Quando se fala em censura e no seu histórico, algumas
das referências imediatas dizem respeito a episódios
bizarros – como quando, durante a ditadura militar, expediu-se
uma ordem para prisão do autor da peça Electra,
considerada subversiva. O detalhe é que o grego Sófocles
havia morrido quatro séculos antes de Cristo. “A
censura não é aleatória nem ingênua.
Suas objeções não são apenas risíveis,
mas planejadas, fruto da ação subordinada aos órgãos
policiais”, alerta Maria Laet, mestranda da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP. “Há muita avaliação
esperta e inteligente”, diz. Maria é uma das pós-graduandas
que realizam pesquisas a partir do material do Arquivo Miroel
Silveira, que reúne milhares de textos teatrais submetidos
aos órgãos de censura oficiais entre as décadas
de 1930 e 70 (leia texto na página ao lado) e está sob
a custódia da ECA.
O projeto temático “A cena paulista – Um estudo
da produção cultural de São Paulo”,
coordenado pelas professoras Maria Cristina Castilho Costa, Mayra
Gomes e Roseli Fígaro, foi o responsável pela realização,
na ECA, do seminário internacional “A censura em
cena: interdição e produção artístico-cultural”,
entre os dias 25 e 27 de outubro. Os debates reuniram professores,
diretores, autores e estudantes e demonstraram que a preocupação
com a censura não deve se restringir apenas ao estudo
do que já aconteceu, mas do que segue acontecendo. “O
livro Na toca dos leões, de Fernando Morais, recentemente
foi retirado de circulação por ordem judicial”,
lembra a professora Cristina Costa.
As pesquisas no Arquivo Miroel Silveira têm permitido várias
conclusões. “Existe a censura das ditaduras, mas é espantoso
saber que foi na década de 50, entre a ditadura de Vargas
e a dos militares, que houve mais intervenção da
censura”, afirma. Uma das razões para isso, diz
a professora, é que esse período marcou a transição
de um teatro de puro entretenimento para uma dimensão
mais reflexiva. Ao mesmo tempo, como registra a historiadora
Beatriz Kushnir, “os censores eram expressão da
parcela da sociedade que os queria”. De fato, os representantes
dos órgãos oficiais recebiam muitas cartas a favor
da censura.
“A censura é tão velha quando a vida, o que
muda é quem tem a caneta. Ao longo da história
houve diferentes ‘donos’, que foram papas, reis,
ditadores, tiranos e outros”, lembrou na palestra de abertura
do seminário a professora, dramaturga e poeta Renata Pallotini.
Renata teve uma peça proibida já em 1964, ano do
golpe militar no Brasil. O crime da cabra era uma farsa sobre
uma cabra que comia o dinheiro destinado à compra de um
imóvel, mote usado para discutir o direito à propriedade.
Mais tarde, foi proibido seu texto Enquanto se vai morrer, que
trata de morte e tortura, e nasceu a partir da experiência
e da formação de Renata em Direito. Em 2002, a
peça foi encenada, pela primeira vez, nas escadarias da
Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco.
Apesar dos episódios tensos que viveu, Renata usou também
de bom humor para relatar experiências como a de Leilah
Assunção, que negociou com os censores para trocar
três palavrões diferentes, que foram vetados num
texto, por apenas um, utilizado nas três falas. “Toda
repressão acaba por gerar atitude contrária, que às
vezes é mais ofensiva ao moralismo repressivo”,
disse a autora. “Ninguém valorizou tanto a dramaturgia
brasileira como a censura. Consuelo de Castro dizia que, se escrever
cenas tivesse o poder que a censura pensava, a democracia teria
voltado muito antes.”
Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares:
ao fim das ditaduras, censores se tornam democratas
Democratas – Para Renata Pallotini, é necessário
manter a vigilância em relação a todas as
formas de tolher o pensamento. “O que podemos fazer hoje é estar
permanentemente em guarda contra seja quem for, venha de onde
vier, que queira tirar a liberdade que nos custou tanto e custou
tanto a nossos companheiros sacrificados”, defendeu. Por
sua vez, o ator, escritor e dramaturgo Isaías Almada alertou
para o que chamou de “terrorismo midiático”,
que procura “impor um pensamento único intimamente
ligado a uma ideologia neoliberal e consumista, que nos coloca
a ponto de duvidar de nossa própria consciência”.
