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Há exatos 65 anos – no dia 20 de janeiro de 1942 – ocorreu a Conferência de Wannsee, uma reunião com 14 representantes da administração da Alemanha e do Partido Nazista, dentre os quais Adolf Eichmann, do Ministério Central da Segurança do Reich. Hitler não estava presente. A reunião foi realizada no casarão da Kripo (Krimminalpolizei), a polícia criminal, localizado às margens do Wannsee, um grande lago em Berlim, e tinha o objetivo de discutir um documento a respeito da “Solução Final da Questão Judaica” (“Endlösung der jüdische Frage”), denominado de “Protocolo de Wannsee”.

Desde os Processos de Nuremberg (1945/46), os acusadores acreditavam que o Protocolo de Wannsee representasse o documento-chave do sistema de extermínio nazista, idéia amplamente divulgada até hoje. No entanto, muitos historiadores questionam esse ponto de vista, em especial Mark Roseman. “Primeiro, porque Hitler não estava presente na reunião e aqueles que lá compareceram tinham uma posição muito subalterna para decidir sobre o genocídio. Sobretudo o período indicado era errado, porque o extermínio em massa dos judeus soviéticos havia começado no ano anterior; em Chelmno, desde dezembro de 1941, os judeus passaram a ser mortos com gás, e o campo de extermínio de Belzec já havia sido construído”, escreve (os dois campos ficavam na Polônia). Roseman pergunta: “Qual era então o objetivo da Conferência de Wannsee?”. O protocolo firmado na ocasião também recoloca a questão: o extermínio dos judeus era um objetivo nazista já anteriormente planejado?

As etapas – Holocausto (Shoah) é o conceito utilizado para designar o fenômeno histórico de perseguição, exclusão e extermínio de seis milhões de judeus da Europa, que representavam 65% da população judaica européia da época e 30% da população judaica no mundo. Mais recentemente, a historiografia ampliou o sentido do Holocausto, inserindo nesse fenômeno a perseguição, aprisionamento, trabalho forçado e extermínio dos ciganos. O Holocausto foi um processo que evoluiu por etapas: primeiro definiu-se quem eram os judeus; em seguida eles foram excluídos econômica e socialmente, expropriados, confinados em campos de concentração e guetos, deportados e assassinados. As mortes ocorriam de formas diversas: por fome, doença, fuzilamento, tortura ou uso de gás. Nesse processo, os ciganos sofreram destino e medidas similares.

De acordo com historiadores como Götz Aly, Wolfgang Benz e Hans Mommsen, a perseguição aos judeus ocorreu em quatro etapas. A primeira (1933 a 1935) foi a da discriminação e início da exclusão da vida pública, com medidas como proibição do exercício de profissões liberais, de freqüência a escolas e universidades e de boicote contra lojas judaicas. A segunda fase compreende os anos de 1935 a 1938: isolamento e degradação, que se inicia com as Leis de Nuremberg, segundo as quais os judeus deixavam se ser considerados cidadãos e eram proibidos de se casar com “arianos”, sob pena de morte (posteriormente, essas leis foram estendidas a ciganos e negros).

Na terceira fase, de 1938 a 1941, sobressaem-se a expropriação de bens judaicos pelo Estado nazista, a expulsão, o recrudescimento da perseguição, a privação completa de todos direitos e o confinamento em guetos. A quarta e última fase, de 1941 a 1945, é a da “Solução Final da Questão Judaica” – ou seja, do extermínio em massa.


Reinhard Heydrich: plano para extermínio dos judeus

Emigração forçada – Hitler não subiu ao poder, em 30 de janeiro de 1933, com base principalmente num discurso anti-semita, mas sim com uma pregação anticapitalista e a promessa de resolver os graves problemas econômicos da Alemanha. O anti-semitismo ainda estava em plano secundário. A política nazista inicialmente considerou como inimigo central os adversários políticos, sobretudo os comunistas e social-democratas, que foram as primeiras vítimas dos campos de concentração – que entraram em funcionamento já em março de 1933, poucas semanas depois da ascensão de Hitler. A partir de 1936, iniciou-se o aprisionamento de homossexuais, testemunhas-de-jeová, cristãos, condenados e alguns dos considerados como “associais” (ciganos, prostitutas e pessoas sem residência fixa).

