Na periferia marginalizada de uma São Paulo em construção,
o som retumbante dos batuques anunciava uma cultura imigrante que
mais tarde influenciaria a cultura brasileira de forma definitiva.
Os negros, últimas gerações de escravos do
final do século 19, resgatavam sua identidade perdida nos
navios negreiros com o som dos seus instrumentos peculiares em
um samba rural e popular, improvisado em meio às lavouras
cafeeiras. Não eram poetas ou compositores, mas cantavam
sua vida em ritmo dançante e contagiante.
Esta história e suas conseqüências são
ricamente contadas no documentário Samba à Paulista
- fragmentos de uma história esquecida. O documentário
realizado por alunos da Escola de Comunicações e
Artes e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP resgata, através de depoimentos e vídeos antigos,
a história daquele que é o mais característico
ritmo musical brasileiro e que na próxima semana embala
a todos no festejo do Carnaval. O documentário está sendo
exibido pela TV Cultura em três partes. O último episódio
vai ao ar nesta quinta-feira, 15 de fevereiro, às 23h40.
Carlão do Peruche que acompanhou de perto a mudança
dos cordões para
escolas de samba. Na direita, uma das raras imagens registradas
de um cordão, em 1937.
Com poucos registros históricos existentes, o documentário
trabalha sempre com um diálogo entre o histórico
e o atual, costurado pelo depoimento de estudiosos e daqueles que
viveram os momentos áureos deste movimento popular. Personagens
como Toniquinho Batuqueiro, Mestre Feijoada, Geraldo Filme, Germano
Mathias e Nelson Primo contam as histórias que São
Paulo não registrou e trazem à tona um movimento
que por pouco não se perde no tempo. E é neste resgate
de depoimentos e da história que está a grandiosidade
do documentário.
Quando os negros chegam das lavouras de café à capital
após a instauração da Lei Áurea de
1888, trazem consigo toda a cultura musical do interior. A cidade
não os aceita e eles partem para a periferia em um movimento
urbanístico de marginalização. Nas fronteiras
da cidade, eles constroem centros de resistência e terreiros
onde podem desenvolver sua cultura. “Entender a participação
do negro neste movimento é a parte mais ensaística
do documentário. Trabalhamos com depoimentos como gancho
para contar esta história e usamos os raros textos que a
retratam para ajudar a compor o cenário”, explica
Gustavo Mello, diretor do documentário.
Dionísio Barbosa, fundador do primeiro cordão de
São Paulo
“Esses negros trouxeram para São Paulo o mesmo ritmo
que levaram para a Bahia ou para o Rio de Janeiro, mas aqui isso
se perdeu”, aponta Eduardo Piagge, assistente de direção
e pesquisador. Em São Paulo, o negro não conseguiu
se integrar à sociedade e assim como seu samba de batuque
tornou-se elemento marginal até meados do século
20.
Já no Rio de Janeiro, cidade que mais tarde seria modelo
de Carnaval para São Paulo, os poetas e compositores abraçaram
esse ritmo popular e improvisado. Com a ajuda da Rádio Nacional,
a urbanização do samba rural foi difundida e popularizada. “O
que mais difere no Rio foi a receptividade do espaço urbano
a este movimento rural. Lá, eles estão mais próximos
dos morros onde se desenvolveu o ritmo e mais para frente você vê as
autoridades visitando os galpões das escolas de samba. Em
São Paulo há este movimento de urbanização,
mas não há a difusão como houve no Rio”,
conta Mello. Dionísio Barbosa e os cordões – A história
do samba em São Paulo é feita de alguns grandes nomes.
Um deles e talvez o primeiro é Dionísio Barbosa,
negro da primeira geração de escravos livres que
veio para a capital em busca de oportunidades como liberto. Aqui,
foi para a Barra Funda, reduto negro da cidade.
