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crédito: Francisco Emolo

O Brasil é um país de história ciclotímica, alternando momentos de grande euforia e de grandes frustrações. Chega às eleições de 2006 dividido entre a satisfação de uma parte da população, beneficiada pela discreta integração dos excluídos, e um grande pessimismo da burguesia, que descobriu ser incapaz de articular e executar um projeto nacional – a mesma burguesia que o governador Cláudio Lembo, surpreendentemente, chamou de elite “branca e má”. Análise do professor Carlos Guilherme Mota, titular aposentado de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e de História da Cultura da Universidade Mackenzie. Pessoalmente, o primeiro diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP vive sua pequena utopia: defender as idéias e os ideais do senador Cristovam Buarque, candidato à Presidência da República pelo PDT, cujo programa insiste na educação, “mas não de uma nota só”.

Sobre o presidente Lula, Mota diz que representa mais os valores de uma burguesia ascendente do que os de um proletariado avançado; seu desejo terceiro-mundista e sua visão histórico-política não levam aos caminhos de um Hugo Chávez (presidente da Venezuela), antes se identificam com o pequeno burguês paulista. Concorda com seu colega, também professor de História na USP, István Jancsó, que José Serra, candidato a governador de São Paulo pelo PSDB, talvez esteja mais à esquerda que Lula e, se vencer, consiga fazer mais pelo Estado do que a burguesia, “que nem consegue organizar a urbe, quanto mais resolver os problemas da periferia, da saúde e do medieval sistema carcerário”.

O professor também não poupa a universidade e a imprensa. A universidade porque, segundo ele, foi posta ou se colocou à margem do debate nacional, mantendo um padrão cultural “estamental, aristocrático, de passado escravista”; a imprensa porque, por razões alegadamente econômicas, vem afastando profissionais competentes e dispensando a colaboração de pensadores, sobretudo de esquerda.

Ciclos – Analisando as últimas décadas da história brasileira, Guilherme Mota identifica um primeiro momento de grande euforia às vésperas do golpe de 1964, com o reformismo de resultados presente em todos os planos: reforma agrária, política habitacional, reforma da educação, defesa da escola pública. Ao golpe seguiu-se a prostração, depois a retomada da esperança em 1967-1968, seguida de nova frustração com o golpe dentro do golpe. O “milagre brasileiro” de 1969 a 1975 se fez no pior momento da ditadura, de maior fechamento da história do Brasil, consolidando, como disse Florestan Fernandes, o modelo aristocrático burguês, depois de emparedar a esperança e liquidar a oposição armada.

Com o general Ernesto Geisel no poder, a partir de 1975, volta certo clima de esperança, mas quebrado pelo assassinato de membros da resistência, entre eles o jornalista Wladimir Herzog, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e o operário Manoel Fiel Filho. Era uma demonstração de que a ditadura prosseguia, mesmo na abertura “lenta, gradual e segura”, e aviso de que a redemocratização esbarraria em limites muito estreitos.

Veio a campanha das Diretas Já e, com ela, uma incontida euforia, sinalizada por movimentos de massa, praças cheias, união de lideranças nacionais como Fernando Henrique Cardoso, Lula, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Severo Gomes, Roberto Freire, Franco Montoro. De 1981 a 1983 até a eleição indireta, depois a morte de Tancredo, fez-se a “transição pelo alto”, estranha, quase sem rupturas, com José Sarney à frente, acompanhado dos coronéis da Banda de Música (pessoal da antiga UDN, José Aparecido, Antonio Carlos Magalhães). “Sabemos o que foi aquele período de amortecimento de sonhos, de desmobilização das utopias, quando a realpolitik se fez sentir mais forte”, diz Mota. À euforia com Tancredo sucedeu a depressão acentuada pela crise econômica, inflação galopante, má administração interna e conjuntura externa adversa.

O Brasil “moderno”, na figura de Fernando Collor de Mello, será o próximo ciclo. “O moderno está sempre no horizonte de um país sempre atrasado”, comenta o autor de Ideologia da cultura brasileira. “Foi uma eleição fantástica, preferência por um homem sem partido, que em céu carregado prometia a modernidade: projeto nacional, reserva de mercado, abertura externa.” Alta euforia. Só que durou pouco, cedendo lugar a nova alta depressão nacional.

