Na pele de Clara, personagem da novela Páginas da vida,
da Rede Globo de Televisão, uma menina com síndrome
de Down vivencia o preconceito da escola e o despreparo de professores
para lidar com sua deficiência. A mãe, interpretada
pela atriz Regina Duarte, não se conforma com a exclusão
da filha e sai em busca de escolas adequadas. Do lado de cá da
telinha, a vida real repete as dificuldades vivenciadas pelas personagens.
Alunos com necessidades educacionais especiais, incluindo crianças
deficientes, com déficit de atenção, hiperativas
ou com QI (quoeficiente de inteligência) acima da média,
acabam sendo um desafio para escolas e professores. Falta de formação
acadêmica, dificuldade de comunicação e de
adaptação curricular e insegurança são
as principais queixas dos professores que se vêem diante
de alunos com deficiências como surdez, paralisia cerebral,
autismo, dislexia e síndrome de Down.
Em outubro passado, o juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara
Cível de São Paulo, entendeu que uma escola particular
tem o direito de recusar a matrícula de uma criança
deficiente e deu ganho de causa à ré – a Nova
Escola, na Vila Mascote, zona sul da capital –, que argumentou
não estar preparada para lidar com alunos com necessidades
especiais e recusou a matrícula de uma menina com síndrome
de Down. Na ocasião, o juiz argumentou que é dever
do Estado, e não da rede particular, atender os estudantes
com deficiência.
O drama vivido pela família que perdeu a causa na Justiça é similar
ao vivido pela mãe de Clara, na novela. E se repete não
só por preconceito, mas por falta de estrutura das escolas
e de conhecimento especializado dos professores.
Em Bauru, duas ações realizadas por equipes da USP
vêm colaborando para a capacitação de professores
de crianças com deficiências. A primeira iniciativa é de
profissionais do Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais, o Centrinho, e de sua fundação de
apoio, a Funcraf (Fundação para o Estudo e Tratamento
das Deformidades Craniofaciais). Desde 1994, as equipes do Centrinho
já capacitaram 899 professores da rede pública e
privada, com cursos específicos para lidar com alunos deficientes
auditivos. A ação tem a parceria da Diretoria Regional
de Ensino e da Secretaria Municipal de Educação.
O segundo passo para a capacitação de professores
do ensino regular foi dado pelo Departamento de Fonoaudiologia
da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP. Numa iniciativa
inédita na cidade, docentes da faculdade ofereceram cursos
de aperfeiçoamento e difusão para professores do
ensino fundamental com foco na inclusão de alunos com algum
tipo de deficiência. Em três cursos, oferecidos entre
2004 e 2005, com carga horária total de 400 horas, 284 professores
passaram a entender melhor o universo da pessoa com deficiência.
No saldo final, considerando a turma que vai se formar neste mês
pelo curso de capacitação de professores de deficientes
auditivos, Centrinho e FOB somam juntos 1.183 docentes capacitados.
Superação – Pelo Centrinho, os cursos de capacitação
são oferecidos anualmente por profissionais que atuam em
duas unidades que cuidam especialmente de crianças e adolescentes
com diferentes graus de perda auditiva: o Cedau (Centro Educacional
do Deficiente Auditivo) e o Nirh (Núcleo Integrado de Reabilitação
e Habilitação). Com abordagens distintas – o
primeiro busca a oralização de crianças de
0 a 12 anos que usam aparelhos auditivos e o segundo desenvolve
atividades pedagógicas com crianças e adolescentes
surdos que têm a libras (língua brasileira de sinais)
como principal meio de comunicação –, as unidades
acumulam experiência de quase 16 anos de atuação
na área. “Nossa equipe tem o compromisso de multiplicar
os conhecimentos adquiridos entre os professores do ensino regular
com o objetivo de contribuir para a inclusão desses alunos”,
assegura a coordenadora das unidades, pedagoga Maria José Monteiro
Benjamin Buffa.
Conceitos básicos sobre deficiência auditiva, abordagens
educacionais para surdos, teoria sobre libras, desenvolvimento
da linguagem escrita e relatos de vida de adultos deficientes auditivos
são alguns dos pontos que compõem o conteúdo
programático desses cursos.
