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Mais do que nunca, o desenvolvimento é uma ferramenta insubstituível e de primeiro plano no debate do futuro. Porém, é preciso dar-se conta de que, para que ele ocorra no século 21, o caminho será muito diferente daquele trilhado nas últimas décadas. A idéia foi defendida pelo socioeconomista Ignacy Sachs na palestra “Como pensar o desenvolvimento no século 21?”, realizada no dia 23 de outubro na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, sob a coordenação do professor Ricardo Abramovay. “Estou disposto a limitar o conceito de desenvolvimento à adequação a soluções triplamente positivas, que levem em conta os impactos sociais, os impactos ambientais e a viabilidade econômica”, afirma Sachs, para quem as combinações de apenas dois desses fatores podem ter conseqüências catastróficas.

Sachs iniciou sua análise situando o período entre 1945 e 1975 como a “idade de ouro” do capitalismo: o sistema se firma e muitos países registram altas taxas de crescimento e alcançam resultados sociais consideráveis. Como fruto do final da 2a Guerra Mundial, o planeta se divide em dois blocos, um capitaneado pelos Estados Unidos e outro pela União Soviética, dando início à Guerra Fria. O bloco socialista também alcança resultados econômicos e sociais importantes em vários países, influenciando a opinião pública na Europa Ocidental, onde os partidos comunistas atingem votações expressivas e ampliam seu papel no cenário político.

O início da década de 1970 concentra acontecimentos que mudariam radicalmente o cenário. No episódio da Primavera de Praga, em 1968 – quando os soviéticos reprimiram duramente o movimento por reformas na Tchecoslováquia –, o chamado socialismo real começa a sua derrocada, que será concluída com a queda do Muro de Berlim, em 1989. “Na sua primeira etapa, o socialismo real se mostra capaz de produzir grandes mobilizações em torno da reconstrução dos países da Europa Oriental, mas não soube sair para um movimento mais intensivo em outras direções e começou a perder o fôlego”, avaliou Sachs.

foto: Cecília Bastos
Ignacy Sachs na USP: “Temos que encontrar
um caminho novo”

Adjetivos – O capitalismo, por sua vez, se defronta com a grande crise de energia e de petróleo em 1973. Recessão, inflação e desemprego são conseqüências que atestam o clima de “fim de festa”. A “idade de ouro” assiste também à maior transformação da geopolítica global em tempos de paz, alimentada por fatores como a própria Guerra Fria, a descolonização da África, a independência da Índia e o surgimento do movimento dos países não-alinhados, colocando em cena a voz do Terceiro Mundo. A “ressaca” do início dos anos 70 coincide com os primeiros alertas de alcance mundial sobre a necessidade de preservação do ambiente, deixada de lado com a corrida pelo desenvolvimento e pelo crescimento econômico. As Nações Unidas convocam a primeira Conferência sobre Meio Ambiente em 1972, em Estocolmo.

Sachs estava lá, como um dos participantes do seminário que antecedeu e preparou a conferência na Suécia. Socioeconomista nascido em Varsóvia em 1927 e naturalizado francês, especializou-se em problemas do desenvolvimento econômico e em questões ambientais. É também Professor Emérito da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, na qual ingressou em 1968. O pensador viveu durante 14 anos no Brasil, onde se formou pela Faculdade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, e doutorou-se na Universidade de Nova Delhi, na Índia. É autor de mais de 20 livros, entre eles Capitalismo de Estado e subdesenvolvimento (Vozes, 1969) e Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir (Vértice, 1981).

Os debates pré-Estocolmo se concentravam em dois pontos de vista opostos: um lado defendia que era preciso frear o desenvolvimento a qualquer custo, sob pena de a humanidade perecer por escassez de recursos naturais ou por excesso de poluição. A tese era rechaçada pelos países pobres, que viam na argumentação um pretexto para impedir o seu avanço. Foi preciso criar uma terceira via. “Estocolmo modifica completamente a idéia de desenvolvimento. O conceito se complexifica e nos obriga a sair do reducionismo econômico”, disse Sachs. “É preciso colocar adjetivos ao lado dessa palavra, porque não dá mais para ignorar o social, o cultural, o ambiental.” Essa terceira posição defendia que não era possível renunciar ao desenvolvimento frente a tamanhas diferenças sociais e econômicas entre os países. Nasce aí a idéia do desenvolvimento sustentável, pela qual é preciso continuar crescendo, porém com mudanças na forma do crescimento e na partilha dos frutos que ele gera.