Nascido em 1891, Dionísio uniu a expressão do interior
paulista com a influência do samba do Rio de Janeiro, onde
conheceu a Festa da Penha e todas as tradições carnavalescas
cariocas. Em 1914, reuniu sua família e foi para as ruas
festejar, cantar e tocar o samba que iniciou a tradição
dos cordões. “Ele é emblemático porque
cria essa manifestação genuína que é bem
típica de São Paulo. Já havia na cidade eventos
carnavalescos, mas eram manifestações da classe rica
e branca. O Cordão Barra Funda era o primeiro movimento
cultural organizado dos negros, o primeiro cordão da cidade,
algo pequeno, composto por 15 a 20 pessoas”, explica Mello.
No Cordão da Barra Funda, os homens ensaiavam e desfilavam
pelas ruas vestidos com camisas verdes e calças brancas.
Este movimento foi o embrião do hoje Grêmio Recreativo
Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco.
Mais do que um grupo que desfilava no carnaval, o cordão
era um espaço de identidade reativa dos negros onde eles
cultivavam todos os elementos de sua cultura. “O cordão
era o espaço deles, onde realizavam bailes, cortejos e até piqueniques
com elementos típicos de sua culinária em Santos
ou no interior. O samba era uma parte dessa manifestação
cultural”, conta Piagge. Logo os cordões vão surgindo pelos bairros e terreiros
ocupados pelos negros, como a Baixada do Glicério e Bexiga.
Na época do Carnaval, os negros se fantasiavam de corte
européia, com direito a rei, rainha, conde, duquesa e toda
a linhagem real. Nas imagens recuperadas de um documentário
de 1937, os negros dançam com suas perucas brancas e roupas
elegantes levando os estandartes com o nome do grupo. À frente,
vinha a baliza, alguém habilidoso que fazia diversas piruetas
com um bastão. Atrás, a bateria formada por instrumentos
de sopro, violões e muitos surdos, liderados por um apitador.
Saindo de seus territórios de periferia, os negros invadiam
os espaços tipicamente brancos causando reações
agressivas por parte de uma sociedade ainda acostumada com a escravidão. “Muitas
vezes, as camadas com mais dinheiro jogavam bexigas com urina ou
mesmo agrediam fisicamente os participantes dos cordões.
A maioria deles preferia usar a força policial para reprimir
a manifestação popular negra na cidade, assim os
policiais levavam instrumentos ou mesmo prendiam membros”,
conta Mello.
Dos cordões às escolas — Em meados do século
20, as escolas de samba começaram a sufocar os cordões.
Inspirada pelo sucesso do Carnaval carioca, a população
branca começa a se envolver no movimento e até a
fundar suas próprias escolas. “Começaram a
surgir mais escolas de samba do que cordões pela cidade.
Mudou a manifestação. Não que tenha sido ruim,
mas essa influência do Rio de Janeiro acabou sublimando um
movimento típico de São Paulo”, afirma Mello,
diretor do documentário. No início, era uma manifestação amadora. As
escolas ainda eram majoritariamente negras e pobres e não
tinham verbas para sustentar um desfile luxuoso de fantasias e
carros alegóricos. Para pagar os custos, eles passavam a
taça do ano anterior para que os membros contribuíssem.
Já em 1967, com a ditadura militar recém-instaurada
no País, o governo decide oficializar o Carnaval paulistano
como forma de distrair o povo da repressão política. “O
que era mais fácil para iludir o povo? Futebol e Carnaval”,
relata Evaristo de Carvalho, radialista que participou deste movimento.
No entanto, o então prefeito de São Paulo Faria Lima,
um carioca de Vila Isabel, não confiava nos dirigentes das
escolas para cuidar da verba. Assim, decidiu repassá-la
para a Rádio Record. Os papas do samba ficaram indignados
e decidiram unir-se para garantir que no ano seguinte eles recebessem
o dinheiro diretamente. Elegeram como porta-voz Moraes Sarmento,
que ficou encarregado de falar com o prefeito.
