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Dia 30 de novembro serão anunciadas as dez melhores cachaças fabricadas no Brasil, nas categorias ouro, prata e bronze. Será o encerramento do 2o Concurso de Avaliação da Qualidade da Cachaça, promovido pelo Laboratório para o Desenvolvimento da Química da Aguardente do Instituto de Química da USP em São Carlos, com participação da Unesp de São José do Rio Preto, que sediará o evento (bienal) nesta versão. O concurso corre paralelo ao 6o Brazilian Meeting on Chemistry of Food and Beverages e está com inscrições abertas até o final do mês. Até quarta-feira da semana passada, havia 31 inscritos, de São Paulo e outros Estados (Minas, Espírito Santo, Paraíba, Goiás). Para informações, douglas@iqsc.usp.br .


Franco: produção tende a crescer

As cachaças não serão avaliadas apenas pelo critério sensorial, isto é, gosto, aroma e cor, mas também pela composição química, pois a bebida pode conter elementos benéficos ou prejudiciais à saúde humana. Avaliar o primeiro aspecto e dar notas de um a dez ficará por conta dos degustadores-participantes de um curso de dois dias (28 e 29), na Unesp, a ser ministrado pelo pesquisador italiano Luigi Odello, do Centro Studi Assaggiatori de Brescia; as análises químicas estarão a cargo do laboratório criado há 12 anos pelo professor Douglas Wagner Franco e por ele dirigido ainda agora.

Os vencedores levarão medalhas e diplomas, não havendo prêmio em dinheiro. Cada participante receberá também o resultado da análise química de seu produto, com a garantia de que essas informações são sigilosas e não poderão ser usadas pela concorrência. Portanto, os nomes dos vencedores serão revelados, mas apenas eles saberão por que, do ponto de vista químico, suas amostras foram premiadas.

De acordo com Douglas Franco, atualmente coordenador da Coordenadoria de Administração Geral (Codage) da USP, uma cachaça pode ser muito boa para o paladar e até agradável para a vista, mas é fundamental que não acoberte substâncias nocivas à saúde como o carbonato de etila, metais pesados ou alguns dos compostos sulfurados. No caso do concurso, a presença deles nas amostras em níveis acima dos permitidos por critérios internacionais será excludente.

Existem, contudo, alguns tabus que vão caindo à medida que avançam as pesquisas de laboratório. Isso acontece, por exemplo, com o cobre, que passou de elemento nocivo a bom, e até indispensável em alguns casos. Está presente em remédios destinados a gestantes, em teores até mais altos do que na aguardente: “Se uma cachaça tem 5 miligramas de cobre por litro, o medicamento tem 1 miligrama por comprimido”, afirma o professor. Sem um pouco de cobre na bebida o ferro, tão útil no combate à anemia, não pode ser absorvido pelo organismo humano.

Da madeira dos barris nos quais a cachaça envelhece vêm componentes não apenas agradáveis ao olfato, mas também antioxidantes e saudáveis. Um segundo tabu que está caindo se refere à crença de que só o carvalho é a madeira própria para a fabricação de barris. Segundo o professor Douglas Franco, o Brasil tem madeiras excelentes para isso, mencionando a árvore-amendoim, sua preferida, o jequitibá-rosa e o bálsamo, entre muitas outras. O problema é achar essas espécies, vítimas da devastação no Estado.

Em matéria de cachaça vale o dito antigo, de que a diferença entre remédio e veneno está na dose. Em outras palavras, lembra o professor Franco, a linha divisória entre a galhofa e a seriedade é muito tênue. Ele, que bebe apenas socialmente, considera hipocrisia falar mal do álcool como se fosse sempre um veneno. Não há religião nem rito religioso que deixe de se referir a alguma forma de álcool. Cristo multiplicou o vinho, que por definição tem teor de álcool. Na fermentação dos alimentos no intestino se forma etanol e nem por isso as pessoas vivem bêbadas. Álcool puro e em grandes doses mata, assim como o oxigênio puro pode ser fatal para o paciente.

