Ademocracia ateniense não
demorou mais que um século
para se contaminar por interesses pessoais, de origem principalmente
econômica, quando a cidade cresceu e o comércio se
expandiu. Sócrates (470-399 a.C.), Platão (428-347
a.C.) e outros filósofos gregos não gostaram disso
e foram logo condenando o regime que deixava em segundo plano os
interesses da coletividade. Os tempos passaram e a democracia adquiriu
outros vícios, a ponto de o professor de filosofia da USP
Franklin Leopoldo e Silva dizer que não há mais democracia
no sentido real, mas “um sistema de gerenciamento da economia
que, longe de ser dirigido pelo povo ou pelos representantes do
povo, é dirigido pela comunidade econômica nacional
e internacional”. Seria uma ditadura econômica dentro
da democracia formal que, embora mantenha a divisão de poderes,
eleições e outras formalidades, não dá valor à opinião
do indivíduo e muito menos à de seu representante
no Congresso, já comprometido com o sistema. “O sistema é mais
forte que qualquer agremiação política, pois
o partido que aspira ao poder pode fazer oposição
a outro partido, mas não pode se opor ao sistema. Se o fizer
será excluído do jogo.”
Nesse contexto foi eleito para o segundo mandato o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva que, na opinião do professor
do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, terá forçosamente que se
submeter ao sistema. No entanto, poderá também usar
a força política que lhe deram os 60,83% dos votos
válidos do segundo turno para tomar algumas medidas de caráter
social destinadas a diminuir a desigualdade entre pessoas e regiões.
Mas o presidente não pode se esquecer que se trata de um
jogo de força com as elites e que não foi só o
voto que lhe permitiu se manter no poder, mas o próprio
sistema.
Leopoldo e Silva prevê que Lula enfrentará no segundo
mandato os mesmo problemas de relacionamento com o Congresso Nacional
que teve nos primeiros quatro anos, uma vez que a renovação
parlamentar ficou bem abaixo do que os analistas previam e o ambiente
de denúncias continuará o mesmo. Nem uma reforma
do sistema político resolveria grande coisa. “Mudar
as regras, impedir, por exemplo, que o parlamentar mude de partido
no exercício do mandato, adiantaria pouco, pois sempre haverá um
jeito de burlar a lei.”
Em vez de reforma política, afirma o professor, é preciso
encontrar um meio de mudar o caráter da representatividade
parlamentar, vinculando mais estreitamente o eleito ao eleitor.
Como está hoje, senadores e deputados não costumam
ter compromissos com quem os elegeu, pois na campanha já se
comprometeram com aqueles que os ajudaram financeiramente, e serão
cobrados por isso. Talvez a adoção do voto distrital
pudesse ajudar na aproximação entre eleito e eleitor,
mas o professor não tem certeza disso. Também não
vê com entusiasmo o mecanismo adotado em outros países,
como os Estados Unidos, da “deseleição” do
representante que não tiver desempenho satisfatório,
o recall dos americanos, argumentando que o recurso poderia desestabilizar
o sistema, além de ser aplicado apenas em casos excepcionais.
Não é por aí, pondera o professor. A sociedade é que
tem que se organizar e pressionar, pois governo e Congresso, como
a boa panela, só funcionam sob pressão. Como pressionar?
Não diretamente, mandando milhões de pessoas para
Brasília, mas por meio de entidades representativas, sindicatos,
reivindicações de grupos, movimentos organizados.
De acordo com o professor, a sociedade está mesmo precisando
de organização e de lideranças, pois, até a
chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder, tinha no PT a principal
referência. “A eleição do presidente
da República pelo PT desmobilizou os movimentos sociais
e está difícil reorganizá-los. O partido era
o seu braço, resta a perplexidade.” Esse sentimento
ficou patente nas últimas eleições, quando
os movimentos, meio desorganizados, hesitavam entre apoiar ou não
apoiar a candidatura Lula. Resultado: agora precisam se desvincular
do PT e tocar a luta por conta própria.