Aceita a proposta de Sarmento, Faria Lima exigiu que o Carnaval
paulistano tivesse a mesma estrutura e organização
do evento carioca. Com a conivência dos sambistas, foi imposto às
escolas daqui o mesmo regulamento das do Rio de Janeiro, que determinava
todos os detalhes da apresentação e do julgamento
dos desfiles. “Segundo os pesquisadores, importar o modelo
do Rio foi a forma encontrada pelos sambistas de São Paulo
para legitimar seu movimento, de fazê-lo aceito e valorizado
pela parcela da sociedade que agredia os negros do cordão.
E muitos desses sambistas viam no modelo carioca o verdadeiro modelo
de Carnaval”, relata o diretor.
Com a adoção do modelo carioca, os cordões
que antes se espalhavam pelas ruas de toda a cidade foram concentrados
em duas avenidas da capital: São João e Tiradentes. Já no início dos anos 90, durante o governo da prefeita
Luisa Erundina foi criado o Sambódromo do Anhembi, local
onde se concentra o Carnaval paulistano até hoje. “Hoje
não tem mais Carnaval, tem desfile. Estamos confinados no
Sambódromo”, critica Carlão, “embaixador” da
Unidos do Peruche que foi acompanhado pela equipe do documentário
durante todo o dia de desfile de sua escola no Carnaval de 2006. “Hoje
o ônibus vai à quadra, apanha as alas, leva para o
Sambódromo, descarrega na concentração, vai
para a dispersão, para o desfile, sobe no ônibus e
vai para a quadra. Lá, põe a roupa e vai embora”,
resume o radialista Evaristo de Carvalho.
Com o confinamento no Sambódromo, o Carnaval perdeu não
só espaço como a participação popular,
sua característica mais marcante. “Não pertence
mais ao povo, ao pobre. Pertence a quem pode pagar, a quem tem
dinheiro”, critica o sambista Oswaldinho da Cuíca.
Oswaldinho da Cuíca Para o pesquisador Eduardo Piag-ge, a única Escola de Samba
que mantém um pouco da tradição dos cordões é a
Vai-Vai. Segundo ele, ela apresenta um samba de som mais forte
e mais similar às marchas de tradição rural,
graças à sua bateria mais pesada, com destaque para
os surdos espalhados entre os diversos membros.
Terra das oportunidades – Mas não era só no
Carnaval que se fazia samba. O ritmo contagiante inspirou sambistas
do Rio e de São Paulo, que, cada qual a seu jeito, começaram
a desenvolver o novo ritmo para as rádios nacionais. Manteve-se
o batuque pesado do samba rural como fundo para letras agora com
estrofes e refrões. Era o samba rural urbanizado que ganhou
o País em músicas como Está chegando a hora,
de Henricão, compositor do primeiro samba da Vai-Vai, em
1928.
Se no Rio de Janeiro o Carnaval virava modelo para o País,
era em São Paulo que os sambistas viam o dinheiro e as oportunidades
em casas como o Jogral e Oba Oba. Assim, os nomes mais talentosos
migraram para cá em busca de trabalho e de espaço
para cantar. “Martinho da Vila conta que todo o início
de sua carreira foi aqui em São Paulo. Aqui tinha espaço
e público. Mesmo nos anos 60, os sambistas de São
Paulo ainda não tinham se consolidado como grandes cantores.
A única exceção é o Adoniran Barbosa
e mais tarde o Germano Matias. Quem fazia sucesso era mesmo os
cariocas”, aponta Piagge.
O Carnaval é hoje um dos eventos mais aguardados por brasileiros
e até estrangeiros, mas há mais heranças deste
samba rural dos negros espalhados pelo Estado.
A essência do samba familiar permanece viva em grupos do
interior paulista como o Samba de Bumbo em Vinhedo e o Tambu de
Piracicaba. “São as manifestações mais
fortes deste samba do século 19 que encontramos, movimentos
que se mantêm por uma tradição familiar ao
longo das décadas”, cita Piagge.
Mas como toda manifestação cultural, a história
do samba rural é viva e constantemente reconstruída
sob as influências dos novos tempos. O samba de hoje mantém
o batuque, mas conta uma outra história. Uma história
miscigenada de brancos e negros, de outras dificuldades, alegrias
e tristezas e que está se perdendo a cada nova geração.