De 1933 a 1938, as medidas que excluíram os judeus progressivamente da vida econômica e social da Alemanha tinham o objetivo de levá-los à emigração, embora os judeus representassem menos de 1% da população na Alemanha. Da subida de Hitler ao poder até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, a população judaica da Alemanha e da Áustria diminuiu pela metade em decorrência da emigração e da perseguição.

O regime nazista buscou eliminar toda a influência judaica em todos os setores antes de decidir pelo extermínio. O Serviço de Segurança da SS afirmava em 1937 que, “apesar de uma diminuição em quase 20% da população judaica da Alemanha (contabilizando-se os ‘judeus pela raça e religião’, o capital judaico – e com isso a influência judaica na Alemanha em geral e na economia alemã em particular – diminuiu somente em 2%” (Zum Judenproblem – Sobre o Problema Judaico, janeiro de 1937, Arquivo Federal de Berlim).

Também em 1937 o documento Sobre o Problema Judaico, do Serviço de Segurança da SS, destacava que “se deve exigir o aumento e a imigração assegurada” dos judeus. O texto afirmava que a emigração era “urgente” e deveria ser “concentrada, isto é, direcionada somente para países conhecidos, a fim de evitar que em alguns países sejam criados grupos inimigos e que a população desses países se subleve contra a Alemanha”.

O regime nazista divulgava as medidas antijudaicas e incentivava a emigração, além de controlá-la. Os judeus tinham que pagar uma taxa ao Estado, deixar seus bens – que eram expropriados – e levar consigo uma quantia limitada, e irrisória, de dinheiro em espécie. Muitos países fecharam as fronteiras para a imigração ou a restringiram criminosamente para os judeus.

Um documento da Gestapo (polícia secreta do Estado), assinado em janeiro de 1939 por Reinhard Heydrich, chefe do Serviço Central de Segurança do Reich, determinava que os prisioneiros judeus que tivessem os documentos para emigrar poderiam ser soltos dos campos de concentração e deveriam ser verbalmente ameaçados, caso retornassem à Alemanha. No campo de concentração de Buchenwald, para onde haviam sido levados 13 mil judeus, ocorreu o maior processo de soltura de prisioneiros da história da existência do campo: “aproximadamente 2.300 prisioneiros, sobretudo anti-sociais, foram mandados de volta para suas casas. Entre fevereiro e agosto de 1939, cerca de dois mil judeus que já tinham documentos para emigrar foram finalmente liberados” (David Hackett, org., O Relatório Buchenwald, editora Record).


Catorze dirigentes nazistas se reuniram nesta casa, em Berlim

Guerra Mundial – A partir de 9 de novembro de 1938 houve uma mudança histórica na política nazista, que colocou o anti-semitismo em primeiro plano: ocorreu o primeiro pogrom judaico na Alemanha do século 20, denominado de “A Noite dos Cristais”. O pogrom foi organizado pelas SA (divisões de assalto), tendo como justificativa o assassinato do alemão vom Rath em Paris pelo judeu Grünspan, que quis se vingar do tratamento desumano de seus pais na Alemanha. Noventa e um judeus morreram nessa noite, e nenhum assassino foi julgado. A maioria das sinagogas da Alemanha foi queimada ou destruída, e 7.500 lojas de judeus foram quebradas ou saqueadas, com um prejuízo de muitas centenas de milhões de marcos.

Esse pogrom marca o início da violência física em massa contra os judeus e da deportação para os campos de concentração. Vinte e seis mil judeus alemães e austríacos foram presos e deportados a campos de concentração pela Gestapo. Nesse momento, os judeus foram completamente banidos da vida econômica na Alemanha. As propriedades judaicas foram colocadas em contas e confiscadas pelo Estado.

