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Era uma história a ser descoberta. E uma vida entre tantas cores, sonhos e formas... Quando começou a pesquisar a trajetória de Anita Malfatti, a jovem historiadora Marta Rossetti Batista jamais imaginava que aquele trabalho de documentação feito para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, sob a orientação do professor Flávio Motta, iria se estender ao longo de mais de quatro décadas.

Com sensibilidade e dedicação, Marta resgatou os 50 anos da carreira de Anita entrevistando amigos, familiares, artistas. Também reuniu documentos e fotos e pesquisou suas obras em acervos particulares e públicos. Um desafio que resultou em Anita Malfatti no tempo e no espaço, edição da Edusp e Editora 34, em dois volumes: o primeiro apresenta a biografia da artista e o segundo é um catálogo da obra e documentação.
“Foi Anita Malfatti quem franqueou seu acervo e seus arquivos para o início desta pesquisa em 1964, ano em que mantive vários contatos com a artista”, conta Marta Rossetti, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. “Ao longo do tempo, contei com a boa vontade, a colaboração e as informações de diversas pessoas e instituições.”

Como bem lembra Aracy Amaral, historiadora e professora da FAU, na apresentação da edição, “poucos são os artistas brasileiros que tiveram sua produção rastreada por um estudioso pesquisador ou uma equipe deles, revisitando seus anos de trabalho e diversos períodos de criatividade”. Aracy acompanhou o empenho de Marta, que transformou a pesquisa sobre Anita Malfatti em um projeto de vida, porque, na mesma época e na mesma FAU, ela também se dedicou a estudar a obra de Tarsila do Amaral. E, como Marta Rossetti, continuou a pesquisa por mais de quatro décadas. Se hoje as amigas Anita e Tarsila têm a sua história e obra documentadas, é graças ao trabalho e à determinação da pesquisa de Marta e Aracy.

Incompreensão – “A personalidade de Anita Malfatti, vista hoje, surpreende por suas características opostas, uma certa dualidade de comportamento que se percebe em sua vida e obra”, conta Marta. “Desde pequena tinha manifestações de curiosidade, independência e determinação não comuns numa menina paulista do começo do século. A tenacidade ao se afirmar e a necessidade de compreensão ambiental conviviam nela, alternando-se ou sobrepondo-se em sua vida e obra.”

O trabalho paciente da pesquisadora mapeia todas as etapas da vida da artista. Anita vai compondo a sua trajetória, tão decisiva quanto incompreendida – mas que pontuou a arte brasileira no século 20. Traz momentos importantes da artista e, ao mesmo tempo, revela períodos desconhecidos de sua pintura e percurso pessoal.

Logo nas primeiras páginas do livro, Marta lembra a polêmica “Exposição de Arte Moderna Anita Malfatti”, de 1917, que, com as suas figuras deformadas, provocou a indignação da população e os protestos da crítica, em especial de Monteiro Lobato. “A mostra inusitada gerou também uma atitude inédita que foi a polêmica artística na cidade”, relembra.

Marta conta que alguns futuros modernistas, no entanto, apoiaram publicamente a mostra, vendo naquelas formas um exemplo da arte nova que procuravam. “Anita tornava-se o divisor de águas, encerrando o capítulo da arte acadêmica. Inseria-se na história da arte no Brasil num lugar muito definido: o de marco inicial do movimento modernista.”

Anita Catarina Malfatti, paulistana, filha de mãe alemã e protestante e pai italiano e católico, cresceu vendo a cidade tornar-se cosmopolita. “Ela viu e acompanhou a tremenda evolução da cidade e do País. Uma vida longa que, curiosamente, se desenvolve, coincide e interfere com um período completo da própria história do Brasil. Nasceu com a República, em 1880 e faleceu em 1964”, relata a autora.

Retrato da cidade – Em um texto fluido, Marta vai apresentando Anita – uma história ilustrada por diversas fotos dos álbuns da família que a autora procura contextualizar com a história da própria cidade. “Anita, uma alegre Babynha, desenvolvia-se entre o irmão predileto, Tatá (Alexandre), alegre e folgazão, e os dois menores: Willy (Guilherme), inquieto e fujão, e Georgina, a mais retraída. Nos fins de semana, iam às vezes ao circo na Praça da República, ainda de terra, sem árvores, mas já dominada pelo novo edifício da Escola Normal. Ou a piqueniques nos arredores, Cantareira, Jaraguá, ou, pelo trem, a Santo Amaro. No dia-a-dia, aos meninos concedia-se alguma liberdade: iam ao Ipiranga ver um leiloeiro, ou pescar com peneira no córrego e no Tietê, passando pelas várzeas da Barra Funda – lugar preferido por aquarelistas da época.”

Interessante também é a forma como Anita, através de seus depoimentos, vai retratando os costumes e valores da época. “Às meninas, muita coisa era vedada... O esporte não era considerado próprio para as moças, só exclusivamente para os homens. As mulheres não jogavam, nem bebiam, ajudavam na formação das grandes fazendas de café e criavam filhos que se tornaram nesta geração os grandes fazendeiros brasileiros.”
Sensível, Anita, na adolescência, pensou em se dedicar à poesia. “Eu tinha 13 anos. E sofria, porque não sabia que rumo tomar na vida. Resolvi, então, me submeter a uma estranha experiência: sofrer a sensação absorvente da morte. Achava que uma forte emoção, que me aproximasse violentamente do perigo, me daria a decifração definitiva da minha personalidade.”