A produção de cachaça se faz pelo processo artesanal, em pequena escala, geralmente abaixo de 50 mil litros/ano, ou pelo industrial, caso em que um só produtor pode vender mais de 1 milhão de litros por safra. No modo artesanal costuma-se usar milho para ajudar na fermentação, cubas de madeira e alambiques geralmente de cobre para a destilação; no industrial, predomina a destilação em colunas, espécie de conjunto de alambiques superpostos e intercomunicantes. Hoje, uma cachaça de qualidade pode chegar a custar mais de R$ 200,00 a garrafa – ou seja, vale tanto quanto um uísque escocês de primeira linha.
Nos pequenos alambiques costuma-se distinguir e nomear a aguardente de acordo com o tempo de saída, quando pode ser cabeça, coração ou cauda. No processo industrial, ao contrário, tudo se mistura e o resultado final é um blend. A qualidade da bebida, nos dois casos, depende do gosto do freguês, mas é certo que alguns fatores contam muito: tipo da madeira do barril, tempo de envelhecimento, e queima da cana (que também determina a presença de elementos nocivos na pinga).

Laboratório – Há 12 anos, o professor Douglas Franco percebeu que a cachaça poderia ser reconhecida mundialmente como bebida tipicamente brasileira, assim como o uísque é tipicamente escocês e o rum tipicamente cubano, e ajudar a economia do País. Antes, porém, de lutar pelo mercado internacional era preciso melhorar a qualidade do produto nacional, e a Universidade poderia ajudar nisso. Criou então o laboratório da aguardente no Instituto de Química de São Carlos, começando a trabalhar com ajuda financeira de um grande produtor de Pirassununga. Anos depois, a Fapesp abriu financiamento para duas linhas de pesquisa, uma para análise de aspectos físico-químicos da cachaça e outra para programa de pesquisas em políticas públicas.

De início, o professor pretendia concentrar os estudos na qualidade e denominação da cachaça de acordo com a posição geográfica da região produtora, à maneira como são rotulados, por exemplo, os vinhos europeus. Sua equipe chegou a recolher amostras de vários produtores do Estado, até descobrir que essa era uma tarefa quase impossível de levar a termo, porque os muitos tipos do produto se entremeiam, não podendo ser isolados individualmente. O máximo que conseguiu foi dividir a cachaça paulista em três grupos químicos.

Franco diferencia aguardente de cachaça, e define: aguardente é o produto obtido da destilação do caldo de cana fermentado; cachaça é melado fermentado destilado. “Os mineiros, muito espertos, lançaram a onda de que cachaça tem apelo maior que aguardente. E pegou. Levada para os Estados Unidos, alguém de lá leu a informação de que a cachaça vem do melaço e exclamou ‘oba’, o rum também é melaço fermentado, o rum é cubano, logo a cachaça deve ter a mesma taxa de importação que o rum...”. Estava criado um problema para a exportação da bebida típica brasileira.

Franco assegura que, “modestamente”, o laboratório de São Carlos contribuiu para mudar essa história, tornando as exportações viáveis, e hoje elas correspondem a 1% da produção nacional. E tendem a crescer. O argumento decisivo foi a comprovação de que a composição química da aguardente e a do rum são diferentes; portanto, as bebidas não podiam ser confundidas, embora ambas sejam subproduto da cana-de-açúcar. O que ficou é o nome cachaça substituindo aguardente. É verdade também que os importadores e possíveis importadores levam em conta a diferenciação no grau alcoólico de ambas. “Cá entre nós”, diz Franco, “isso é questionável” (como critério para taxas alfandegárias). Na Europa, o caso está encerrado e a cachaça é reconhecidamente bebida brasileira, importada agora principalmente pela Alemanha e até pela Escócia; também pelo Japão e países da América Latina.

No laboratório da USP de São Carlos também se analisam amostras de rum e uísque. Cuba chegou a encomendar estudo com a finalidade de diferenciar o seu rum do de outros fabricantes.

Equipe – O Laboratório para o Desenvolvimento da Química da Aguardente limita os estudos ao Estado de São Paulo porque é financiado pela Fapesp. “No dia em que o CNPq ou outro órgão federal também financiar, estenderemos as pesquisas ao País todo”, diz Franco. O laboratório é também um centro de formação e titulação de alunos da Universidade, da iniciação científica ao pós-doutorado. No momento, nele trabalham três alunos de iniciação científica, quatro preparando mestrado, três doutorandos e um pós-doc, Daniel Cardoso, que há dois anos conseguiu o doutorado em química analítica e tem especialização em universidade da Dinamarca. Sem contar o pessoal de apoio.

No projeto referente a políticas públicas, criado pela Fapesp para fornecer subsídios à formulação de programas de governo, fazem-se análises de aproximadamente 150 amostras de cachaças industriais, de pequenos e grandes produtores. Elas ficam em geladeira, em embalagem padronizada, sem marca visível, mas sempre identificadas. Há também amostras de rum cubano legítimo e de uísque escocês, da Martinica e dos Estados Unidos, enviados pelos fabricantes. Essas amostras passam por análises comparativas para a definição do perfil químico e sensorial.

