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O grupo dos Glettianos e dona Neuza (abaixo): ligação com o passado

O único símbolo que restou da época de faculdade de dona Neuza Guerreiro de Carvalho foi uma figueira. Essa mesma árvore também faz o professor César Ades, do Instituto de Psicologia da USP, lembrar de quando ingressou no curso de Psicologia, ainda na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, na alameda Glette, em 1961. Integrantes de um grupo conhecido como “glettianos”, no dia 24 de novembro eles plantaram uma muda da Figueira da Glette na Praça do Pôr do Sol, na Cidade Universitária, próximo à Faculdade de Odontologia, e organizaram a exposição “A Glette e seus Psicólogos”, inaugurada no dia 21 de novembro no Instituto de Psicologia.

A muda teve de ser feita através de um processo conhecido como alporquia, em que se tira um pedaço dos ramos maiores e principais e cultiva-o até crescer e poder ser plantado como muda. Isso porque a Figueira da Glete não é rara somente na memória. É uma espécie de origem australiana, cujo agente polinizador é uma vespa que não existe no Brasil.

Dona Neuza ressalta que o plantio da árvore é também uma forma de chamar a atenção dos uspianos futuros para manterem a ligação emocional com o espaço de convivência e de estudos proporcionado pela Universidade. “O campus vai ficar. E se você tiver uma ligação afetiva com ele, será um pedaço de sua memória que ficará ali. Como nós, que não consideramos nossa árvore uma planta comum. Ela é ‘a Figueira da Glette’, nossa ligação com tudo o que vivemos no passado.”

A figueira – Dona Neuza segura os pequenos frutos da figueira, reunidos em uma bacia, como quem embala o bebê recém-nascido e por quem muito esperou. Ao tocá-los, cerca-se também das várias memórias com cheiro de “folha decomposta”, de “terra molhada”, uma época em que aqueles frutos pequenos faziam barulho ao cair no chão. “Olha, é como figo de verdade, mas esse aqui não se pode comer.” Licenciada em História Natural pela FFCL, ela guarda as lembranças que restam da Figueira da Glette, que também não são destruídas e nem se “podem comer”.

A árvore é o único símbolo que restou da antiga subseção de Ciências Naturais da FFCL, que funcionou na alameda Glette até 1969, quando os cursos, já com nomes diferentes, foram transferidos para a Cidade Universitária. O palacete onde ficava a FFCL foi demolido na década de 1970. Hoje, no lugar do prédio há um estacionamento e, dentro dele, ainda sobrevive a antiga figueira.

Dona Neuza foi um dos cinco alunos do curso de História Natural, uma junção do que hoje seriam os cursos de Biociências e Geociências, na turma de 1948. Formada em 1952, ficou quase 50 anos distanciada das memórias da faculdade. Até que, em 2002, ao reunir os antigos colegas para comemorar o meio século desde a formatura, encontrou mais alguns amigos que buscavam preservar a figueira que lhes tinha servido de sombra e ponto de encontro nas horas de descanso dos estudos.

“No fundo do palacete tinha a cantina da dona Carolina, sempre com um prato feito, coisas bem simples, e essa cantina ficava bem em frente da figueira. Então nós ficávamos ou sentados em frente da cantina para comer um lanche ou sentávamos nas grandes raízes da figueira. Isso em 1949, quando começamos a olhar para a árvore. Nessa época, porém, nós não nos ligávamos tanto a ela.”

Com muita propriedade, dona Neuza diz que coisas que acontecem no presente só têm reflexo depois, no futuro. E foi assim com a figueira. “Nunca mais ouvi falar dela, mas ficou no meu subconsciente. Nesse meio tempo tive filho, trabalhei, dei aulas de biologia por 30 anos.” Algum tempo depois de se aposentar, ela começou a fazer contato com as pessoas que haviam estudado na mesma época que a sua. Fizeram então, em 2002, um almoço no Clube dos Professores, na Cidade Universitária.

“Aquilo que estava lá no fundo brotou, emergiu totalmente.” Todas as lembranças saudosas da época de faculdade voltaram, e ela, reunindo alguns colegas, fundou o grupo dos Gletianos para tentar resgatar as memórias da época de estudante, preservada pela figueira. “Tempo de estudante é muito importante. É o tempo de formação de personalidade, de amizade. É o tempo que você está construindo alguma coisa.” A Figueira da Glette já foi tombada como patrimônio estadual, mas o grupo ainda aguarda o tombamento municipal, que garante maior proteção à árvore. O processo está em andamento.

O palacete – Para o professor César Ades, “tudo nessa história é simbólico”. Ele entrou na faculdade em 1961 e estudou no porão do palacete da Glette, onde era sediada uma cadeira de Psicologia Social Experimental. Depois de entrar em contato com dona Neuza, Ades conta que voltou a se interessar pela figueira e pelo grupo formado para resgatar essa memória. “Nós costumamos enterrar nosso passado. De repente ele não existe. O palacete foi demolido e um estacionamento de carros foi colocado no lugar dele. Mas a figueira não foi cortada, e esta é a grande batalha: conservar esse símbolo que não é mais um prédio, e sim uma árvore, uma coisa viva.”

A exposição foi montada no intuito de preservar essa lembrança. “A memória faz parte da sua identidade. Você é uma memória ambulante de tudo que lhe aconteceu”, diz. “Essa é uma atividade que garante a sua identidade. Você se conhece através disso.”

Segundo o professor, na década de 1940 o prédio estava todo ocupado com os demais cursos, até que Theodosius Dobzhanski, pioneiro da genética, veio ministrar aulas no Brasil. Sem mais espaços, foi preciso escavar um porão para abrigar o pesquisador. Porão este que depois foi herdado pelos psicólogos. “A Psicologia foi abrigada no porão porque não tinha força nenhuma na época”, lembra Ades. A exposição busca resgatar a trajetória da época em que a psicologia ainda não era reconhecida e a maioria dos experimentos, improvisada. Mesmo diante de tantas dificuldades, ele ressalta que “o curso no palacete da Glette era de muita qualidade”.

“Eu e mais dois professores nos reuníamos, por exemplo, para discutir as raízes cognitivas do comportamento humano numa época em que a moda era diferente, não se falava tanto nisso. Todos esses estudos foram pioneiros”, lembra Ades. “Esses tempos são saudosos porque mostram que você pode fazer algo importante mesmo que não tenha os recursos todos. É necessário cultivar a idéia pela idéia.”


 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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