Para o escritor, que também sofreu perseguição
na ditadura, “essa é uma forma de censura tão
ou mais terrível do que aquela que ocorre a partir da
figura do repressor, que identifica a repressão. A autocensura
política, econômica e social, que permeia o cotidiano,
não tem rosto.”
“A cultura da censura é algo que permanece nas sociedades
para além de períodos ditatoriais”, afirmou
o jurista português Alfredo Caldeira, que dirige os arquivos
da Fundação Mário Soares. “Terminados
esses períodos, os censores voltam a ser democratas”,
completou. Caldeira fez um relato do período ditatorial
de António de Oliveira Salazar, que assumiu o comando de
Portugal a pedido dos militares que deram o golpe de maio de 1926.
Menos de um mês depois, o novo regime, num de seus primeiros
decretos, estabelecia a censura à imprensa. Salazar – que
não era militar, mas sim professor universitário
e, ao contrário do “figurino” tradicional dos
ditadores, era avesso a multidões, fiel a um estilo que
incluía austeridade, misantropia e celibato – só deixou
o poder em 1968, vítima de um derrame, e morreu em 1970.
Em Portugal, já na década de 1920, o jornal Diário
de Lisboa deixava em branco as colunas de texto cortadas pelos
censores. Mais tarde, os espaços em branco passaram a
ser cobertos com receitas culinárias, recurso que o jornal
brasileiro O Estado de S. Paulo utilizaria décadas depois.
As emissoras de rádio possuíam uma linha direta
com os órgãos policiais, enquanto as televisões
foram proibidas de fazer transmissões ao vivo: toda a
programação era gravada para que pudesse ser avaliada
antes de ir ao ar. “As emissoras criaram a sua própria
estrutura de censura”, disse Caldeira.
Com o afastamento de Salazar, Marcello Caetano assumiu o poder
e novas normas foram impostas. Uma delas proibia que as empresas
de comunicação dissessem que seu conteúdo
passava por verificação de órgãos
do governo. “Antes disso, todos os jornais eram obrigados
a estampar o selo da censura. Depois disso, não podiam
mais dizer que ela existia”, relatou a professora Ana Maria
Cabrera, professora do Instituto de Estudos Jornalísticos
da Universidade de Coimbra. Esperava-se que Caetano, bom comunicador
e que aparecia em fotos rodeado pela família, abrandasse
a censura, mas não foi isso que aconteceu. Portugal estava
mergulhado em séria crise provocada pelas guerras de independência
das colônias africanas desde os anos 60. O auge da Guerra
Fria também fez aumentar o combustível das fogueiras
anticomunistas do regime. Como resultado, a repressão
e as prisões políticas eram cada vez mais freqüentes.
No teatro, “chegou-se ao ponto extremo de os autores portugueses
não terem hipótese nenhuma de ser encenados”,
contou Luiz Francisco Rebello, dramaturgo, historiador, ensaísta
e crítico profundamente ligado ao teatro português
desde a década de 1940. “Na antepenúltima
temporada teatral anterior à queda do regime, foram autorizadas
apenas três peças de autores portugueses. Na seguinte,
uma; e na última (1973-1974), nenhuma. A última
peça a ser proibida pela censura foi o Auto da barca do
inferno, de Gil Vicente, considerado subversivo”, revelou
o professor.
Tortura – A ditadura portuguesa, que
nascera sob a inspiração
do nazifascismo das primeiras décadas do século
20, só cairia com a Revolução dos Cravos,
em 25 de abril de 1974. Para a professora Ana Cabrera, “a
situação de estar sujeito a censura por 48 anos,
somada aos 250 anos da Inquisição em Portugal,
tem efeitos na consciência das pessoas até hoje”.
Entre os “sintomas” que identifica, estão
o medo de emitir opiniões, sobretudo em política;
uma certa apatia e falta de frontalidade e de comprometimento,
tanto pessoal quanto profissional e coletivo. “A ascensão
dos totalitarismos está associada a necessidades do povo”,
disse, lembrando que os militares subiram ao poder depois do
caos da chamada Primeira República, instaurada em 1910. “Foram
quinze governos, outros tantos presidentes e várias tentativas
de restauração da monarquia. Portugal entrou na
Primeira Guerra Mundial em 1916 e destruiu seus alicerces econômicos.
O povo estava mal, passava fome e procurava um salvador, que
era Salazar.”
Para a professora Cristina Costa, um dos melhores resultados
do seminário foi justamente poder comparar procedimentos
e preocupações nos dois países. “Nossa
censura se espelhou em Portugal, mas foi menos nefasta naquilo
que os autores e produtores conseguiram driblar ou negociar.
