, que teve início com
uma declaração de Hitchens informando por que não
havia assinado o manifesto: “O documento não menciona
diretamente o Hizbollah e isso é uma hipocrisia”, afirmou.
“Esse grupo armado é um braço militar do regime
do Irã, que ofereceu dinheiro para quem assassinasse o escritor
indiano Salman Rushdie (acusado de blasfêmia contra a religião
islâmica)”. O que se seguiu foi um intenso diálogo,
às vezes elegante, outras nem tanto, sobre terrorismo e a
situação no Oriente Médio, que incluiu a guerra
no Iraque – defendida por Hitchens e criticada por Gabeira.
E assim, a arte da reportagem, que deveria ter sido o tema da sessão,
foi suprimida pelos ecos da guerra.
O drama dos refugiados palestinos se refletiu
na mesa sobre a poesia e o exílio, protagonizada pelo brasileiro
Ferreira Gullar e o palestino Mourid Barghouti. O autor de Eu vi
Ramallah (Casa da Palavra), que viveu longe de sua terra natal por
30 anos, afirmou não admirar a literatura de denúncia
e buscar a precisão, e não o exagero, quando escreve.
“Penso ser mais convincente sendo preciso, não é
necessário gritar para dizer o que quero”, completou.
Para ele, o exílio é muito cruel, mas mais cruel ainda
é a injustiça. “A mídia não deixa
que vocês vejam os palestinos como médicos ou engenheiros,
mas apenas como agressores ou vítimas”, lembrou. “Essa
invisibilidade é a injustiça mais cruel.”
Já o poeta Ferreira Gullar comoveu
a platéia ao relatar as circunstâncias em que escreveu
o seu Poema sujo. “Foi no exílio em Buenos Aires, em
1976. Meu passaporte estava vencido e quando fui renová-lo
na Embaixada Brasileira eles o cancelaram e fiquei sem poder deixar
o país.” A obra, escrita sob forte emoção,
é inspirada na sua infância em São Luís
do Maranhão e expressa o drama vivido por Gullar. Mais tarde,
o poema foi trazido para o Brasil por Vinicius de Moraes, em fitas
cassete, e publicado pela Editora Civilização Brasileira.
“A poesia tem pouco valor de mercado, mas ajudou a me trazer
de volta para o Brasil”, afirmou. Para o autor, são
os leitores que determinam a posteridade de uma obra: “As
pessoas carregam consigo as obras de que gostam. Se isso acontece,
as obras vão sobreviver”.
Jornalismo – A jornalista
norte-americana Lilian Ross, considerada um ícone da imprensa
de seu país, traduz a felicidade de quem faz o que gosta.
Aos 79 anos, caminhando devagar, mas com firmeza, essa simpática
senhora reiterou que ainda mantém o mesmo interesse em escrever
que tinha 50 anos atrás. Seus perfis de escritores como Ernest
Hemingway, publicados na revista The New Yorker, onde trabalha desde
1945, revigoraram o jornalismo literário. Suas reportagens
lhe renderam livros como Filme, no qual conta em forma de romance
os bastidores das filmagens de A glória de um covarde, dirigido
em 1951 por John Huston e relançado na Flip pela Companhia
das Letras. Conhecida por não usar o gravador em seu trabalho,
Lilian mostrou ter uma técnica original no dia-a-dia: “Prefiro
sair para fazer uma reportagem e depois decidir sobre o que quero
escrever”, afirmou. “Tenho me concentrado naquilo que
tem apelo para mim. Não me interesso em emitir opiniões,
o que desejo é escrever.”
Dona de um estilo que inspirou vários
seguidores, ela é implacável quando se trata de opinar
sobre o chamado novo jornalismo: “Acho que há muita
confusão em torno dessa expressão. O que existe é
bom e mau texto”, afirma, convicta. Também critica
os escritores que buscam o título de inventores ou pioneiros,
como Truman Capote, que disputava a condição de “pioneiro”
do “romance de não-ficção”. “Em
geral, trata-se de talentos medíocres à procura de
autopromoção e dinheiro”, alerta.
