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No dia 11 de setembro de 2006, o jornal Folha de S. Paulo publicou um editorial, “Cinema sem risco”, que reclamava da agenda político-eleitoral da discussão dos incentivos à cultura no Brasil. Em meio à cobertura maciça sobre os cinco anos dos ataques terroristas nos Estados Unidos, esse editorial, embora se referisse a matéria publicada no mesmo jornal em 29 de agosto, também celebra uma outra recorrência histórica, não trágica como as quase 4 mil mortes do 11 de setembro, mas, de certa forma, dolorida na memória artística nacional.

A abordagem do editorial da Folha sublinha a necessidade de racionalizar o gasto público nas artes, com destaque para o cinema. “Em 2005, o Ministério da Cultura registrou mais de R$ 600 milhões em recursos captados. São freqüentes os exemplos de mau uso desse dinheiro – de livros de arte que arrecadam milhões e não remuneram colaboradores a filmes que obtiveram apoio, mas não foram concluídos. “Ao se referir a uma reportagem anterior, o jornal acusa o cinema com mais ênfase: “Nos últimos dez anos, mais de US$ 500 milhões fluíram dos cofres públicos para a atividade cinematográfica a título de renúncia fiscal. Não é razoável que essa transferência se dê num modelo que anula o risco e a necessidade de apresentar resultados”. Essa proteção do Estado, para a opinião da Folha, exime o artista de assumir, junto com o contribuinte, o ônus pelo êxito ou fracasso de seu filme.

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Visto exclusivamente pelo ângulo econômico, o problema da indústria cinematográfica aparece simplificado. Na capa da Ilustrada de 29 de agosto, a repórter Silvana Arantes procurou debater o tema com representantes do governo e com representantes do cinema. Augusto Calil, atual secretário municipal de Cultura de São Paulo, professor de Cinema na USP (já foi também presidente da Embrafilme e diretor da Cinemateca Brasileira), fala com conhecimento de causa dos impasses históricos nessa área. Como secretário, criticou recentemente, na Feira Internacional da Indústria do Cinema e do Audiovisual, em São Paulo, “o peso excessivo do Estado, que é mais compensatório do que estruturante, quando os incentivos fiscais substituem o mercado”. Calil, nessa reportagem, toca em outra ferida além do investimento do contribuinte. Para ele, existe uma “esquizofrenia” na produção nacional – a idéia dos cineastas de que é desagradável fazer sucesso, já que a popularidade indica concessão ao gosto popular.

Dicotomia – É claro que tanto diretores como produtores brasileiros não aceitam essa visão crítica, pois consideram a presença do Estado e dos incentivos como condição estratégica para a expansão do cinema nacional. Mas o fato de alguns filmes prescindirem dessa proteção e terem facilidade de obter recursos da iniciativa privada, por se pagarem nas bilheterias e nas demais formas de distribuição (televisão e DVD), acirra a discussão entre filme-arte e filme-mercado. Parece uma dicotomia bizantina, mas a cada década emerge como nova. O editorial da Folha, assim como Calil, advoga por resultados concretos – filme realizado e distribuído não pode se amparar em prêmios ou críticas “intelectuais”, e sim encontrar públicos (o que, no meu entendimento, é diferente de ir ao encontro de um pressuposto gosto popular). O jornal traz à baila os argumentos comuns de cineastas que defendem a política de subsídios para superar a condição de um país simples consumidor de cinematografias estrangeiras: “No início esse método de incentivo pode ter sido relevante para a reestruturação da atividade local, mas hoje degenerou em acomodação à custa do erário”.