Ficou muito clara a diferença na semelhança”,
considera.
O destaque a pontos específicos da censura no Brasil
ficou a cargo de pesquisadoras como Adriana Florent, professora
da Universidade de Paris VIII, na França, e Beatriz Kushnir.
Adriana centrou sua explanação no caso do escritor
Graciliano Ramos, preso entre março de 1936 e janeiro
de 1937, durante o governo de Getúlio Vargas. Da experiência
resultaria, dez anos depois, o livro Memórias do cárcere. “A
prisão é o ponto máximo da censura, quando
se usa o encarceramento e a tortura visando a impedir a criação
intelectual e artística”, disse. Para Adriana, com
a influência do fascismo e do nazismo na América
Latina, a tortura passou da escala artesanal para a industrial. “Mais
do que fazer falar, seu objetivo é fazer calar.”
Já Beatriz Kushnir lembrou que, ao longo da história
brasileira, a censura foi exercida por intelectuais como Machado
de Assis, Vinícius de Morais e Prudente de Moraes Neto.
Beatriz é autora do livro Cães de guarda – Jornalistas
e censores: do AI-5 à Constituição de 1988,
lançado pela Editora Boitempo em 2004 a partir de sua
tese de doutorado defendida na Unicamp. O livro causou desconforto
em muitas redações, pois demonstra que nem todos
os jornalistas resistiam à ditadura militar. “Houve
jornalistas que colaboraram, os que resistiram e os que se opuseram.
Não é verdade que todos colaboraram, mas nem todos
combateram a ditadura”, disse Beatriz, contradizendo a
fama de arautos da democracia que muitos órgãos
de imprensa vêm cultivando desde os anos 80. “A Folha
da Tarde, do Grupo Folha, tinha policiais ligados à repressão
que trabalhavam como repórteres. Ela era conhecida como
o ‘Diário Oficial da Oban’ (Operação
Bandeirantes) e ‘jornal de maior tiragem do País’,
pela quantidade de tiras”, afirmou.
A historiadora lembrou uma das normas anunciadas por Armando
Falcão, ministro da Justiça durante o regime militar,
e adotada como lema por Solange Hernandes, diretora da Divisão
de Censura e Diversões Públicas nos anos 70 e conhecida
como “dama de ferro” da censura: “Preciso preservar
o outro da tentação de ver”. É o oposto
do que pergunta a professora Cristina Costa: “A quem delegar
o poder de dizer o que se pode apresentar ao público?”.
Para ela, a resposta cabe à própria sociedade. “O
público tem o direito de julgar, refletir e escolher.
Os autores e artistas devem responder pelo que criam e fazem,
mas o público não pode ser excluído desse
processo de análise.”
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Projeto estuda a censura,
de Vargas aos militares
O projeto temático “A cena paulista – Um estudo
da produção cultural de São Paulo a partir do
Arquivo Miroel Silveira” vem sendo desenvolvido desde o início
de 2002 por uma equipe da Escola de Comunicações e
Artes (ECA) da USP coordenada pela professora Maria Cristina Castilho
Costa. O material é composto por 6.148 processos abertos para
censura prévia dos espetáculos a serem apresentados
no Estado de São Paulo entre os anos de 1927 e 1968. É um
período que vai da criação do Departamento Estadual
de Imprensa e Propaganda (Deip), no governo Vargas, até a
incorporação da censura pela Polícia Federal.
Além das informações acerca do espetáculo,
os processos contêm os originais das peças, alguns deles
inéditos, e documentos como requerimento para avaliação,
certificado de censura e autorização da Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais (Sbat).
O rico acervo – cujo nome homenageia Miroel Silveira, que foi
professor da ECA e lutou para que as peças fossem transferidas
dos órgãos de segurança pública para
a USP depois do fim da Censura Federal, em 1988 – tem propiciado
a realização de vários trabalhos. Atualmente,
são cerca de 25 pessoas, entre professores e bolsistas de
iniciação científica e de pós-graduação,
que se debruçam sobre os processos, abordando diferentes aspectos
com múltiplos enfoques e metodologias. Vários desses
bolsistas tiveram a oportunidade de falar sobre o seu trabalho durante
o seminário.