Enfim, a estabilização com Itamar Franco, que Mota não se cansa de elogiar, considerando que a presença do mineiro nessa transição costuma ser muito sonegada. “É bom lembrar que, às vésperas da morte de Ulysses, Itamar estava reunido com Renato Archer, armando algum projeto nacional, mas o helicóptero caiu.” A estabilização incluiu o plano econômico do Real com Fernando Henrique Cardoso na pasta da Fazenda. “Foi uma estabilização tocada com mão forte, como ficou claro na repressão longa, dolorosa, quase cruel da primeira greve de petroleiros que teve manifestações na Via Anchieta. O modelo autocrático burguês permanecia na transição pós-Tancredo, pós-Sarney, pós-Collor. Um modelo intocável com certo fastígio dos bancos, quando o capital financeiro se refestelou.” Se hoje se fala em juros altos, Mota aconselha que se veja o mal na perspectiva histórica.

De ministro, FHC passou a presidente, trouxe um período de discreto otimismo, inovou na diplomacia com uma política externa “ilustrada” (mas não terceiro-mundista, que é de Lula). “Depois de uma série de conluios”, que teve a oposição do governador Mário Covas, conseguiu se reeleger. É o momento que Mota chama de ideal capitalista com as marcas tucano-pefelistas, da nova burguesia “aparentemente esclarecida” aliada aos bancos. Nesse ponto entra o “desabafo impensável há dez anos” de Cláudio Lembo contra a elite branca e má, que incluiu o baiano Antonio Carlos Magalhães como tipo da Casa Grande. “No que acertou”, acrescenta Mota. O historiador aponta no segundo governo de FHC aquilo que em Antonio Gramsci provocaria “vertigem”: a presença no Ministério da Cultura do até pouco tempo secretário do PT Francisco Weffort.

Na sucessão de FHC tudo foi pacífico. Segundo Mota, passou-se de uma sociedade estamental, hierárquica, elitista, neoburguesa com elementos da velha oligarquia, para o governo de um metalúrgico, um proletário, embora formado nos quadros de uma multinacional, que parecia anunciar a chegada da tão esperada modernidade. A euforia parecia renascer com a emergência de uma sociedade de contrato, moderna. Mas logo ficou claro que o modelo político anterior não foi desmontado, dando razão à tese de Raymundo Faoro, em Os donos do poder, de que, dada a persistência do estamento burocrático ao longo de seis séculos, jamais emergeria uma genuína cultura brasileira.

Lula – Mota observa: “Achávamos que com Lula o paradigma, o diapasão histórico-cultural, a mentalidade seriam ativados em outras direções, puxados pelas frentes de uma nova burguesia ‘esclarecida’, internacionalista; pensávamos que com o proletariado moderno e novas lideranças geradas pela agroindústria, pelos sindicatos rurais, escolas e universidades, estaríamos construindo um verdadeiro projeto nacional e equacionaríamos as questões deixadas pelos governos anteriores, como o problema carcerário (pois os reeducandos se transformam em bandidos). Mas os restolhos do modelo autocrático burguês estão aí, enquanto ‘a boa sociedade’ mantém seus seguranças, seus carros blindados, de olhos postos em Miami, ou os filhos em universidades dos Estados Unidos e da Europa”.

De acordo com o professor, quando aparentemente o presidente da República se descola de suas bases, “retirando-se para o seu Olimpo de pureza, em que a expressão-chave é “não sei”, os mecanismos de corrupção vão se desenvolvendo, supostamente inerentes ao modelo político. O caldo em que o presidente parece nadar é o neopopulismo, só que agora com o controle da mídia, haja vista a presença de Duda Mendonça na primeira fase do governo.

Mota pergunta se Lula, na hipótese de reeleito, conseguirá manter a série de iniciativas em favor das “classes ínfimas”, que lhes acenam com pequena ascensão social. A bolsa família, por exemplo. Também o cenário internacional prenuncia crises; a ameaça da Volkswagem de fechar a fábrica de São Bernardo é um dos sinais.

De qualquer forma, o professor pressente alguns indicadores de reação nas classes média e baixa. Um deles é a atuação da senadora Heloísa Helena, do PSOL, que pela sua estimativa poderá alcançar até 15% dos votos para presidente da República em outubro. “O mesmo porcentual que o PT tinha 15 anos atrás.”

Mota acompanha o intelectual e militante paquistanês Tarik Ali no espanto de que o governo Lula não tenha conseguido ao menos desenvolver um programa efetivo para a educação. Daí a utopia de acreditar na utopia de Cristovam Buarque. “Sem utopia é difícil trabalhar”, conclui.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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