Coragem – A legitimação da proposta vem na Eco-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, da qual Sachs foi consultor especial. Um ganho importante foi transformar um tema até então marginal em preocupação de governos. Porém, avaliou Sachs, infelizmente o apoio popular e a onda a favor da preservação não foram bem aproveitados, e não houve avanços significativos na adoção de políticas globais em favor do ambiente, como provam as tímidas metas estabelecidas pelo Protocolo de Kyoto – que, mesmo muito aquém do que seria necessário para frear a acelerada degradação ambiental, são rechaçadas pelo maior poluidor do planeta, os Estados Unidos. Esse refluxo da onda ambientalista coincide com a “contra-reforma” do capitalismo e a onda neoliberal do final do século passado.

Para Sachs, o século recém-encerrado sepultou vários paradigmas, entre eles o socialismo real, o Consenso de Washington e até a social-democracia européia, que também disse um “sim” irrestrito à economia de mercado. No século 21, três são os desafios fundamentais. Na área ambiental, é preciso enfrentar as mudanças climáticas e promover o fim da dependência da energia fóssil. Também é preciso libertar-se da geopolítica explosiva do petróleo e suas constantes guerras (vide Iraque na atualidade e tensões com o Irã).

Na área social, o problema mais sério é o déficit de emprego decente, que atinge cada vez mais seres humanos. A reversão desse quadro é complicada por fatores como a impossibilidade de repetir a profunda mudança do mundo agrário para o urbano verificada principalmente a partir da Revolução Industrial. “Nos séculos 19 e 20, 90 milhões de europeus imigraram para a América. Hoje teríamos que inventar lugar para milhões de camponeses chineses e indianos”, disse Sachs. As indústrias, que anteriormente geravam emprego, hoje não o fazem mais. “Não vejo como evitar o debate sobre um novo ciclo de desenvolvimento rural no século 21”, afirmou. Situações que tiveram lugar no século 20 não servirão de modelo, repetiu. “Temos que ter a coragem e a ambição de encontrar um caminho novo a partir da análise crítica dos paradigmas falidos deste último meio século”, defendeu o pensador.



“Mercado precisa ser regulado pelo Estado”

A seguir, algumas idéias de Ignacy Sachs, expostas em sua palestra na FEA.

“O desenvolvimento sustentável exige o Estado-ator, seja grande ou pequeno. Não dá para deixar o processo exclusivamente nas mãos do mercado. O mercado é míope e insensível aos problemas sociais e ambientais. Precisa ser regulado e isso requer o Estado.”

“O crescimento não é suficiente para promover o desenvolvimento, mas sem o primeiro não se chega ao segundo. É extremamente difícil remodelar a repartição de renda com o crescimento em marcha, quanto mais com a economia estagnada.”

“Temos que ter outra distribuição primária da renda, o que se faz essencialmente com política de emprego. É preciso que existam políticas públicas para isso. Os serviços sociais também geram emprego com investimentos em saúde, educação, saneamento, habitação popular, construção civil, obras públicas etc.”

“O emprego rural não está só na agricultura. O aumento da renda dos agricultores familiares gera efeito multiplicador no consumo de outros produtos e na demanda de serviços de toda ordem.”
“Discordo de que a produção em pequena escala não possa ser competitiva. Cem pequenos produtores que criam uma cooperativa geram escala. A boa produção de qualidade de produtos artesanais resiste e resiste bem. A França é um exemplo claro disso.”

“Para enfrentar o mercado, é preciso organizar os pequenos. Deve haver políticas públicas nacionais e internacionais voltadas para eles – é o tratamento desigual para os desiguais. Não faz sentido só jogar alguém no mercado sem apoio: é preciso prover um feixe de políticas de apoio complementares, senão os pequenos não têm como competir.”

“O primeiro passo para a civilização da biomassa é substituir o combustível fóssil por outras fontes, como biocombustíveis e energia solar. Biomassa não é só agroenergia: é alimento, ração animal, adubo verde, matéria-prima industrial, de construção, fármaco e química. O Brasil é o país que tem as melhores condições no mundo para avançar na civilização da biomassa e passar à frente dos desenvolvidos. Depende das medidas que começar a adotar desde já.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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