“No início, percebíamos uma resistência
muito grande por parte dos professores em aceitar e trabalhar com
alunos surdos, justificando não terem preparo para recebê-los
e indicando as salas especiais como lugar ‘próprio’ para
eles”, conta a pedagoga do Nirh, Valderes Elena Rodrigues da
Silva. “Tínhamos, então, o desafio da sensibilização
e eliminação de barreiras como o preconceito, a concepção
de deficiência, de surdez e de inclusão educacional,
para contribuir com conhecimento e estratégias próprias
da educação especial, que podem colaborar com a inclusão
do aluno surdo no ensino regular”, completa a pedagoga Maria
Elisabete Lima Neuenfeld, também da equipe do Nirh. Não
demorou muito para que os professores demonstrassem interesse.
Para a professora Tarlene Roberta Ribeiro, coordenadora pedagógica
da Escola Estadual Parque Jaraguá, os cursos de capacitação
dão noção de muitos aspectos que passavam
despercebidos. “Agora, temos outro olhar sobre o aluno. E
até repensamos o planejamento das atividades pedagógicas”,
afirma Tarlene. “Os cursos nos dão dicas de como melhorar
a relação com o aluno deficiente”, complementa
a professora Regina Célia Santos Nunes Barros. Regina é diretora
da Escola Estadual Parque Jaraguá, que funciona desde 2004
com 365 alunos, entre eles cerca de sete crianças com deficiência. “Temos
crianças com deficiência auditiva, com síndrome
de Down e deficiência mental em salas de aula”, conta.
Mas ela admite que a inclusão é um desafio constante.
Para Regina, que leciona há 17 anos, a complementação
de atividades em salas de recursos é fundamental para a
inclusão de fato. “Não adianta dizer que inclusão é apenas
socialização, afinal os próprios pais cobram
aprendizagem dos alunos. Por isso, é preciso haver um programa
pedagógico de acordo com o nível de desenvolvimento
da criança”, explica.
As professoras Regina, Tarlene
(a cima)
e Dionísia (abaixo) e os
cursos de capacitação dos
professores
de escolas
públicas e
privadas (mais abaixo):
treinamento oferece orientação ssegura para lidar
com uma difícil
questão na escola O programa pedagógico da escola Parque Jaraguá tem
obtido sucesso com os alunos. As professoras atribuem esse sucesso
ao fato de a escola ser relativamente pequena e a equipe de professores
ser muito empenhada. E os pais aprovam: “O rendimento escolar
de meu filho melhorou muito. Eu percebo que agora ele está aprendendo
mesmo”, conta Maria de Jesus Miguel Teixeira, mãe
de Daniel, 12 anos, estudante da terceira série do ensino
fundamental. “O Daniel apresenta deficiência mental
e está totalmente incluso em sala. Ele é participativo
e vem se desenvolvendo muito bem”, completa a professora
de Daniel, Maria Angélica de Carvalho Fraga, que leciona
há 22 anos.
Desafios – “Os professores têm boa vontade.
Mas ainda estamos distantes do ideal: a preparação
de todos”, afirma Tarlene, que leciona há 16 anos,
está sempre se atualizando e reconhece que ainda tem dúvidas
na hora de lidar com determinadas situações em sala
de aula. “Com o deficiente auditivo, a comunicação é o
grande obstáculo”, conta. “Mas, com dicas simples,
como olhar para o aluno e pedir que ele repita o que entendeu,
em vez de apenas perguntar se entendeu, conseguimos bons resultados.
E isso o curso do Centrinho nos ensina”, completa. “Ao
final do ano, percebemos que todo o esforço vale a pena.”
Os professores ouvidos pelo Jornal da USP são a favor da
inclusão. Mas relatam desafios diários que exigem
empenho e dedicação de escolas e professores. Iniciativas,
muitas vezes, que ultrapassam as portas abertas pelas propostas
formais de inclusão feitas pelo governo.
“Os professores não sabem como agir quando encontram
um aluno surdo ou que não fala ou ‘nunca entende’.
