O
Brasil é um país de história ciclotímica,
alternando momentos de grande euforia e de grandes frustrações.
Chega às eleições de 2006 dividido entre a
satisfação de uma parte da população,
beneficiada pela discreta integração dos excluídos,
e um grande pessimismo da burguesia, que descobriu ser incapaz
de articular e executar um projeto nacional – a mesma burguesia
que o governador Cláudio Lembo, surpreendentemente, chamou
de elite “branca e má”. Análise do professor
Carlos Guilherme Mota, titular aposentado de História Contemporânea
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP e de História da Cultura da Universidade Mackenzie.
Pessoalmente, o primeiro diretor do Instituto de Estudos Avançados
(IEA) da USP vive sua pequena utopia: defender as idéias
e os ideais do senador Cristovam Buarque, candidato à Presidência
da República pelo PDT, cujo programa insiste na educação, “mas
não de uma nota só”.
Sobre o presidente Lula, Mota diz que representa
mais os valores de uma burguesia ascendente do que os de um proletariado
avançado;
seu desejo terceiro-mundista e sua visão histórico-política
não levam aos caminhos de um Hugo Chávez (presidente
da Venezuela), antes se identificam com o pequeno burguês
paulista. Concorda com seu colega, também professor de História
na USP, István Jancsó, que José Serra, candidato
a governador de São Paulo pelo PSDB, talvez esteja mais à esquerda
que Lula e, se vencer, consiga fazer mais pelo Estado do que a
burguesia, “que nem consegue organizar a urbe, quanto mais
resolver os problemas da periferia, da saúde e do medieval
sistema carcerário”.
O professor também não poupa a universidade e a imprensa.
A universidade porque, segundo ele, foi posta ou se colocou à margem
do debate nacional, mantendo um padrão cultural “estamental,
aristocrático, de passado escravista”; a imprensa
porque, por razões alegadamente econômicas, vem afastando
profissionais competentes e dispensando a colaboração
de pensadores, sobretudo de esquerda. Ciclos – Analisando as últimas décadas da
história brasileira, Guilherme Mota identifica um primeiro
momento de grande euforia às vésperas do golpe de
1964, com o reformismo de resultados presente em todos os planos:
reforma agrária, política habitacional, reforma da
educação, defesa da escola pública. Ao golpe
seguiu-se a prostração, depois a retomada da esperança
em 1967-1968, seguida de nova frustração com o golpe
dentro do golpe. O “milagre brasileiro” de 1969 a 1975
se fez no pior momento da ditadura, de maior fechamento da história
do Brasil, consolidando, como disse Florestan Fernandes, o modelo
aristocrático burguês, depois de emparedar a esperança
e liquidar a oposição armada.
Com o general Ernesto Geisel no poder, a partir
de 1975, volta certo clima de esperança, mas quebrado pelo assassinato
de membros da resistência, entre eles o jornalista Wladimir
Herzog, professor da Escola de Comunicações e Artes
(ECA) da USP, e o operário Manoel Fiel Filho. Era uma demonstração
de que a ditadura prosseguia, mesmo na abertura “lenta, gradual
e segura”, e aviso de que a redemocratização
esbarraria em limites muito estreitos.
Veio a campanha das Diretas Já e, com ela, uma incontida
euforia, sinalizada por movimentos de massa, praças cheias,
união de lideranças nacionais como Fernando Henrique
Cardoso, Lula, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Severo
Gomes, Roberto Freire, Franco Montoro. De 1981 a 1983 até a
eleição indireta, depois a morte de Tancredo, fez-se
a “transição pelo alto”, estranha, quase
sem rupturas, com José Sarney à frente, acompanhado
dos coronéis da Banda de Música (pessoal da antiga
UDN, José Aparecido, Antonio Carlos Magalhães). “Sabemos
o que foi aquele período de amortecimento de sonhos, de
desmobilização das utopias, quando a realpolitik
se fez sentir mais forte”, diz Mota. À euforia com
Tancredo sucedeu a depressão acentuada pela crise econômica,
inflação galopante, má administração
interna e conjuntura externa adversa.
O Brasil “moderno”, na figura de Fernando Collor de
Mello, será o próximo ciclo. “O moderno está sempre
no horizonte de um país sempre atrasado”, comenta
o autor de Ideologia da cultura brasileira. “Foi uma eleição
fantástica, preferência por um homem sem partido,
que em céu carregado prometia a modernidade: projeto nacional,
reserva de mercado, abertura externa.” Alta euforia. Só que
durou pouco, cedendo lugar a nova alta depressão nacional.