Roda do tempo, espiral do tempo. No fim do século passado, a série Novo Pacto da Ciência (organização de Cremilda Medina e Milton Greco) publicava, no sexto volume, sob o título Planeta inquieto, direito ao século XXI, alguns diálogos interdisciplinares, um deles sobre cinema. A socióloga Nanci Valadares e o cineasta Carlos Reichembach se apegaram ao ângulo da resistência. Para ambos, ao processo econômico da globalização e dos valores do mercado se contrapunha a globalidade das diferenças culturais. Nesse sentido, Reichembach considera o cinema uma das principais armas de resistência. Vivíamos o momento de puro deleite com o cinema iraniano e esse era, para ele, um bom exemplo: “É realmente um cinema de resistência, pois, apesar da censura muito violenta, esse cinema, ao mostrar a própria realidade local, consegue encantar o mundo”. No contexto de mercado global em que se situam os grandes êxitos de bilheteria, é preciso resistir: “Isso acontece quando o cineasta não abre mão da sua linguagem, independentemente do fim a que se propõe, pois, se para chegar a um maior número de pessoas eu preciso alterar minha visão de mundo, sob o preço da infidelidade histórica, num processo de traição, então eu fico por aqui mesmo”.

Às vezes topar com a recorrência dos dilemas atiça a impaciência. No grupo de pós-graduação (Programa Latino-Americano e Escola de Comunicações e Artes da USP), uma aluna, Ignêz do Amaral, foi à Cinemateca pesquisar para sua tese de doutorado e me trouxe uma cópia de um texto que publiquei no o Estado de S. Paulo, em setembro de 1981. Que espanto, antes mesmo de reler o que há muito esquecera. Não lembro como, mas fui ao Rio de Janeiro entrevistar o então presidente da Embrafilme, Celso Amorim. Vivíamos outra resistência cultural, essa nas contingências do final do ciclo da ditadura militar. Já conhecia o profissional do Itamaraty desde os anos 1970 e havia percebido sua vocação pela identidade latino-americana. O atual ministro das Relações Exteriores do governo Lula, ao passar pela Embrafilme no início dos 1980, tinha uma visão abrangente do cinema como arma de resistência, nas palavras de Reichembach. Graças à coincidência de minha aluna desentocar esse texto e, em menos de uma semana, a Folha de S. Paulo trazer a público a ancestral discussão, senti oportuno exorcizar esse fantasma que me impacienta. Afinal, perguntava no título de 1981, é hora de investir em cinema?

Diálogo – No período em que trabalhei no Estadão (editora de Artes de 1975 a 1983), assumi o grande debate do cinema nacional, as grandezas e limitações da Embrafilme, a já citada dicotomia entre filme de autor e filme de mercado, o conflito Rio-São Paulo, a centralização da indústria cinematográfica, a emergência os pólos regionais, os problemas de distribuição e de exibição, enfim a via-sacra do cineasta para conseguir realizar seus projetos. Vista grosseiramente de fora, até parecia que a equipe e, em particular, a editora de Artes do jornal estava contra a proteção oficial da Embrafilme, pois já então se debatiam os desmandos dos recursos públicos. Mas, ao contrário, a empatia pelo cinema nacional era uma marca da minha geração. Não tivéssemos nós – aqui incluo Augusto Calil – sido alunos de Paulo Emílio Salles Gomes, eu, no primeiro curso de pós-graduação em Ciências da Comunicação (ECA, de 1972 a 1974), Calil, no curso de Cinema do fim dos anos 1960 ao começo da década seguinte. Quem resistia à sedução de um missionário do cinema nacional? Víamos tudo no auditório da Escola de Comunicações e Artes, dos filmes mais toscos ao cinema novo, sob a batuta encantada de Paulo Emílio. E, como lição de casa, tínhamos de acompanhar os raros filmes em exibição na cidade. Não havia juízo crítico negativo que enfrentasse a paixão que nos contaminava.