Os depoimentos de sambistas do interior ilustram bem a mudança
na interação do batuque com a comunidade. “Ao
mesmo tempo em que esses grupos mantêm o samba de batuque
por uma tradição familiar, é cada vez mais
evidente seu enfraquecimento nas cidades. Quando fomos para Tietê filmar
a festa de lá, ninguém sabia dizer onde ou mesmo
quando ela acontecia”, revela o diretor Gustavo Mello. No outro lado estão aqueles que na ânsia de preservar
uma história por tanto tempo marginalizada vêem o
samba rural como um folclore. “É muito complexo aceitar
esta herança e deixá-la em aberto para que ela sofra
as transformações naturais da cultura. As pessoas
entram num radicalismo que se fecha em si mesmo e que não
aceita a pluralidade do movimento”, critica Piagge.
Cena do Tambu de Piracicaba que mantém a tradição
do samba rural
Samba à Paulista não se propõe a dar um final
para a narrativa. Ele deixa ao espectador a oportunidade de pensar
naquela que é sua principal questão: o que fazer
com esta história? Para tal, oferece os depoimentos de defensores
da tradição e aqueles que tocam o samba urbano, influenciado
pelo movimento do Rio de Janeiro. “Nós não
queremos fazer o documentário definitivo do Samba de São
Paulo. Nós sabemos que se esse documentário for feito
daqui a dez anos, vai ser diferente. É um processo em constante
mudança e nosso documentário está dentro disso”,
resume Mello.
Serviço
Além da exibição na TV Cultura, o grupo
pretende mostrar o documentário em escolas, museus e centros
culturais, além de disponibilizar o conteúdo das
160 horas de filmagem para consulta pública.
Mais informações sobre o Samba à Paulista podem ser encontradas
no site do documentário, www.sambaapaulista.com.
A avó das escolas de samba
Madrinha Eunice, criadora da Lavapés, a primeira escola
de samba de São Paulo.
Fundada na Baixada do Glicério em 1937,
a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva Lavapés foi
a primeira Escola de Samba de São Paulo. Sob a presidência
de Madrinha Eunice, a escola encantou a cidade com seus desfiles
e tornou-se a mais importante manifestação do Carnaval
paulista nas décadas de 40 e 50. “Ela foi 19 vezes
campeã na sua época de ouro. Ganhava de todos”,
conta Mello, diretor do documentário.
Apesar do título de escola impresso em seu estandarte,
a Lavapés tinha todos os elementos de um cordão:
a corte, os instrumentos de sopro e os violões. Seus membros
desfilavam entoando as marchas de sucesso na rádio, como
as de Carmem Miranda, fator que contribuiu para seu enorme sucesso.
De suas alas e bateria saíram alguns dos fundadores das
grandes escolas do Carnaval paulistano. “Vila Maria, Unidos
do Peruche. Muitos passaram por aqui, aprenderam por aqui e depois
fundaram a (escola) deles. Por isso considero a Lavapés
a avó das escolas”, gaba-se Madrinha Eunice em uma
entrevista de arquivo recuperada pela equipe do documentário.
Hoje confinada à casa de Rose, neta de Madrinha Eunice
e atual presidente da sociedade, a Lavapés sobrevive no
ostracismo do segundo grupo. Espalhadas pelos cômodos da
casa, as fantasias são preparadas pelos membros da comunidade.
Nas ruas em que ela desfilava, hoje se vê apenas carros
e pedestres que por ali passam sem saber dos dias de glória
na Rua do Glicério. “O Carnaval começou a
evoluir muito e ela não acompanhou, ficou nos mil novecentos
e nada”, avalia Rose sobre a decadência da escola. “Um
dia ela foi campeã hegemônica, hoje ninguém
ouve mais falar dela. É o caso mais expressivo de como
esta memória está se perdendo e para mostrar que
não é uma história só de flores,
mas também de perdas”, analisa Piagge, pesquisador
do documentário.
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