Enfim, a estabilização com Itamar Franco, que Mota
não se cansa de elogiar, considerando que a presença
do mineiro nessa transição costuma ser muito sonegada. “É bom
lembrar que, às vésperas da morte de Ulysses, Itamar
estava reunido com Renato Archer, armando algum projeto nacional,
mas o helicóptero caiu.” A estabilização
incluiu o plano econômico do Real com Fernando Henrique Cardoso
na pasta da Fazenda. “Foi uma estabilização
tocada com mão forte, como ficou claro na repressão
longa, dolorosa, quase cruel da primeira greve de petroleiros que
teve manifestações na Via Anchieta. O modelo autocrático
burguês permanecia na transição pós-Tancredo,
pós-Sarney, pós-Collor. Um modelo intocável
com certo fastígio dos bancos, quando o capital financeiro
se refestelou.” Se hoje se fala em juros altos, Mota aconselha
que se veja o mal na perspectiva histórica.
De ministro, FHC passou a presidente, trouxe um período
de discreto otimismo, inovou na diplomacia com uma política
externa “ilustrada” (mas não terceiro-mundista,
que é de Lula). “Depois de uma série de conluios”,
que teve a oposição do governador Mário Covas,
conseguiu se reeleger. É o momento que Mota chama de ideal
capitalista com as marcas tucano-pefelistas, da nova burguesia “aparentemente
esclarecida” aliada aos bancos. Nesse ponto entra o “desabafo
impensável há dez anos” de Cláudio Lembo
contra a elite branca e má, que incluiu o baiano Antonio
Carlos Magalhães como tipo da Casa Grande. “No que
acertou”, acrescenta Mota. O historiador aponta no segundo
governo de FHC aquilo que em Antonio Gramsci provocaria “vertigem”:
a presença no Ministério da Cultura do até pouco
tempo secretário do PT Francisco Weffort.
Na sucessão de FHC tudo foi pacífico. Segundo Mota,
passou-se de uma sociedade estamental, hierárquica, elitista,
neoburguesa com elementos da velha oligarquia, para o governo de
um metalúrgico, um proletário, embora formado nos
quadros de uma multinacional, que parecia anunciar a chegada da
tão esperada modernidade. A euforia parecia renascer com
a emergência de uma sociedade de contrato, moderna. Mas logo
ficou claro que o modelo político anterior não foi
desmontado, dando razão à tese de Raymundo Faoro,
em Os donos do poder, de que, dada a persistência do estamento
burocrático ao longo de seis séculos, jamais emergeria
uma genuína cultura brasileira. Lula – Mota observa: “Achávamos que com Lula
o paradigma, o diapasão histórico-cultural, a mentalidade
seriam ativados em outras direções, puxados pelas
frentes de uma nova burguesia ‘esclarecida’, internacionalista;
pensávamos que com o proletariado moderno e novas lideranças
geradas pela agroindústria, pelos sindicatos rurais, escolas
e universidades, estaríamos construindo um verdadeiro projeto
nacional e equacionaríamos as questões deixadas pelos
governos anteriores, como o problema carcerário (pois os
reeducandos se transformam em bandidos). Mas os restolhos do modelo
autocrático burguês estão aí, enquanto ‘a
boa sociedade’ mantém seus seguranças, seus
carros blindados, de olhos postos em Miami, ou os filhos em universidades
dos Estados Unidos e da Europa”.
De acordo com o professor, quando aparentemente
o presidente da República se descola de suas bases, “retirando-se
para o seu Olimpo de pureza, em que a expressão-chave é “não
sei”, os mecanismos de corrupção vão
se desenvolvendo, supostamente inerentes ao modelo político.
O caldo em que o presidente parece nadar é o neopopulismo,
só que agora com o controle da mídia, haja vista
a presença de Duda Mendonça na primeira fase do
governo.
Mota pergunta se Lula, na hipótese de reeleito, conseguirá manter
a série de iniciativas em favor das “classes ínfimas”,
que lhes acenam com pequena ascensão social. A bolsa família,
por exemplo. Também o cenário internacional prenuncia
crises; a ameaça da Volkswagem de fechar a fábrica
de São Bernardo é um dos sinais.
De qualquer forma, o professor pressente
alguns indicadores de reação nas classes média e baixa. Um deles é a
atuação da senadora Heloísa Helena, do PSOL,
que pela sua estimativa poderá alcançar até 15%
dos votos para presidente da República em outubro. “O
mesmo porcentual que o PT tinha 15 anos atrás.”
Mota acompanha o intelectual
e militante paquistanês Tarik
Ali no espanto de que o governo Lula não tenha conseguido
ao menos desenvolver um programa efetivo para a educação.
Daí a utopia de acreditar na utopia de Cristovam
Buarque. “Sem
utopia é difícil trabalhar”, conclui. |