A Segunda Guerra Mundial e a expansão territorial dela decorrente foram fatores fundamentais para o desenvolvimento do Holocausto. Com a eclosão do conflito, a perseguição aos judeus se intensificou no interior do Reich e ampliou-se para os países ocupados ao Leste da Europa – para o que a invasão da Polônia foi decisiva, já que nesse país se encontrava a maior concentração populacional judaica da Europa.

O plano nazista para liquidação dos judeus desenvolveu-se por etapas e não era consensual em toda a cúpula nazista, dividida entre o extermínio e a exploração da mão-de-obra em trabalho forçado. Até a invasão da União Soviética não se pode afirmar que havia o objetivo de realizar o extermínio (até hoje, o debate entre “funcionalistas” e “estruturalistas” não foi superado).

Foi em 21 de setembro de 1939 – antes, portanto, da Conferência de Wannsee – que Reinhard Heydrich ordenou que todos os judeus da Polônia ocupada (cerca de 3 milhões) fossem concentrados em guetos nas grandes cidades, a fim de serem exterminados de duas maneiras: primeiro, por doenças e pela fome, pois a população dos guetos não possuía meios de subsistência e nem podia trabalhar na zona “ariana” das cidades. Os que sobrevivessem seriam assassinados por fuzilamento ou outro processo. Boa parte dos judeus (e também muitos ciganos) pereceu de fome e doença nos guetos miseráveis até fins de 1941.

O gueto também serviu para explorar os judeus economicamente. Habitantes dos grandes guetos trabalhavam em oficinas e fábricas que produziam material bélico e militar. Nos guetos menores, os judeus trabalhavam na abertura de estradas. Quem trabalhava recebia alguma ração alimentar, mas quem não trabalhava não tinha qualquer meio de sustento.
Ao mesmo tempo, o antigo plano de deportar os judeus confinados nos campos de concentração e guetos para campos de trabalho em Madagáscar, na costa oriental da África (na época, uma colônia francesa), foi abandonado. O termo “Solução Final” apareceu pela primeira vez no contexto deste plano e no sentido de uma “Solução Final Territorial” (Territoriale Endlösung). Mas os projetos de deportação foram abandonados e a cúpula nazista passou a organizar o extermínio em massa, mesmo com divergência a esse respeito.

Campos de extermínio – A partir de 1940 e até 1944, os judeus foram concentrados em guetos e campos na Europa Oriental ocupada. Uma etapa decisiva no caminho da “Solução Final” foi a invasão da União Soviética pela Alemanha nazista, em 22 de julho de 1941. A política e as ações nazistas mudavam de curso, e a Conferência de Wannsee colocava no papel essa mudança: que viesse o extermínio total dos judeus europeus.

Em 1941 iniciaram-se os fuzilamentos em massa das Einsatzgruppen da SS (Schutzstaffel, tropas de defesa). Einsatzgruppen literalmente significa “grupos de mobilização”, mas pode ser traduzido como “operações móveis de assassinato”, por se tratar de um comando da SS encarregado de execuções em massa nos territórios ocupados. Voluntários locais (ucranianos, lituanos, letões e outros) ajudavam a fuzilar os judeus em fossas ou depois jogavam os corpos em fossas que os próprios judeus cavavam. Até 1943, 800 mil judeus já haviam sido executados pelas SS.

Em 31 de julho de 1941, Hermann Göring, lugar-tenente de Hitler, conferiu a Reinhard Heydrich a elaboração de um plano completo de “Solução Final da Questão Judaica”, que se tornaria o “Protocolo de Wannsee”. Preconizado em 1941 por Heydrich, o plano apresentava uma retrospectiva das medidas antijudaicas adotadas até 1941.