Também aí Leopoldo e Silva aponta certa contradição:
se é certo que no segundo mandato o presidente Lula não
pode repetir as negociações meio escusas que levou
adiante no primeiro governo com os partidos e o Congresso Nacional,
e se é certo também que o movimento popular precisa
compensar a falta de ação dos parlamentares, como
admitir que alguém pressione aquele que foi legalmente eleito
pelo próprio povo? Força política – No sistema democrático,
uma coisa é a legitimidade de um governante, outra, a sua
força política. A legitimidade formal é dada
pela vitória ainda que seja por um só voto; o que
faz a diferença, explica Leopoldo e Silva, é a popularidade
do candidato, que em geral determina que ele tenha muito mais votos
que o oponente. O excedente de votos é a força política,
que dá ao eleito o apoio necessário para formular
políticas públicas que podem até se chocar
com os interesses do sistema. Assim se explicam muitas das decisões
de governantes latino-americanos como Evo Morales, da Bolívia,
e Hugo Chávez, da Venezuela, que apoiados na legitimidade
real e na força política real desafiam o sistema
tradicional. No caso de Lula, segundo o professor da FFLCH, conserva
a força política do primeiro mandato, “embora
um pouco comprometida com o susto que levou no primeiro turno (quando
não alcançou a maioria dos votos válidos)
e o fez procurar novas alianças e ligações
partidárias”. Então, ficou assim: de um lado,
a força advinda do voto; de outro, os limites dessa força
em conseqüência dos compromissos que teve de assumir
para vencer no segundo turno. Lula comprometeu-se, por exemplo,
com o PMDB, um partido forte no Legislativo e que poderá cobrar
a sua parte quando da formação do novo Ministério.
Por mais votos que Lula tenha obtido este ano – conseguiu
a maior porcentagem da história política brasileira
desde 1945, quando Eurico Gaspar Dutra obteve 55,18%; Getúlio
Vargas (1950), 48,9%; Juscelino Kubitschek (1955), 38,74%; Jânio
Quadros (1960), 48,26%; Fernando Collor (1989), 49,94%; Fernando
Henrique Cardoso (1994), 54,27% e (1998) 53,06%, sendo superado
apenas por ele mesmo em 2002, com 61,3% –, há um setor
que, na opinião do professor Leopoldo e Silva, o presidente
da República não terá condições
de contrariar: os bancos. “Eles têm a força
do sistema, que é maior do que a do voto.” Esse tema,
observa, quase não foi tocado durante a campanha eleitoral. “Os
bancos não vão abrir mão de um centavo. Os
nacionais e muito menos os internacionais.” Não é à toa
que um dos agentes financeiros teria dito que na sua área
qualquer candidato estava bom, uma vez que “o sistema está estável”.
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Mais sensatez na educação
A educação deve ser levada a sério em qualquer
governo sério, mas no Brasil o assunto tem pouco apelo popular,
lamenta Leopoldo e Silva: “Vivemos em um sistema gerenciado
pelo critério econômico. O povo presta mais atenção
no bolso e não faz a ligação entre economia,
vida pessoal e educação, que é básica
para tudo”. Um dos entraves para o aprimoramento do sistema
educacional, segundo ele, é a falta de autonomia do MEC,
pois é sabido que todo projeto renovador na área
da educação depende da liberação de
recursos pelo Ministério da Fazenda, e sempre acaba ficando
em segundo plano. Essa prática acaba impondo às pessoas
o caráter secundário da educação e
a prova disso é a fraquíssima receptividade que um
candidato a presidente da República, Cristovam Buarque (PDT),
obteve ao basear seu programa de governo na educação.
O eleitor parece não ter percebido que as políticas
sociais estão todas interligadas.
Leopoldo e Silva admite que no primeiro mandato o presidente Lula
fez pouco em matéria de política social, “mas
os outros não fizeram nada”. O problema das cotas
foi bem debatido e houve esforço para aprimorar a avaliação
do ensino.
Repousa no Congresso Nacional, para discussão e aprovação,
o Fundeb (Fundo da Educação Básica), enquanto
se desenvolve o programa Universidade
para Todos (ProUni).
No pouco que foi feito de bom, o professor destaca
a contribuição das universidades públicas
paulistas, de onde saíram os ministros Fernando Haddad (USP),
atual, e Paulo Renato (Unicamp), do governo Fernando Henrique Cardoso. “Eles
contribuíram para
colocar sensatez na
política de educação.” |