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Ofício ingrato – quanto a isto nada de novo. Para entender por que ele é tão difícil e cada vez mais ingrato, precisamos aprofundar o que significa ser médico no Brasil de hoje, contrastando com o que foi o exercício da profissão conforme a época e fazer um pouco de futurologia, com a tentativa de imaginar como será no futuro.

Houve algum tempo em que a Medicina era uma profissão liberal no sentido exato do termo: o médico não tinha patrão e não prestava contas a ninguém; a sua relação era com o paciente, por quem era remunerado – ou não era, já que trabalho beneficente ou sem o correspondente pagamento sempre foram parte do contexto, como continuam sendo. O paciente colocava-se numa situação de dependência total do conhecimento do profissional e, este, numa condição paternalista decidia o que fazer, como e até o que contar ao cliente. Na nossa opinião esse era um péssimo sistema de atuação, sem auditoria, sem normas, no qual cada um procedia como achava melhor e, com freqüência, sem reportar-se ao que chamamos hoje de medicina baseada em evidência. Falamos muito dos grandes expoentes da medicina que a exerceram nesta época e esquecemos dos muitos que erravam e insistiam no erro, que achavam porque achavam e, pior que isto, ensinavam o que acreditavam como se fossem verdades científicas verdadeiríssimas, passando suas impressões para frente. Os enfermos que não tinham acesso à medicina paga dependiam de Santas Casas, incluindo a boa vontade dos doutores que por lá passavam quando e como queriam. Controle de qualidade nem pensar, pois ninguém aceitava palpite na sua atuação.

Esta etapa acabou – e não vemos grandes razões para lamentar este fim do ponto de vista técnico. Quanto à remuneração sim, a coisa piorou muito e tende a agravar-se cada vez mais. Isto, no entanto, não acontece por causa das mudanças da maneira de atuar dos médicos hoje e sim pela proliferação de escolas de medicina de péssima categoria, cuja finalidade caça-níqueis torna-se favorecida pelos egos gigantescos de cidadãos que jamais deveriam ser professores de coisa nenhuma. Estes senhores e senhoras justificam aquela velha piada que reza: quem sabe, sabe, quem não sabe ensina. A multiplicação desses cursos começou quando a ditadura resolveu expandir o número de faculdades de medicina para atender em parte a classe média que a apoiou e alguns filhos de figurões que jamais entrariam numa faculdade decente, mas resolveram que queriam porque queriam diplomar-se em medicina em vez de seguir a profissão paterna – o que de certa forma é um castigo injusto, já estão agora pagando o pecado dos pais.

Entre uma posição e outra mudou o próprio modo de ver a profissão e de exercê-la. A base científica da medicina expandiu-se de uma maneira explosiva, impedindo que as faculdades forneçam formação aos alunos, já que em dois anos tudo muda e renova-se; os conhecimentos necessários para exercer a profissão de uma forma adequada também ampliaram-se e hoje é necessário, para ler um artigo de maneira crítica, que o médico primeiro entenda a língua internacional científica, o inglês, pelo menos o escrito; que tenha conhecimentos razoáveis de bioquímica e, eventualmente de biofísica, dependendo da especialidade e, com certeza, possua adequado respaldo estatístico, percebendo problemas nas tabelas e nos dados brutos que são fornecidos em textos. Na verdade, a leitura de um informe científico é fundamentalmente ir no “material e métodos”, chegando aos resultados para organizar mentalmente a discussão que faria com esses elementos. Por fim, deve ler tal discussão apresentada pelos autores e comparar com a sua. Progressivamente, com esta difusão do conhecimento, é possível aprofundar-se mais em menos, justificando uma outra piada, de que o especialista em medicina sabe cada vez mais de menos coisas.

Se imaginarmos um médico bem formado, com conhecimentos básicos e capaz de descobrir a informação sozinho – pois é outro ponto fundamental na formação, o futuro médico tem que saber onde arrumar as informações mais recentes e ler com espírito crítico os últimos artigos científicos a respeito do assunto preferido – e o soltarmos na vida, ele vai ter enormes problemas. Primeiro, porque a medicina bem cumprida hoje precisa de muito apoio de imagem e de laboratório, o que nem sempre é facilmente disponível por aí. Segundo, porque ele não vai dispor de tempo suficiente para estudar cada caso com a profundidade que cada um merece. Pior ainda, não vai conseguir chegar no fim do dia e ir consultar o computador a propósito das muitas dúvidas que, com certeza, terá. Sim, porque no momento em que não se deparar com elas, admitamos o término de sua carreira de médico como cientista biológico, iniciando-se fossilização in vivo – que pode começar muito cedo na carreira, e até mais depressa do que poderia ser suspeitado.

Ao lado disso temos o panorama caótico do exercício profissional no Brasil: os médicos trabalham em instituições, públicas ou privadas, que impedem o vínculo médico-paciente. Com todo o progresso da medicina há um fato que não muda e não tem como alterar: é uma relação entre pessoas, não entre pessoa e instituição. Este fato é de dificílima compreensão nas altas esferas administrativas, que encaram o médico como se fosse algo descartável ou intercambiável, no sentido de que é tudo igual, ou ainda mais – para alguns donos de determinados planos de saúde exatamente devasso, pois vende-se a qualquer um que lhes pague tostões a mais. Vale outrossim lembrar a compostura de alguns iluminados que consideram a grife de uma instituição superior à referida relação médico-paciente e, por isso mesmo, devendo o médico submeter-se ao que o empresário determine, senão ele o troca sem perda da qualidade. Aliás, a mensuração da qualidade da assistência médica não é tão problemática como alguns querem fazer crer.

É preciso destacar, em acréscimo, a má remuneração que tende a acentuar-se por razões de mercado: médico não falta na praça. Citando mais uma vez ilustre empresário no âmbito da medicina, médico é que nem sal: anda de branco e é muito barato. Mas existem condições ainda mais dramáticas, ligadas a esta nossa pátria complicada: junto com os médicos que trabalham com medicina baseada em evidências temos muitos profissionais que lidam com as práticas ditas alternativas, que não têm substrato científico nenhum. Ainda que algumas destas coisas sejam reconhecidas pelas nossas sociedades, isto não lhes dá respaldo científico. Nossas agências regulatórias neste aspecto são sensacionais: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que exige garantias de segurança e de atividade de todos os remédios farmacêuticos, simplesmente não controla e não vigia as terapêuticas qualificadas como alternativas, nem mesmo sob o prisma da segurança.

A pergunta que fica no final é se há apropriado desenlace para o ofício de médico neste país. Talvez seja viável, desde que aconteça verdadeira revolução nos sistemas de trabalho e de ensino. Algum dia isto sobrevirá. Algum dia...

Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak são médicos e professores universitários


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