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créditos: Walter Craveiro
Adélia Prado
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Toni Morrison
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Ferreira Gular
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Tariq Ali
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Ignácio de Loyola Brandão
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Wilson Bueno
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Ondjaki

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Jonatan Safran Foer
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Christopher Hitchens
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Lilian Ross
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Philip Gourevitch
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José Miguel Wisnik
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Alberto da Costa e Silva
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Edmund White
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Mourid Barghout
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Miguel Sanches Neto

 

créditos: Francisco Emolo/ Jornal da USP

Os libaneses e israelenses talvez não saibam, mas a pacata cidade fluminense de Paraty foi palco, nos últimos dias, de uma grande caixa de ressonância do conflito no Oriente Médio. O embate aconteceu durante a quarta edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que terminou no dia 13, e em alguns momentos esmaeceu o brilho da literatura – que deveria ter sido a grande protagonista do evento. O paquistanês Tariq Ali, autor de Um sultão em Palermo, obra lançada pela Record como parte de um ciclo de romances sobre a cultura islâmica, semeou o debate com sua palestra marcadamente política. O autor aproveitou a conferência para divulgar o manifesto contra a guerra no Oriente Médio que estava correndo entre os autores convidados. Ensaísta, romancista, editor da revista inglesa New Left Review, Ali defendeu a relação entre política e literatura e alertou para o predomínio de apenas três línguas no mundo atual: inglês, espanhol e chinês. “A questão do idioma vai se tornar cada vez mais política”, afirmou. Segundo ele, tem diminuído o número de obras estrangeiras traduzidas para a língua inglesa, o que é nocivo para a diversidade mundial. “Quem decide o que é traduzido?”, indagou.

O debate ganhou força com o jornalista Christopher Hitchens, inglês radicado nos Estados Unidos, considerado o representante moderno da crítica cultural polêmica. Autor de Amor, pobreza e guerra, lançado na Flip pela Ediouro, Hitchens deveria discutir a profissão de repórter ao lado de Fernando Gabeira, que já trilhou caminhos na literatura (O que é isso, companheiro?) e no jornalismo. No entanto, o Oriente Médio invadiu a mesa, que teve início com uma declaração de Hitchens informando por que não havia assinado o manifesto: “O documento não menciona diretamente o Hizbollah e isso é uma hipocrisia”, afirmou. “Esse grupo armado é um braço militar do regime do Irã, que ofereceu dinheiro para quem assassinasse o escritor indiano Salman Rushdie (acusado de blasfêmia contra a religião islâmica)”. O que se seguiu foi um intenso diálogo, às vezes elegante, outras nem tanto, sobre terrorismo e a situação no Oriente Médio, que incluiu a guerra no Iraque – defendida por Hitchens e criticada por Gabeira. E assim, a arte da reportagem, que deveria ter sido o tema da sessão, foi suprimida pelos ecos da guerra.

O drama dos refugiados palestinos se refletiu na mesa sobre a poesia e o exílio, protagonizada pelo brasileiro Ferreira Gullar e o palestino Mourid Barghouti. O autor de Eu vi Ramallah (Casa da Palavra), que viveu longe de sua terra natal por 30 anos, afirmou não admirar a literatura de denúncia e buscar a precisão, e não o exagero, quando escreve. “Penso ser mais convincente sendo preciso, não é necessário gritar para dizer o que quero”, completou. Para ele, o exílio é muito cruel, mas mais cruel ainda é a injustiça. “A mídia não deixa que vocês vejam os palestinos como médicos ou engenheiros, mas apenas como agressores ou vítimas”, lembrou. “Essa invisibilidade é a injustiça mais cruel.”

Já o poeta Ferreira Gullar comoveu a platéia ao relatar as circunstâncias em que escreveu o seu Poema sujo. “Foi no exílio em Buenos Aires, em 1976. Meu passaporte estava vencido e quando fui renová-lo na Embaixada Brasileira eles o cancelaram e fiquei sem poder deixar o país.” A obra, escrita sob forte emoção, é inspirada na sua infância em São Luís do Maranhão e expressa o drama vivido por Gullar. Mais tarde, o poema foi trazido para o Brasil por Vinicius de Moraes, em fitas cassete, e publicado pela Editora Civilização Brasileira. “A poesia tem pouco valor de mercado, mas ajudou a me trazer de volta para o Brasil”, afirmou. Para o autor, são os leitores que determinam a posteridade de uma obra: “As pessoas carregam consigo as obras de que gostam. Se isso acontece, as obras vão sobreviver”.