Um dos doutorandos, Francisco Wendel, incorporado à equipe do professor Franco em 2005, prepara tese pesquisando a ocorrência na cachaça de dextrana, isto é, impurezas na forma de flocos e aparência de nuvens, que flutuam no fundo da garrafa e que certamente fazem o produto perder valor no mercado. Na verdade, são derivados do açúcar de cana e não representam risco à saúde do consumidor.

Cada amostra passa por análises diferentes que, entre outras coisas, revelam o tipo de cana usada, se foi previamente queimada, quando foi cortada, que fermento foi usado e o processo de destilação (alambique ou coluna). Em resumo, o relatório indica mais de 50 variáveis. Em 12 anos de atividade o laboratório analisou cerca de 200 amostras de cachaça comercial, de 30 a 40 de rum e outro tanto de uísque. Entre os equipamentos usados destaca-se o conjunto formado pelo cromatógrafo em fase líquida acoplado ao espectrômetro de massas de múltiplo estágio. O primeiro vem do Japão, o segundo da Alemanha. Juntos custam US$ 200 mil dólares.

O Brasil produz cerca de 2 bilhões de litros de cachaça por ano e 10 bilhões de litros álcool. Pelos cálculos dos técnicos do laboratório, mais ou menos 10% do total da cana plantada se destina à fabricação de cachaça.



De professor a produtor

Festa com reitores reunidosNa Fazenda Santa Esília, município de Bonfim Paulista, Hugo Evaristo Benedini, farmacêutico (químico e bioquímico) formado na USP de Ribeirão Preto e professor-
assistente na mesma escola por vários anos, fabrica a cachaça Gabriela, nome de sua filha, mas também assim denominada porque na época de escolher a marca estava em alta uma novela com esse nome.

Benedini, ainda se recuperando de grave acidente rodoviário, define sua pinga como artesanal e orgânica, porque a cana que planta não leva nenhum aditivo químico, o corte é manual, não há queima na colheita e não se lava a cana, que vai para a esteira, para o picotador e as moendas sempre uniformemente. O produtor diz que a melhor época para a moenda é agosto e setembro, mas decidiu fazer um plantio especial para colher em abril do próximo ano.

Ano passado, produziu 150 mil garrafas, mas não foi possível exportar porque, segundo ele, os intermediários querem ficar com a melhor parte, nem vender tudo no mercado nacional. É verdade que, pela alta qualidade, o consumidor precisa pagar mais caro pela sua pinga do que no mercado habitual. Vendida a granel (em vasilha levada pelo interessado), a garrafa custa entre R$ 4,00 (a branca) e R$ 6,00 (a amarela); na garrafa com marca e rótulo sai por até R$ 20,00. Agora falta capacidade de armazenamento, daí porque este ano a produção se limitou a 50 mil unidades, aguardando resposta de importadores. Os entendimentos se fazem com a Europa (Alemanha, França, Portugal), Japão e Estados Unidos.

“Onde aparecer comprador, vendemos”, diz.

Artesanal? O Ministério da Agricultura proíbe que o rótulo traga essa palavra, embora o permita nas cachaças fabricadas em Minas Gerais. Benedini protestou contra esse privilégio, mas não convenceu os técnicos do governo. Não é apenas essa aparente
discriminação que irrita o produtor; ele também não agüenta mais tantos impostos, queixando-se de que representam 82% do preço final.

Benedini vai expor sua cachaça numa feira no Ibirapuera, em São Paulo, no final deste mês. Não participa do concurso organizado pelo laboratório do professor Douglas Franco no Instituto de Química de São Carlos, em parte devido ao problema de locomoção (serve-se de muletas), mas considera extraordinariamente importante o trabalho de pesquisa e melhoramento da aguardente, “o uísque brasileiro”. Ele mesmo prefere tomar a pinga pura, branca, mas não deixa de ter no pomar pés de limão, “para a caipirinha”.

Gabriela sai tanto de alambique de cobre como de coluna, “modificada por orientação de professores”. Tudo é grande na unidade de produção: dornas de 25 mil litros, barris de 50 mil e 75 mil, unidades menores, de várias espécies de madeira, de carvalho importado a jequitibá, amendoim, bálsamo e imburana. E acima de tudo muita higiene. Certamente fator que impressiona as dezenas de comitivas nacionais e estrangeiras que costumam visitar a fazenda todo ano, por interesse científico
ou comercial.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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