Nesse depoimento a parentes, amigos e alguns jornalistas, Anita lembra que a sua casa ficava perto da estação da Barra Funda. Um dia amarrou as tranças e se deitou entre os dormentes, esperando o trem passar por cima. “Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação, voltei decidida a me dedicar à pintura.”

Uma decisão que acabou levando a ingênua mocinha para a Alemanha, seus estudos foram financiados pelo tio e protetor Jorge Krug. Anita teve aulas no ateliê de Fritz Burger, depois com Lovis Corinth e Ernst Bischoff Culm.

No capítulo “A festa da forma e a festa da cor”, Marta Rossetti narra a passagem de Anita nos Estados Unidos, quando Nova York era o centro da renovação. “Diferente do Brasil, aí já se convivia com a arte moderna. Nos anos anteriores à I Guerra Mundial, a pintura norte-americana transformara-se radicalmente, indo, por saltos em sua evolução, do academismo da passagem do século para uma arte moderna influenciada por fauvismo, cubismo, produzindo até obras abstratizantes.”

Créditos: Cecília Bastos
Marta Rossetti: determinação e pesquisa detalhada

A pesquisadora descreve o ambiente que Anita Malfatti encontrou. “A experiência de três anos e meio na Alemanha expressionista do pré-guerra provavelmente afastou Anita da ‘academia oficial’, no caso a escola da National Academy of Design. Inscreveu-se, então, na Art Students League, escola por onde passaram diversos dos primeiros modernistas norte-americanos.”

Diante de toda essa busca, a arte de Anita Malfatti causou uma surpresa. “Os olhos provincianos da paulistana de 1910 haviam se aberto para outros mundos. Anita agora raciocinava e intuía em outros termos: a obra de arte como entidade autônoma, servindo-se do modelo como pretexto. Era uma obra com estrutura própria, superfície para recompor formas e cores”, explica Marta. Amigos e familiares apontavam as obras que ela realizou nos Estados Unidos como “coisas dantescas”. A pintora desabafou: “Então, pela primeira vez na vida, comecei a entristecer-me, pois estava certa de que meu trabalho era bom, tanto os modernos franceses como os americanos o haviam dito espontaneamente, desinteressadamente. Só desejei esconder meus quadros já que, para me consolar, os outros acharam que eu podia pintar como quisesse”.

A artista e a estudante – Ao mesmo tempo em que conhece a vida de Anita, o leitor pode ir consultando o volume que documenta a sua obra. “Esta edição do catálogo de Anita visa traçar um roteiro documentado da produção da artista, contribuindo de forma segura para a análise de sua obra”, explica Marta Rossetti. “Privilegiei, desde o início, coleções específicas, que forneceram as informações básicas: os acervos da artista e de familiares, os de companheiros de trajetória, de alunos e de amigos.”

Anita Malfatti não deve ter contado com o idealismo daquela estudante de arquitetura. Marta Rossetti estava no último ano e recebeu, com outros alunos, a incumbência de fazer um trabalho sobre os pintores modernistas vivos. “O professor Flávio Motta queria desenvolver um acervo sobre esses artistas. Alguns alunos foram entrevistar Tarsila do Amaral, outros pesquisaram Flávio de Carvalho e eu fui procurar Anita”, conta.

A pintora, apesar da fragilidade de seus 75 anos, atendeu Marta com simpatia. “Ela estava muito magrinha, falava devagar.” Quando viu a estudante anotar o seu depoimento, a artista observou: “Você tem uma letra muito bonita, parece que está desenhando, e é canhota como eu. Só que eu sou uma canhota forçada”, brincou Anita. “Quando minha mãe, dona Elisabete, estava grávida, ela não percebeu que um sujeito com defeito na mão esbarrou na sua barriga e eu nasci assim.” A estudante sorriu. A artista contava sempre essa lenda. Depois, esclareceu: “Quando tinha 3 anos, fiz uma cirurgia para corrigir o defeito congênito da mão direita. Mas não deu certo e tive que aprender a usar a esquerda”.

Marta se encontrou outras vezes com Anita. Visitou a sua chácara em Diadema e a casa na Alameda Eduardo Prado, na Barra Funda, onde morava com a irmã Georgina, também solteira. A artista morreu em 6 de novembro de 1964 e deixou a sua história com detalhes nas mãos de Marta. Uma história que mudou o rumo da aluna da FAU que resolveu deixar a arquitetura para se dedicar às pesquisas sobre arte e, especialmente, à vida de Anita.

Anita Malfatti no tempo e no espaço, de Marta Rossetti, lançamento Edusp e Editora 34. Caixa com dois volumes (330p. e 498p.) com a biografia, documentação e catálogo da obra. Preço: R$ 88,00, www.edusp.com.br

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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