O documento tinha dois pontos centrais. O primeiro consistia na política nazista de incentivo à emigração. Nele constava a observação da “fundação, em janeiro de 1939, de uma Central do Reich para a Emigração Judaica, cuja direção cabia ao chefe da Polícia de Segurança e do Serviço de Segurança. Ela tinha sobretudo como tarefa: a) tomar todas as medidas para a preparação de uma emigração maior dos judeus; b) dirigir o fluxo migratório; c) apressar a condução da emigração de casos isolados.” No protocolo afirmava-se que “desde a tomada do poder até o dia chave 31 de outubro de 1941, cerca de 537 mil judeus foram levados a emigrar”.

O segundo ponto referia-se ao plano elaborado para “evacuação” (deportação) dos judeus de toda a Europa ocupada, neutra e inimiga para o Leste, somando-se aqui 11 mil judeus. No documento de Wannsee consta a afirmação de que “no lugar da emigração passou-se a adotar como outra possibilidade de solução, de acordo com prévia aprovação do Führer, a evacuação dos judeus para o Leste”. Aproximadamente onze milhões de judeus estavam incluídos na Solução Final da Questão Judaica. Quando da discussão em Wannsee a respeito dessa deportação em massa, o representante da administração do governo geral, Josef Bühler, sugeriu que a “Solução Judaica” fosse logo iniciada, já que “na Polônia havia tantos judeus sem utilidade”.

Apesar do eufemismo “evacuação”, assim como também “Solução Final da Questão Judaica”, não há o registro explícito de como isso ocorreria, mas a passagem de uma política de emigração para a de extermínio é um dos processos mais importantes no sistema nazista. O certo é que, no final de 1941, já havia entrado em marcha o recrudescimento dos assassinatos perpetrados pelas Einsatzgruppen e iniciado a utilização do gás letal Zyklon B em uma primeira experiência de um extermínio tecnologicamente mais “eficiente” do que os caminhões de assassinato por gás carbônico até então utilizados.

Depois de janeiro de 1942, com a deliberação formal da Conferência de Wannsee, os subordinados nazistas ficaram sabendo que o plano de deportação dos judeus fora substituído pelo plano de extermínio de toda a população judaica sob domínio nazista. A importância histórica da Conferência de Wannsee consiste, portanto, em que ela decidiu formalmente pela implementação, já em andamento, do plano nazista para a “Solução Final” nos campos de extermínio.

Sabe-se que esse extermínio foi implementado pelo “extermínio pelo trabalho” e pelo uso do gás Zyklon B em câmaras construídas segundo projeto de um engenheiro do Exército, Heinz Krammler, e instaladas nos campos de extermínio de Majdanek, Belzec, Treblinka, Sobibor, Chelmno e Auschwitz. Nesses campos, até fevereiro de 1944, foram assassinados dois milhões e meio de judeus. A comunidade judaica polonesa foi praticamente destruída, perdendo-se grande parte da sua cultura.

Depois da Conferência de Wannsee, 90% dos que chegavam aos campos de extermínio eram levados para as câmaras de gás (estimativa de Annalena Staudte-Lauber no livro Holocaust, publicado em 1997). Os demais morriam pelo “extermínio pelo trabalho”, ou seja, trabalho à exaustão. Paradoxalmente, a economia de guerra estava em pleno vapor, e exterminar a força de trabalho parecia irracional. Em outubro de 1942, Heinrich Himmler, comandante da SS, ordenou que todos os campos de concentração na Alemanha fossem tornados “livres de judeus”. Mas a precária situação da economia de guerra alemã na primavera de 1944 forçou a SS a retornar prisioneiros judeus à Alemanha para trabalhar na indústria de armamentos.

No contexto do fenômeno do Holocausto, a importância do Protocolo de Wannsee consiste em que esse documento, um dos poucos encontrados, era o mais explícito acerca do assassinato em massa planejado e da clara expressão programática dos nazistas para a condução do genocídio. A Conferência de Wannsee, realizada há 65 anos, reiterou a prática o extermínio em escala industrial de judeus nas câmaras de gás – sobretudo de judeus, mas também de ciganos e eslavos –, demonstrando que o Holocausto não foi um processo linear.

Ania Cavalcante é doutoranda em História Econômica na USP, professora e tradutora de alemão

 

 

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