Lilian dividiu o debate sobre a arte da reportagem com outro expoente
do jornalismo norte-americano: Philip Gourevitch. Aos 45 anos, o
autor de Gostaríamos de informá-lo de que amanhã
seremos mortos com nossas famílias, sobre o massacre de Ruanda,
falou acerca do seu processo de trabalho: “Gosto de ouvir
as pessoas, seus dramas pessoais, e combinar esses depoimentos ao
contexto político”, explicou. “Quando saio para
fazer uma matéria, parto ignorante, pois acho que a ignorância
é saudável para seguir adiante.” A obra, publicada
pela Companhia das Letras, é resultado de várias viagens
para cobrir o genocídio em Ruanda, em 1994, quando o jornalista
trabalhava na The New Yorker. Na opinião dele, o incentivo
às viagens destinadas à cobertura jornalística
de guerras em países distantes, tanto durante como depois
dos conflitos, confirma que aquela publicação nova-iorquina
ainda é um dos pouquíssimos veículos de imprensa
mundiais a cultivar a grande reportagem.
Foi ao longo de dez anos de trabalho na The
New Yorker que Gourevitch lapidou seu texto, antes de se tornar
editor da The Paris Review, revista famosa por suas entrevistas
históricas com escritores. “Não sei o que significa
escrever bem. Simplesmente sinto quando um texto é bom ou
ruim”, argumentou. “Com certeza, Charles Dickens e Daniel
Defoe foram mestres da língua inglesa.” Para ele, a
The New Yorker expressa a visão do establishment do liberalismo,
e o fato de ter um ponto de vista contribuiu para que seja uma boa
revista. Gourevitch acredita que o jornalista não deve ser
neutro, mas objetivo e livre de preconceitos, e opinar sobre os
fatos dos quais escreve – fonte de sua credibilidade.
Prêmio Nobel –
A norte-americana Toni Morrison, uma distinta senhora negra de 75
anos, Prêmio Nobel de Literatura de 1993, foi a grande estrela
da Flip. Aguardada ansiosamente pelo público, leu um trecho
de seu romance Amor e cativou a todos. A obra, publicada no Brasil
pela Companhia das Letras, tem como protagonistas duas mulheres
que crescem juntas e depois se separam, e traz como pano de fundo
os conflitos de classes nos Estados Unidos quando começavam
as lutas pelos direitos civis, em meados do século 20. “Alguns
aspectos da integração racial eram incômodos
para as pessoas da classe social mais baixa”, afirmou. “As
escolas para negros tinham goteiras. Mesmo assim me senti confusa
quando, mais tarde, pude me sentar ao lado de uma menina branca,
na mesma classe. Não achava, sinceramente, que aquilo fosse
um privilégio em si.”
Ao lado da literatura, Toni cultiva uma outra grande paixão:
o jazz. Nascida numa família em que “as pessoas falavam
cantarolando”, nas suas próprias palavras, afirmou
nunca ter conseguido reproduzir uma nota musical, mas já
dedicou uma obra a esse estilo: Jazz. Publicado nos Estados Unidos
em 1992, o livro traz à tona a realidade do bairro nova-iorquino
do Harlem, na década de 1920. A escritora, no entanto, provou
que sabe avaliar o significado da música na obra literária:
“Acho que a linguagem escrita também pode representar
o ritmo que existe na composição musical”, sintetizou.
Literatura brasileira –
Com seu jeito mineiro de ser, a poetisa Adélia Prado encantou
o auditório lotado que se reuniu para ouvi-la. Apesar de
admitir seu nervosismo perante o público, Adélia foi
se acalmando com a leitura de trechos de seus poemas e logo ficou
firme como uma rocha para falar de temas tão espinhosos como
a “miserabilidade da condição humana”,
como ela mesma definiu. “Já nascemos órfãos
e depois temos de nos confrontar com a doença, a velhice
e a morte. O fato de sermos conscientes da nossa miserabilidade
nos torna ainda mais miseráveis”, afirmou. Para ela,
o mundo está doente da ausência de significação
e esse fenômeno é tão profundo que fez ruir
nossos valores. “Perdemos as referências, até
a liberdade implica o compromisso com alguma coisa. Se já
não se tem compromisso com nada, então tudo perde
sentido”, declarou. A autora exaltou a importância da
arte, afirmando ser ela indestrutível e dotada de significação.