Jornalismo – A jornalista norte-americana Lilian Ross, considerada um ícone da imprensa de seu país, traduz a felicidade de quem faz o que gosta. Aos 79 anos, caminhando devagar, mas com firmeza, essa simpática senhora reiterou que ainda mantém o mesmo interesse em escrever que tinha 50 anos atrás. Seus perfis de escritores como Ernest Hemingway, publicados na revista The New Yorker, onde trabalha desde 1945, revigoraram o jornalismo literário. Suas reportagens lhe renderam livros como Filme, no qual conta em forma de romance os bastidores das filmagens de A glória de um covarde, dirigido em 1951 por John Huston e relançado na Flip pela Companhia das Letras. Conhecida por não usar o gravador em seu trabalho, Lilian mostrou ter uma técnica original no dia-a-dia: “Prefiro sair para fazer uma reportagem e depois decidir sobre o que quero escrever”, afirmou. “Tenho me concentrado naquilo que tem apelo para mim. Não me interesso em emitir opiniões, o que desejo é escrever.”

Dona de um estilo que inspirou vários seguidores, ela é implacável quando se trata de opinar sobre o chamado novo jornalismo: “Acho que há muita confusão em torno dessa expressão. O que existe é bom e mau texto”, afirma, convicta. Também critica os escritores que buscam o título de inventores ou pioneiros, como Truman Capote, que disputava a condição de “pioneiro” do “romance de não-ficção”. “Em geral, trata-se de talentos medíocres à procura de autopromoção e dinheiro”, alerta.
Lilian dividiu o debate sobre a arte da reportagem com outro expoente do jornalismo norte-americano: Philip Gourevitch. Aos 45 anos, o autor de Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias, sobre o massacre de Ruanda, falou acerca do seu processo de trabalho: “Gosto de ouvir as pessoas, seus dramas pessoais, e combinar esses depoimentos ao contexto político”, explicou. “Quando saio para fazer uma matéria, parto ignorante, pois acho que a ignorância é saudável para seguir adiante.” A obra, publicada pela Companhia das Letras, é resultado de várias viagens para cobrir o genocídio em Ruanda, em 1994, quando o jornalista trabalhava na The New Yorker. Na opinião dele, o incentivo às viagens destinadas à cobertura jornalística de guerras em países distantes, tanto durante como depois dos conflitos, confirma que aquela publicação nova-iorquina ainda é um dos pouquíssimos veículos de imprensa mundiais a cultivar a grande reportagem.

Foi ao longo de dez anos de trabalho na The New Yorker que Gourevitch lapidou seu texto, antes de se tornar editor da The Paris Review, revista famosa por suas entrevistas históricas com escritores. “Não sei o que significa escrever bem. Simplesmente sinto quando um texto é bom ou ruim”, argumentou. “Com certeza, Charles Dickens e Daniel Defoe foram mestres da língua inglesa.” Para ele, a The New Yorker expressa a visão do establishment do liberalismo, e o fato de ter um ponto de vista contribuiu para que seja uma boa revista. Gourevitch acredita que o jornalista não deve ser neutro, mas objetivo e livre de preconceitos, e opinar sobre os fatos dos quais escreve – fonte de sua credibilidade.

Prêmio Nobel – A norte-americana Toni Morrison, uma distinta senhora negra de 75 anos, Prêmio Nobel de Literatura de 1993, foi a grande estrela da Flip. Aguardada ansiosamente pelo público, leu um trecho de seu romance Amor e cativou a todos. A obra, publicada no Brasil pela Companhia das Letras, tem como protagonistas duas mulheres que crescem juntas e depois se separam, e traz como pano de fundo os conflitos de classes nos Estados Unidos quando começavam as lutas pelos direitos civis, em meados do século 20. “Alguns aspectos da integração racial eram incômodos para as pessoas da classe social mais baixa”, afirmou. “As escolas para negros tinham goteiras. Mesmo assim me senti confusa quando, mais tarde, pude me sentar ao lado de uma menina branca, na mesma classe. Não achava, sinceramente, que aquilo fosse um privilégio em si.”
Ao lado da literatura, Toni cultiva uma outra grande paixão: o jazz. Nascida numa família em que “as pessoas falavam cantarolando”, nas suas próprias palavras, afirmou nunca ter conseguido reproduzir uma nota musical, mas já dedicou uma obra a esse estilo: Jazz. Publicado nos Estados Unidos em 1992, o livro traz à tona a realidade do bairro nova-iorquino do Harlem, na década de 1920. A escritora, no entanto, provou que sabe avaliar o significado da música na obra literária: “Acho que a linguagem escrita também pode representar o ritmo que existe na composição musical”, sintetizou.