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De qualquer forma, fui ao Rio propor ao presidente da Embrafilme um diálogo sobre os impasses da época, sem a condescendência afetuosa de quem está do lado dos cineastas nacionais. No íntimo, claro, o entusiasmo solidário aparece na entrevista, sobretudo quando se tratava dos “deserdados” da distribuição de verbas. Celso Amorim enfrentou, com tranqüilidade, a investida jornalística. Vale recuperar, na espiral do tempo, alguns fragmentos da matéria publicada na circunstância do que seria analisado posterioremente como a mais séria crise da política cinematográfica no País. Qual o fundo de verdade de uma possível falência da Embrafilme? “Não entendo crise com o mesmo significado que algumas notícias sensacionalistas querem lhe dar. O cinema nacional vive, sim, um momento de reorientação e readaptação como, aliás, todo o País. Veja o caso da Previdência Social. Existe um forte contraste – e essa é que é a verdade – entre as expectativas que se criaram a partir do governo anterior com o crescimento do cinema, a fase de implantação dos pólos, todo o estímulo e legislação a favor do curta-metragem e, ao mesmo tempo, por fatores econômicos da conjuntura brasileira, a redução de verbas para as produções cinematográficas. O que diminuiu foi a margem de recursos para investir a fundo perdido. E isso se torna tão mais dramático quanto mais desmesurado foi o crescimento do fim dos anos 70. A título de comparação jocosa, eu me lembro que, na minha geração, eu queria ser escritor. Os jovens de hoje querem ser cineastas.”

Investimento – Há um quarto de século, essa visão otimista de Amorim se estendia à sempre criticada concorrência do filme nacional frente aos distribuidores estrangeiros. “O Brasil se encontra em quarto lugar entre os países que, exceto os Estados Unidos, dão espaço às filmografias nacionais nos seus mercados internos. E, de 1976 a 1981, esse prestígio cresceu muito, o que se traduz em aumento de número de espectadores – de 20,77 % em 76 para 34%, só no primeiro semestre de 81. Mas a expectativa dos cineastas ainda é maior do que nossa capacidade de colocar seus filmes no mercado.” Portadora das queixas dos artistas, pressionei pelo lado da publicidade, por que a distribuidora da Embrafilme da época não divulgava com o mesmo peso todas as produções? A resposta do então presidente da Embrafilme parece sair de uma cobertura jornalística de 2006: “O que se esquece é que o investimento na comercialização de um filme com boas condições de mercado retorna à Embrafilme. É apenas um dinheiro que gira. Basta citar o caso de Pixote, do Hector Babenco, ou o Eu te amo, do Arnaldo Jabor. Já no caso de um filme como O homem que virou suco, de João Batista de Andrade, não adiantaria aplicar 20 milhões no lançamento, porque o filme não tinha mercado garantido”.

O confronto filme com mercado e filme com risco de êxito na exibição estava e está posto nas argumentações. A recente reportagem da Folha recorre aos líderes do mercado cinematográfico, com patrocínio e bilheteria garantidos: Daniel Filho, “autor do único grande sucesso da temporada, Se eu fosse você, neste ano (2006) ainda lançará Muito gelo e dois dedos d’água e prepara a adaptação de O primo Basílio, além da cinebiografia de Chico Xavier”. Silvana Arantes, a jornalista que assina essa matéria, ao falar do filme de Daniel Filho, que captou R$ 4,2 milhões das leis Rouanet e do Audiovisual e teve renda de bilheteria de R$ 28 milhões, atualiza, em cifras, a ponderação de Amorim em 1981. Para a repórter da Folha, “no mercado de cinema é comum reinvestir a renda obtida na bilheteria em mais publicidade, com a meta de impulsionar o lucro do filme nas etapas seguintes – DVD e televisão”. No início dos anos 1980, não se falava ainda em DVD, mas estava em pauta o circuito de tevê para o escoamento das produções brasileiras. Os filmes com risco, sobretudo dos novos cineastas, no entanto, eram e continuam sendo a dor de cabeça dos que decidem políticas culturais. Afinal, no universo da arte, onde fica a fronteira entre filme de autor e filme ao gosto do mercado? Fiz essa pergunta a Celso Amorim em 1981: como amparar o filme que não tem comercialização fácil? “Meu conceito de cultura é diferente. Acho que os dois tipos de filme são culturais. Depois, a Embrafilme não abandona esse tipo de produção. Se fosse apenas uma empresa sem fins culturais, nem sequer produziria ou lançaria filmes que até hoje não deram nenhum retorno.”