“A verdadeira obra de arte não tem prazo de validade.
É por isso que lemos hoje os poetas da Antigüidade com
o mesmo fervor e séculos atrás”, resumiu. “A
arte é o nosso pão espiritual.”
A literatura brasileira também esteve
representada por nomes como Ignácio de Loyola Brandão,
que lançou pela Editora Jaboticaba A altura e a largura do
nada. No romance, o consagrado escritor trouxe à tona as
memórias de sua infância passada em sua cidade natal,
a paulista Araraquara, nas décadas de 1940 e 1950. Loyola
compartilhou a mesa “As Matérias do Romance”
com o paranaense Miguel Sanches Neto, autor de Um amor anarquista,
sobre a vida na Colônia Cecília, comunidade anarquista
fundada em 1890 no Paraná, e com Wilson Bueno. Também
natural do Paraná, este último é autor de Amar-te
a ti nem se com carícias, romance que tem como pano de fundo
o Rio de janeiro do século 19, cujo narrador faz parte da
elite monarquista e anti-abolicionista. “Um retrato cruel
do horror que foi aquela época no Brasil”, definiu.
O romance literário ainda esteve no
centro das atenções durante a mesa “Nas Fronteiras
da Narrativa”, que teve a participação de dois
autores considerados renovadores da narrativa contemporânea
em língua inglesa: o norte-americano Jonathan Safran Foer,
autor de Extremamente alto & incrivelmente perto, e a escocesa
Ali Smith. A autora de Por acaso e Hotel World afirmou só
ser possível trabalhar com a forma romance quando se tem
o domínio dela. “Se você conhece como funciona
a estrutura de um romance, então é possível
brincar com ele, usando a sua imaginação”, explicou.
Foer observou que não se deve falar
sempre de política ao se discutir sobre literatura, numa
alusão ao predomínio do debate político nesta
edição da Flip. Elogiou a Festa Literária de
Paraty e disse nunca ter visto um evento semelhante, em que as crianças
também têm o seu espaço e não são
relegadas a segundo plano. A opinião de Foer foi compartilhada
por Ali Smith, para quem o evento brasileiro é um diálogo
realmente internacional.
Entre vários outros escritores, a
Flip 2006 também recebeu o norte-americano Edmund Whyte,
conhecido autor de romances autobiográficos e de obras voltadas
para o público gay nos Estados Unidos, como Travels in gay
America. No rol dos autores de língua portuguesa, desponta
o angolano Ondjaki, que acaba de lançar no Brasil o romance
Bom dia camaradas. Eloqüente, o jovem escritor de Angola, de
29 anos, exaltou a língua portuguesa: “Ela é
maleável, aberta, é uma língua com quem podemos
dançar”.
A Flip 2006 homenageou o escritor brasileiro
Jorge Amado (1912-2001). A obra do autor de Capitães de areia
e de tantos outros romances foi debatida numa mesa organizada em
sua homenagem. “Amado foi homem de seu tempo e de seu país”,
sintetizou Eduardo de Assis Duarte, professor da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Os participantes do debate, especialistas
na obra do escritor baiano, foram unânimes quanto à
importância de Amadona revelação da verdadeira
Bahia aos brasileiros.
A quarta edição da Flip foi
acompanhada por um público de 12 mil pessoas. Trinta e sete
autores convidados participaram do evento, que teve o patrocínio
do Unibanco e da Tim. A realização ficou por conta
da organização não-governamental Casa Azul,
que trabalha pelo desenvolvimento sustentável de Paraty.
Além de ser um acontecimento literário sem igual no
Brasil, o grande mérito da Flip é a transformação
que ela está promovendo na cidade. Isso acontece graças
ao envolvimento da comunidade local e do Programa Educativo Cirandas
de Paraty, que promove rodas de leituras e iniciativas em torno
do livro junto às crianças locais. |