Já me deparei até com especialistas que ficam angustiados
diante da diferença, do desvio e da heterogeneidade. Reclamam
da escassez de instrumental teórico e demandam mais especialização
para compreender e avaliar cada caso ou situação atípica”,
relata a professora Vera Lúcia Lopes Dias, que trabalha no
Ines (Instituto Nacional de Educação de Surdos), no
Rio de Janeiro. Surda, ela conta que é procurada por pessoas
com diferentes tipos de deficiência e seus familiares, professores
e especialistas, emocionalmente fragilizados e desinformados diante
de suas dificuldades. “Freqüentemente os pais de meus
alunos no Ines, ao me procurar, demonstram estar inseguros diante
da fatalidade de um filho que nasceu desprovido da possibilidade de
ouvir ou de falar”, conta em seu site,
criado para disseminar informações sobre inclusão
das pessoas com deficiência.
Para a diretora da escola particular bauruense Cisne Real, Luciana
Graziato Cury Jacob, em geral, os professores não estão
preparados. “Falta orientação para que a teoria
possa, de fato, ajudar na prática. O dia-a-dia na sala de
aula é um desafio”, afirma. Ela defende que os professores
mantenham contato constante com profissionais especializados em
deficiência e inclusão. “Em nossa escola, para
lidar com essa diversidade, contamos muito com o suporte de especialistas
do Centrinho, por exemplo. Só assim caminharemos para a
inclusão de verdade”, conta. Mas ela reconhece que
esse é um esforço individual e que deveria haver
um estímulo formalizado para que todas as escolas fizessem
isso. Escolhas e decisões – Sobre a decisão do juiz
que deu ganho de causa à escola que recusou a matrícula
de uma criança com down, a professora é taxativa: “A
rede particular tem muito mais condições de lidar
com isso porque tem mais recursos e os professores têm muitas
chances de se reciclar e se aperfeiçoar”. Além
disso, Luciana ressalta que, especialmente para as crianças
com síndrome de down, a convivência com crianças
não deficientes é muito importante. “É fácil
dizer que não tem condições. Mas precisamos
buscar alternativas e aprender a ensinar essas crianças,
que não vêm com ‘manual’”, argumenta.
Com oito crianças deficientes num universo de 350 alunos
do ensino infantil e fundamental, a escola dirigida por Luciana
vem participando do sistema de inclusão e defendendo a proximidade
entre seus professores e equipes com larga experiência no
assunto. “Nosso objetivo é aumentar o compromisso
de nossos professores em nome da inclusão”, assegura.
Essa aproximação entre professores do ensino regular
e especialistas que atuam em instituições ou escolas
especiais também é defendida pela fonoaudióloga
docente do Departamento de Fonoaudiologia da FOB Dionísia
Aparecida Cusin Lamônica, uma das coordenadoras dos cursos
de aperfeiçoamento e difusão oferecidos pela USP
em Bauru. “Os alunos não podem simplesmente ser ‘colocados’ na
escola. Eles precisam ter suas necessidades educacionais completamente
atendidas. Nesse ponto, não podemos desprezar a experiência
de profissionais que trabalham anos na área de deficiência
com aquisição de conhecimento teórico e prático”,
argumenta, citando como exemplo positivo a atuação
da Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais)
de Bauru.
Nesse contexto, a fonoaudióloga defende a ação
conjunta de terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos
e pedagogos no suporte ao trabalho dos professores do ensino regular.
Sobre a estrutura das escolas, Dionísia lamenta a precariedade
da acessibilidade educacional e arquitetônica observada em
boa parte das escolas, além do preconceito que ainda costuma “dar
as cartas” em muitas das discussões e escolhas sobre
a inclusão da criança deficiente.
“Há crianças que chegam na clínica de
fonoaudiologia da FOB já na quarta série do ensino
fundamental sem saber reconhecer a letra do próprio nome.
Isso é inclusão?”, questiona. Para ela, o importante é encontrar
o local mais adequado para o desenvolvimento das potencialidades
e conhecimentos das crianças com necessidades educacionais
especiais. “Em alguns casos, a criança é mais
beneficiada se for matriculada em escolas como a Apae, mas o preconceito
com escolas especiais acaba interferindo nessas decisões”,
relata. “É por isso que defendemos estruturas que ofereçam
condições de aprendizado real, independentemente dos
rótulos atribuídos a esta ou àquela instituição
de ensino”, conclui.
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