Para o atual ministro, a criação brasileira é de tal forma fértil que sempre haverá descontentes. Curioso que, a propósito dos cineastas novos em que a Embrafilme investiu, apesar de não ter garantia de mercado, Amorim citou o então jovem Sérgio Rezende, hoje com filme em cartaz (Zuzu Angel) e consagrada trajetória no cinema nacional do último quarto de século. Por outro lado, como Calil hoje, o responsável pela política cultural da década de 1980 batia na tecla que fere os ouvidos dos cineastas: “É impossível atender aos interesses particulares de cada autor. Além de tudo, todos se acostumaram ao paternalismo do Estado”. A discussão pendular oscila entre o econômico e o cultural. Essa onerosa indústria não pode se dar ao luxo de ignorar o público consumidor, esteja ele nas salas de exibição ou na audiência doméstica. Quando participava dos festivais nacionais e internacionais – dos 1970 aos 80 –, a tertúlia entre diretores, atores e produtores girava em torno desse impasse. Os radicais da liberdade de autor apelavam então, com muita ansiedade, para os prêmios como forma de consagração dos filmes de “difícil” aceitação de público. Amorim assegurava, naquela conversa, que a Embrafilme estava desbravando os mercados externos tanto quanto apostava na exibição interna. Quanto aos prêmios, era reticente: “O Brasil está viciado na tradição de reconhecer um valor através de reflexo externo”. Para ele, o valor que se afirma na exportação era, nessa entrevista, a vitalidade da criação brasileira.

Da fertilidade artística retornamos à cultura industrializada. O êxito no mercado externo favorece o investimento interno e Amorim dizia: “Nunca nosso prestígio esteve tão alto como agora na Cacex, Ceplan, Banco Central...”. Contra-ataquei: definitivamente, no seu entender, a solução está na co-produção com investidores privados e não nas verbas do Estado? “Exatamente. Esse é o futuro do cinema que se intitula independente, mas, no fundo, queria ser eternamente dependente do Estado.” O que mudou nos últimos 25 anos? A Embrafilme realmente entrou em crise, o Estado Nacional se depauperou no mundo inteiro, o cinema passou por altos e baixos quanto a suas fontes de sobrevivência, vieram as leis de incentivo e o editorial da Folha, assim como o secretário municipal de Cultura de São Paulo, clamam pela mesma alternativa que Amorim: cinema brasileiro com risco.

Ainda bem que as vozes oficiais nem sempre são unânimes. Em notícia publicada no Estado de S. Paulo, a 13 de setembro, outro secretário, desta vez estadual, anuncia R$ 23 milhões para o cinema paulista, provenientes da nova Lei da Cultura. O secretário de Estado da Cultura, João Batista de Andrade, afinal ele próprio cineasta, considera um fomento essencial, embora o governador Cláudio Lembo tenha considerado, no momento do anúncio oficial, que é pouco, “mas, analisando ao longo dos anos, é um avanço histórico”... (Reticências da espiral do tempo por minha conta.)

Aos criadores, o eterno retorno: como fazer esse cinema independente em um país de tantas dependências? O Brasil e alguns outros países latino-americanos vêm mostrando um caminho de bons resultados. Certamente esse caminho passa pelo encontro com o público. Prefiro assim, em lugar de discutir filme-comercial ou filme-arte. E é essa magia de identificação que dá garantia de algum êxito. Paulo Emílio Salles Gomes gostaria de ir ao cinema hoje e ver todos os filmes nacionais em cartaz. Ele se recusava a atribuir uma ou quatro estrelas, porque, como Reichembach pensa, as cinematografias são, antes de tudo, as marcas digitais da cultura local.

Cremilda Medina, jornalista e pesquisadora, é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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