É possível acabar com a pobreza no mundo? Para o
banqueiro Mohammad Yunus, a resposta é sim. Yunus não é um
agente do sistema financeiro qualquer. Ele é mais conhecido
como “o banqueiro dos pobres”, e foi por conta de sua
experiência de 30 anos nessa atividade que acabou reconhecido
com o Prêmio Nobel da Paz, anunciado no último dia
13 pelo comitê norueguês do Nobel, em Oslo. Economista
muçulmano de 66 anos, Yunus é o primeiro cidadão
de seu país, Bangladesh, a receber o Nobel. Sua experiência
está relatada no livro O banqueiro dos pobres, publicado
no Brasil pela Editora Ática. “Foi o primeiro livro
técnico que li na minha área de especialização
que me fez ficar com lágrimas nos olhos, tamanha era a sua
sensibilidade social”, revela o professor Fernando Nogueira
da Costa, docente licenciado do Instituto de Economia da Unicamp
e desde 2003 vice-presidente da Caixa Econômica Federal.
No início dos anos 70, enquanto Bangladesh se tornava independente
do Paquistão, Yunus doutorou-se em economia pela Universidade
de Vanderbilt, no Tennessee (Estados Unidos). Ao retornar ao seu
país, em 1976, teve o seu “momento eureka” ao
conversar com uma bengali que fazia bancos de bambu em um vilarejo.
A mulher contou que havia feito um empréstimo com um agiota
para comprar o bambu, mas que praticamente todo o seu lucro retornava
ao agiota. Yunus encontrou 43 moradoras do local que tinham empréstimos
no valor de US$ 27. Ele resolveu lhes emprestar o dinheiro de seu
próprio bolso e disse que elas poderiam pagar quando pudessem.
Todas pagaram. Esse foi o embrião da idéia do microcrédito
e do surgimento do Banco Grameen (Banco Rural) de Bangladesh.
O microcrédito é a concessão de empréstimos
de baixo valor e com pouca burocracia a pequenos empreendedores
informais e microempresas sem acesso ao sistema financeiro tradicional,
principalmente por não terem como oferecer garantias reais. “Comecei
o banco emprestando US$ 27 do meu próprio bolso. Então
me tornei avalista de um banco comercial para obter dinheiro para
emprestar aos pobres. A partir daí, tornei isto um projeto
para o banco e posteriormente aceitei dinheiro de doadores. Desde
1985, o Banco Grameen parou de aceitar recursos de doadores ou
dinheiro de fora. Conseguimos nosso próprio dinheiro com
a captação de depósitos”, disse Yunus
numa entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia
seguinte à concessão do Nobel. O Grameen agora atende
a 6,7 milhões de tomadores de empréstimo, num total
de mais de US$ 800 milhões a cada ano.
Potencial – De 177 países analisados
pelas Nações
Unidas em termos de seu Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) de 2005, Bangladesh ocupa a 139ª posição
(o Brasil é o 63º). Seu PIB per capita é de
US$ 1.750. Mais de 35% de sua população de 133,4
milhões de habitantes vivem abaixo da linha de pobreza,
e 65% dos trabalhadores estão ocupados na agricultura. “A
pobreza no mundo é uma criação artificial.
Ela não pertence à civilização humana,
e nós podemos mudar isso, podemos fazer as pessoas saírem
da pobreza”, disse Yunus pouco depois de ter recebido o Nobel
(leia o texto ao lado). “A paz duradoura não pode
ser alcançada a menos que grandes grupos da população
encontrem meios de sair da pobreza. O microcrédito é um
desses meios”, diz o comunicado do comitê do Nobel. “O
desenvolvimento a partir da base também serve para ampliar
a democracia e os direitos humanos. Cada indivíduo neste
planeta possui tanto o potencial quanto o direito a ter uma vida
decente. Em diferentes culturas e civilizações, Yunus
e o Banco Grameen têm mostrado que até mesmo os mais
pobres entre os pobres podem trabalhar em prol de seu próprio
desenvolvimento.”
Para a Fundação Nobel, a visão de futuro de
Yunus – eliminar a pobreza do mundo – não pode
ser concretizada apenas com o uso do microcrédito. “Mas
Mohammad Yunus e o Banco Grameen mostram que, no esforço
continuado para alcançar esse objetivo, o microcrédito
deve ter um papel fundamental”, diz o comunicado.
Oferecer oportunidades, portanto, é um dos pontos-chave
para mudanças. Num estudo sobre as finanças na luta
contra a pobreza, o professor Ricardo Abramovay, do Departamento
de Economia da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade (FEA) da USP, lembra que o próprio Banco
Mundial já alertou em seus relatórios sobre a América
Latina que “quanto mais desigual um país, menor é a
capacidade de o crescimento econômico reduzir a sua pobreza”.
