Não
deixe o Soquinho nem o Raspadinho ficarem na fala. Se eles aparecerem,
repita a palavra para chamar só a turma nova. É dessa
forma, brincando com os personagens da “turma velha”
(Soquinho e Raspadinho) e da “turma nova” (Pipoca, Tatu,
Cobra, Pneu Furado, Mosca e Chuveiro), que a pesquisadora Maria
Cristina Zimmermann, da equipe interdisciplinar do Hospital de Reabilitação
de Anomalias Craniofaciais da USP, o Centrinho de Bauru, estimula
pacientes com distúrbios articulatórios a buscar uma
nova fala. Ela consegue, através de desenhos, carimbos e
músicas com aqueles personagens, livrar os pacientes dos
“socos”, “trancos” ou “raspões”
freqüentes em pacientes com fenda no palato (céu da
boca).
Maria Cristina cita um exemplo típico
que deixa clara a dificuldade de pacientes e terapeutas na identificação
da produção incorreta dos sons. Um rapaz chamado Carlos
repetia, com certa angústia, seu nome sem entender a razão
pela qual as pessoas lhe pediam isso. “Meu nome é ‘Arlos’”,
falava. “Arlos não, Carlos”, diziam. “Então,
estou falando, Arlos”, irritava-se. O problema, segundo a
fonoaudióloga, é que Carlos codificou desde criança
esse distúrbio. “Com terapias que usam técnicas
comuns, como mera repetição silábica, os profissionais
não teriam sucesso nesse caso”, afirma. Segundo Maria
Cristina, o paciente pode até repetir corretamente os fonemas
propostos, mas se ele não tiver uma nova percepção
do som produzido e se não encontrar meios efetivos para abandonar
aquele velho padrão articulatório, de nada adiantará
a fonoterapia.
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A turma nova – No projeto
Turma Nova da Fala, entram em ação pistas perceptivas
que envolvem tato, visão e audição. “Ao
materializar para o paciente o que acontece no seu mecanismo de
produção de fala, abrimos o caminho da codificação
dos sons corretos. Por isso, personificamos os sons corretos, como
o p de pipoca e, se necessário, os sons incorretos, como
o Soquinho”, esclarece.
“São personagens que auxiliam
na estimulação de padrões articulatórios
corretos”, completa a fonoaudióloga Maria Cristina.
O projeto, que inclui livro, carimbos, adesivos – todos ilustrados
– e CD musical, acaba de completar dois anos e está
em fase de registro de direitos autorais na Fundação
Biblioteca Nacional por meio da Agência USP de Inovação.
Segundo a autora, a idéia do trabalho
nasceu da vivência clínica de 27 anos no Centrinho,
atendendo os falantes com fissuras labiopalatinas. “A constatação
de problemas cruciais da fonoterapia para os distúrbios articulatórios
compensatórios (DAC) foi um motivo a mais para realizar esse
projeto”, conta. Segundo a fonoaudióloga, muitos pacientes
chegam à fase de alta da fonoterapia em suas cidades de origem
de forma precoce, sem estarem capacitados para falar espontaneamente,
livre das alterações de produção de
sons. Isso se deve à falta de experiência de fonoaudiólogos
com o tratamento desses distúrbios.
“Os cursos de graduação
não oferecem conhecimento suficiente para o diagnóstico
e tratamento da fala de pacientes com fenda palatal. Por isso, a
grande maioria dos profissionais de fonoaudiologia não sabe
tratar tais distúrbios. Daí a fundamental importância
desse trabalho”, pontua o médico foniatra Alfredo Tabith
Jr., orientador do projeto.
Habilidade – Maria
Cristina explica que a correção direta dos distúrbios
articulatórios compensatórios dispensa altas tecnologias.
Para ela, tudo depende basicamente da habilidade do terapeuta de
reconhecer os padrões alterados de articulação,
conhecer algumas técnicas terapêuticas efetivas e ter
disponíveis materiais pedagógicos comumente utilizados
em clínicas fonoaudiológicas, empregados, às
vezes, com adaptações, como a própria Turma
Nova da Fala. “Esse projeto é uma roupagem terapêutica
que estimula a habilidade para a discriminação e o
autocontrole das produções corretas e incorretas,
a partir de recursos que envolvem o prazer de brincar e cantar nas
atividades, com o objetivo de beneficiar a relação
paciente/terapeuta”, afirma.
“É um material que será
de grande utilidade para os fonoaudiólogos que se preocupam
em oferecer aos seus pacientes opções terapêuticas
criteriosamente elaboradas”, diz Tabith Jr., também
diretor-geral da Divisão de Educação e Reabilitação
dos Distúrbios da Comunicação (Derdic), entidade
sem fins lucrativos, ligada à Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Outro ponto destacado
por Tabith é o caráter estimulador do material, que
desperta nos pacientes a percepção de sua fala e o
interesse pela busca por uma nova fala.
“Achei o material bastante interessante
por ser lúdico, atraente e cuidadosamente elaborado para
ser utilizado na prática clínica da fonoaudiologia,
lembrando que nessa área há escassez de material
específico para se trabalhar com as alterações
de fala decorrentes da fissura labiopalatina, especialmente com
crianças”, avalia a fonoaudióloga Francine Tovo
Ortigoso Broggio, que há quatro anos atua na Associação
de Apoio ao Fissurado Labiopalatal de São José dos
Campos (Aaflap).
Durante um ano, a autora e mais cinco fonoaudiólogas da equipe
do Centrinho fizeram testes de aplicabilidade em um grupo formado
por oito pacientes, com idade entre 2 anos e 11 meses e 32 anos
e 1 mês. “O resultado é gratificante. Mesmo aqueles
pacientes adultos, que cresceram pronunciando os fonemas de forma
incorreta, podem obter sucesso no tratamento”, assegura a
pesquisadora.
Música e desenhos
– A inspiração para as ilustrações
do projeto veio de fontes diversas e sutis. Segundo a pesquisadora
Maria Cristina Zimmermann, cada traço foi pensado e associado
a fatos ligados ao seu cotidiano profissional e pessoal, num encontro
entre a ciência e a arte. “O romantismo do castelo,
por exemplo, cuja ponte que leva ao seu interior é metáfora
do alcance do sonho de corrigir a fala, tem muito a ver com o meu
jeito de ser”, confessa Maria Cristina. A Pipoca, o Tatu,
a Cobra, o Pneu Furado, o Chuveiro e a Mosca, todas as personagens
trazem traços familiares para a fonoaudióloga, que
contou com a paciência e o profissionalismo de sua irmã,
Valéria Maria Zimmermann, desenhista de moda, responsável
pelas ilustrações. “Depois de definidas, levei
cerca de um mês no processo criativo das personagens”,
conta Valéria.
Com o perfil das personagens devidamente
traçado, ficou fácil criar a trilha sonora que compõe
o projeto. Com oito faixas, a trilha aborda os fonemas alterados
com mais freqüência na fala de pacientes com fissura
de palato: pu, té, kó, fi, si, chu. O trabalho foi
realizado com exclusividade pelo músico, cantor e compositor
Beto Carvalho, 37 anos, natural de Catende (PE). “O Beto fez
a trilha dos seis personagens do projeto e, com a mesma melodia,
os pacientes poderão exercitar cada fonema.” Ao som
de voz e violão, os pacientes podem cantarolar os padrões
articulatórios em nível silábico e, com isso,
vivenciar os sons. E, numa combinação lúdica,
seguem em busca da nova fala.
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