Literatura brasileira – Com seu jeito mineiro de ser, a poetisa Adélia Prado encantou o auditório lotado que se reuniu para ouvi-la. Apesar de admitir seu nervosismo perante o público, Adélia foi se acalmando com a leitura de trechos de seus poemas e logo ficou firme como uma rocha para falar de temas tão espinhosos como a “miserabilidade da condição humana”, como ela mesma definiu. “Já nascemos órfãos e depois temos de nos confrontar com a doença, a velhice e a morte. O fato de sermos conscientes da nossa miserabilidade nos torna ainda mais miseráveis”, afirmou. Para ela, o mundo está doente da ausência de significação e esse fenômeno é tão profundo que fez ruir nossos valores. “Perdemos as referências, até a liberdade implica o compromisso com alguma coisa. Se já não se tem compromisso com nada, então tudo perde sentido”, declarou. A autora exaltou a importância da arte, afirmando ser ela indestrutível e dotada de significação. “A verdadeira obra de arte não tem prazo de validade. É por isso que lemos hoje os poetas da Antigüidade com o mesmo fervor e séculos atrás”, resumiu. “A arte é o nosso pão espiritual.”

A literatura brasileira também esteve representada por nomes como Ignácio de Loyola Brandão, que lançou pela Editora Jaboticaba A altura e a largura do nada. No romance, o consagrado escritor trouxe à tona as memórias de sua infância passada em sua cidade natal, a paulista Araraquara, nas décadas de 1940 e 1950. Loyola compartilhou a mesa “As Matérias do Romance” com o paranaense Miguel Sanches Neto, autor de Um amor anarquista, sobre a vida na Colônia Cecília, comunidade anarquista fundada em 1890 no Paraná, e com Wilson Bueno. Também natural do Paraná, este último é autor de Amar-te a ti nem se com carícias, romance que tem como pano de fundo o Rio de janeiro do século 19, cujo narrador faz parte da elite monarquista e anti-abolicionista. “Um retrato cruel do horror que foi aquela época no Brasil”, definiu.

O romance literário ainda esteve no centro das atenções durante a mesa “Nas Fronteiras da Narrativa”, que teve a participação de dois autores considerados renovadores da narrativa contemporânea em língua inglesa: o norte-americano Jonathan Safran Foer, autor de Extremamente alto & incrivelmente perto, e a escocesa Ali Smith. A autora de Por acaso e Hotel World afirmou só ser possível trabalhar com a forma romance quando se tem o domínio dela. “Se você conhece como funciona a estrutura de um romance, então é possível brincar com ele, usando a sua imaginação”, explicou.

Foer observou que não se deve falar sempre de política ao se discutir sobre literatura, numa alusão ao predomínio do debate político nesta edição da Flip. Elogiou a Festa Literária de Paraty e disse nunca ter visto um evento semelhante, em que as crianças também têm o seu espaço e não são relegadas a segundo plano. A opinião de Foer foi compartilhada por Ali Smith, para quem o evento brasileiro é um diálogo realmente internacional.

Entre vários outros escritores, a Flip 2006 também recebeu o norte-americano Edmund Whyte, conhecido autor de romances autobiográficos e de obras voltadas para o público gay nos Estados Unidos, como Travels in gay America. No rol dos autores de língua portuguesa, desponta o angolano Ondjaki, que acaba de lançar no Brasil o romance Bom dia camaradas. Eloqüente, o jovem escritor de Angola, de 29 anos, exaltou a língua portuguesa: “Ela é maleável, aberta, é uma língua com quem podemos dançar”.

A Flip 2006 homenageou o escritor brasileiro Jorge Amado (1912-2001). A obra do autor de Capitães de areia e de tantos outros romances foi debatida numa mesa organizada em sua homenagem. “Amado foi homem de seu tempo e de seu país”, sintetizou Eduardo de Assis Duarte, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os participantes do debate, especialistas na obra do escritor baiano, foram unânimes quanto à importância de Amadona revelação da verdadeira Bahia aos brasileiros.

A quarta edição da Flip foi acompanhada por um público de 12 mil pessoas. Trinta e sete autores convidados participaram do evento, que teve o patrocínio do Unibanco e da Tim. A realização ficou por conta da organização não-governamental Casa Azul, que trabalha pelo desenvolvimento sustentável de Paraty. Além de ser um acontecimento literário sem igual no Brasil, o grande mérito da Flip é a transformação que ela está promovendo na cidade. Isso acontece graças ao envolvimento da comunidade local e do Programa Educativo Cirandas de Paraty, que promove rodas de leituras e iniciativas em torno do livro junto às crianças locais.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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