A falta de acesso a serviços financeiros como créditos,
seguros e poupança é um grande obstáculo a
superar. “É equivocada a idéia de que primeiro
os pobres devem ampliar sua geração de renda para,
só então, demandar serviços financeiros formais.
Na verdade, o acesso aos bancos é uma das mais importantes
condições para aumentar as chances daqueles que vivem
do trabalho por conta própria e próximo à linha
de pobreza”, diz Abramovay. Programas de microcrédito
analisados por diferentes estudos “tiveram o condão
não só de operar com baixíssima inadimplência,
mas de permitir a elevação de renda dos que tomaram
empréstimos”, revela.
Experiência – Para Fernando Nogueira
da Costa, a Caixa Econômica Federal tem procurado implantar
propostas de microcrédito
voltadas à população de baixa renda inspiradas
no trabalho de Yunus, mas adaptadas à realidade brasileira. “Temos
um país de dimensões continentais e maciçamente
urbano, com problemáticas muito diferentes das de Bangladesh,
que é um país rural”, avalia. “Em Bangladesh
opera um único banco que atende algo como 36 mil aldeias,
dá o crédito e capta o depósito. Ou seja,
o dinheiro se multiplica com o tempo. No Brasil a experiência
tem que ser diferente.”
Uma das medidas implantadas logo no início de sua gestão
na Caixa foi a criação da conta bancária simplificada,
o que mais do que dobrou o número de correntistas do banco.
A modalidade de micropenhor, com crédito de até R$
300,00, criada em 2004, já teve mais de R$ 1 bilhão
aplicados. Para Costa, os bancos privados ainda não aderiram
de forma ampla à concessão de microcréditos
porque preferem trabalhar com clientes de outras faixas de renda. “Essas
iniciativas vão ganhar solidez quando o banco tratar o cidadão
de baixa renda da mesma forma que trata os de outra categoria”,
diz.
Uma das iniciativas brasileiras em microcrédito é a
São Paulo Confia, criada em 2001 pela Prefeitura paulistana,
que concede empréstimos de R$ 50,00 a R$ 5.000,00 apenas
para grupos formados por quatro a sete empreendedores. Nesses grupos,
cada um se compromete a garantir solidariamente o pagamento do
crédito concedido a todos os integrantes. O objetivo é fazer
com que cada empreendedor tenha responsabilidade, fiscalize e acompanhe
o pagamento das prestações dos demais participantes
do grupo. Em regra, o microcrédito adota essa prática
de garantia social, ou seja, utiliza de forma usual o fiador coletivo
com base em relações de confiança, reciprocidade
e participação.
Costa afirma que compartilha da ideologia de Yunus de que o horizonte
deve ser o fim da pobreza. “Temos que criar o modo de produção
e maneiras de viver em que quem não teve a chance de nascer
em berço esplêndido possa ter oportunidades de superar
a pobreza”, afirma o professor. “Não sejamos
ingênuos: é um objetivo que vai levar tempo para ser
atingido, mas a experiência de outros países mostra
que isso é perfeitamente possível.
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“Caridade não é solução
para a pobreza”
Logo após o anúncio do prêmio, Mohammad Yunus
concedeu uma breve entrevista ao comitê do Nobel, na qual foi
convidado a expor qual a sua principal mensagem. A seguir, a resposta
do economista:
“A mensagem que tenho tentado transmitir o tempo todo é que
a pobreza no mundo é uma criação artificial.
Ela não pertence à civilização humana,
e nós podemos mudar isso, podemos fazer as pessoas saírem
da pobreza. A única coisa que precisamos fazer é redesenhar
nossas instituições e políticas, e não
haverá pessoas no mundo sofrendo com a pobreza. Eu espero
que esse prêmio faça com que essa mensagem seja ouvida
muitas vezes, e de uma maneira tão forte que as pessoas comecem
a acreditar que podemos criar um mundo livre da pobreza. Isso é o
que eu gostaria de fazer.
Vemos demonstrações das pessoas saindo da pobreza todos
os dias. Isso está bem à nossa frente e pode ser feito
de forma global e mais poderosa. Podemos nos organizar para fazer
mais. Não se trata de uma questão teórica, mas
de um tema real. As pessoas podem mudar suas próprias vidas,
desde que tenham o direito a algum tipo de suporte institucional.
Elas não estão pedindo por caridade, a caridade não é solução
para a pobreza. Os pobres não têm as oportunidades que
os demais têm. Então levemos essas oportunidades para
os pobres, e eles poderão mudar sua vida. É isso o
que estamos fazendo. Não fazemos nada de especial: tudo o
que fizemos foi emprestar dinheiro
aos pobres, e esse é
o ‘truque’. É isso que produz a mudança.”
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