“O projeto faz parte da biblioteca, mas tem vida própria”,
salienta Bárbara Leitão, ex-diretora do setor e doutoranda
que pesquisa a relação de poder de Estados autoritários
e acervos de livros. Em sua intervenção, Bárbara
citou o ditador espanhol Francisco Franco, que chegou a dizer, em
1938, que era um “caso de saúde pública” fazer
desaparecer determinados acervos das bibliotecas públicas,
como livros socialistas e comunistas.
Os levantamentos no Arquivo Miroel Silveira têm propiciado
que se encontrem quais as palavras ou expressões foram mais
vetadas pelos censores. Referências sexuais, mais ou menos
veladas, foram proibidas em peças como Os maridos de hoje
(1929), que teve as seguintes palavras censuradas: “Sua filha
perdeu... Como direi? Perdeu o... juízo!”. Numa montagem
de 1960 de A escrava Isaura, foi proibida a frase “Meu sogro,
homem sem escrúpulo, lançou os olhos cobiçosos
sobre a linda mulata”.
Um exemplo de corte por razões políticas está no
texto Dar corda para se enforcar (1934), em que teve que ser suprimida
a frase “mas a revolução de 32 fez-me levantar
a cabeça”. Em outros momentos, as determinações
parecem incompreensíveis, como na peça Ressonar sem
dormir (1931), da qual se exigiu a retirada da palavra “padre”.
Outros frutos já visíveis do trabalho são os
livros Censura e comunicação – O circo-teatro
na produção cultural paulista de 1930 a 1970 e Censura
em cena – Teatro e censura no Brasil, lançados durante
o seminário. Censura em cena, de autoria da professora Cristina
Costa e publicado pela Editora da USP (Edusp), com apoio da Fapesp
e da Imprensa Oficial, traz o resultado dos três primeiros
anos do projeto. O livro tem prefácio do ator e diretor Gianfrancesco
Guarnieri, recentemente falecido, e conta com grande material fotográfico
obtido no Centro Cultural São Paulo e no jornal Folha de
S. Paulo.
Já o volume sobre o circo-teatro – um tipo de espetáculo
montado em palcos atrás dos picadeiros, em pavilhões
e outros espaços e que alcançou grande popularidade
em São Paulo, especialmente na década de 1940 – possibilitou
uma grande descoberta do projeto. “O trabalho mostra um outro
lado do circo-teatro, não apenas como local de lazer, mas
também como espaço de formação artística,
divulgação – já que poucas cidades do
interior tinham teatro – e formação técnica”,
diz Cristina Costa. “O circo-teatro foi também um dos
responsáveis pela profissionalização das atrizes,
pois havia muito preconceito contra mulheres que queriam atuar. Algumas
autoras também surgiam em famílias circenses adaptando
contos, romances e filmes para o circo-teatro”, afirma a professora.
Nomes como Carmen Miranda e Plínio Marcos passaram por esses
palcos.
Como fazia muitas paródias de temas da realidade – governantes,
carestia, a guerra etc. –, o circo-teatro era também
muito visado pela censura. Entretanto, a atuação dos
homens da caneta vermelha (a cor para os canetaços foi definida
por decreto) era dificultada porque havia muita interação
dos artistas com o público, e o censor não tinha certeza
se o que havia lido era o que realmente seria dito no espetáculo.
Além disso, as companhias eram itinerantes, e os censores
não acompanhavam as viagens. “Um artista da época
conta em entrevista no livro que eles sabiam o que não podiam
falar, e o limite era dado pela reação do público. É uma
prova de que é possível confiar no público para
que crie seus próprios critérios, desde que o contato
com a obra seja permanente e o artista esteja aberto”, diz
a professora.
Muitos técnicos do circo-teatro migraram para o rádio
e a televisão a partir dos anos 50, assim como artistas que
se tornaram grandes atrações de audiência, como
Waldemar Seyssel (Arrelia), George Savela Gomes (Carequinha), Brasil
João Queirolo (Torresmo) e Albano Pereira Neto (Fuzarca).
A concorrência desleal com o chamado “circo eletrônico” da
telinha, como define o diretor Daniel Filho, foi uma das razões
da decadência do gênero. O volume sobre circo-teatro
foi publicado pela Editora Terceira Margem, com apoio da Fapesp e
da Sociedade Científica de Estudos da Arte.
O projeto “A cena paulista” está montando uma
base de dados local e também na internet. Em dezembro serão
colocados no site novos resultados da pesquisa, não só sobre
o Arquivo Miroel Silveira, mas também a respeito de nomes
dos palcos que atuaram em rádio, televisão e cinema.
O endereço eletrônico é www.eca.usp.br/censuraemcena.
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