Alguns biógrafos de Joseph Goebbels,
quando tratam de sua vida amorosa, relacionam seu namoro com Anka
Stalhern como sendo o indutor de seu romance Michael (publicado
em 1929). É possível que a paixão de Michael
por Hertha, figuras centrais do enredo da obra, retrate a vida
do Goebbels e Anka, entre 1918 e 1922. Anka reaparece na vida de
Goebbels quando ele, já ministro, conseguiu-lhe um trabalho
na redação do Die Dame.
Fatos como esse foram comuns na história oculta da imprensa
brasileira desde os seus primórdios. Desocupados e desempregados,
sem a menor aptidão pela profissão, se tornaram jornalistas
pelo simples fato de serem amigos (ou algo mais) de alguém
que detinha algum poder político ou econômico que
pudesse interferir na saúde financeira da empresa de comunicação.
Jornalismo no Brasil, até 1969, era sinônimo de subemprego
para muitos “profissionais”. Era regra, por exemplo,
uma emissora de rádio contratar funcionários públicos
como “setoristas” para cobrir os seus próprios
departamentos. Juntando os baixos salários pagos pela repartição
e pela empresa radiofônica, o jornalista do setor tinha um
valor agregado aos seus vencimentos representado pelo “agrado” dado
por aqueles que o procuravam para resolver alguma situação
irregular junto ao órgão público. Multas de
trânsito, regularização de loteamentos, religação
de água, asfaltamento de ruas e até nome de vias
públicas faziam parte do conjunto de problemas que esses “profissionais
de imprensa” conseguiam resolver.
Essa promíscua convivência entre o poder, o jornalismo
e a conduta aética do comunicador foi drasticamente reduzida
com a regulamentação profissional. Ainda que a legislação
tenha sido excessivamente pormenorizada na descrição
de funções e especialidades, não se pode negar
que ela veio como uma solução para amainar os efeitos
do mau jornalismo. Contudo, como toda aplicação de
leis no Brasil, foram produzidas emendas para acomodar alguns casos,
não raro inspiradas em interesses particulares.
Com a abertura democrática, as reformas feitas na legislação
foram insuficientes para impedir que algumas categorias, em defesa
das liberdades de informação e opinião, se
insurgissem contra o que foi taxado de entulho autoritário.
E a história começou a ser reescrita. Os defensores
da abertura do mercado profissional baniram alguns motivos que
foram propulsores da regulamentação. Deixaram de
citar, por exemplo, que muitos jornalistas foram cassados e perseguidos
por defenderem as liberdades democráticas e que suas vagas
no mercado foram preenchidas por “profissionais” fiéis
ao regime.
Resistência – Na Escola de Comunicações
e Artes, um dos berços da regulamentação,
os professores que permaneceram no quadro docente do Departamento
de Jornalismo e Editoração resistiram durante dois
anos aos ataques da ditadura que pretendia substituir os professores
encarcerados e cassados por “jornalistas” e professores
que desfrutavam da confiança dos representantes da ditadura
com assento na Reitoria.
Os argumentos apresentados levam a crer que a legislação
sobre a profissão de jornalista já cumpriu o seu
desígnio. Por esse motivo os ataques à sua existência
se intensificaram e o discurso centrado na defesa da liberdade
de informar e opinar avança e encobre as verdadeiras razões
que alimentam essa pressão sobre os destinos do direito
fundamental do cidadão de ser informado e de opinar.
Mesmo com o decreto-lei 972-69 em plena vigência, é possível
desvendar algumas razões subjacentes à campanha contra
a regulamentação profissional. As práticas
que esperam a liberalização do mercado profissional,
criadas pelas empresas com a anuência de jornalistas, apontam
para o descolamento da atividade de sua função social,
tornando-a parte de uma mera engrenagem de relações
de trabalho assalariado.
Algumas emissoras de rádio, por exemplo, têm boa parte
da grade entregue a articulistas que, em geral, têm os seus
comentários veiculados a cada seis horas de programação. É claro
que esse tipo de participação é importante
para a sociedade. Ela necessita da opinião abalizada de
suas lideranças. Entretanto, a grande maioria desses articulistas
defende interesses próprios ou de organizações.
Fazem direta ou indiretamente marketing de suas consultorias para
agregar valor aos seus contratos. Os políticos encontram
nesse expediente uma forma de estarem presentes junto ao eleitorado
visando à manutenção do poder ou alimentando
o desejo de tê-lo. Essa demonstração de “responsabilidade
social”, não raro, é uma permuta: a emissora
recebe algum tipo de aconselhamento do articulista e ele pode vender
serviço, produto ou idéia aos ouvintes.
No jornalismo impresso essa prática é menos corrente
nos grandes veículos, entretanto, nos pequenos jornais ela
cobre boa parte da área impressa de textos próprios.
A título de cobertura social, literatura e serviço
público, os colaboradores tornam dispensáveis os
jornalistas e criam consciente ou inconscientemente uma rede de
dominação de idéias e fatos que sufocam o
noticiário de interesse da comunidade. Esses colaboradores
são movidos pelo egocêntrico desejo de pertencerem
ao olimpo local.
Na televisão, a distorção da essência
do jornalismo talvez seja mais grave do que nas demais mídias.
Os apresentadores, travestidos de jornalistas e usando o vocabulário
da área, entrevistam e editorializam falas a respeito de
fatos. Sem o menor vínculo com a ética jornalística,
mas buscando pontos de audiência necessários à manutenção
de seus programas e à negociação de contratos,
esses pseudojornalistas fazem do fato um show e do sensacionalismo
um padrão.
O modelo de noticiar da internet, principalmente o que tenta
fazer o chamado jornalismo em tempo real, veio sepultar de vez
a natureza jornalística da notícia. Na luta por alguns segundos
a mais de audiência em relação ao concorrente,
as informações são transformadas em fatos
jornalísticos e estes em notícias sem qualquer critério
de noticiabilidade. Os redatores, na maioria das vezes, desconhecem
a que público se dirigem e por isso mesmo são responsáveis
por redes de rumores e boatos que se disseminam pela rede sem a
possibilidade de controle. A essência do jornalismo, representada
pela apuração, inexiste.
No mercado profissional está havendo uma verdadeira subversão.
Algumas empresas, para se livrarem dos custos sociais de seus empregados,
implementaram a prática de transformar os seus jornalistas
em “pessoas jurídicas”. Essas “pessoas
jurídicas” lançaram-se no mercado do lucro
fácil e se transformaram em codificadores autônomos,
que vendem a força de trabalho que coordenam (formada por
alguns profissionais autônomos e muitos estagiários)
pela maior oferta. Não interessa a esses olimpianos a história
da empresa, do empregador, os fundamentos ideológicos e
os compromissos sociais e políticos (ou a falta deles) que
pairam sobre a organização. São “pessoas
jurídicas” que, como camaleões, assumem os
matizes ditados pelo patronato. Perderam de vez o vínculo
do jornalismo com a sociedade e, por isso mesmo, desprezam os princípios éticos
e os compromissos da profissão com os direitos fundamentais
do cidadão.
Bombardeio – Esses motivos são as partes mais visíveis
do bombardeio que vem sendo feito contra a regulamentação
da profissão. É importante observar que a batalha
já se dá dentro do próprio território
dos jornalistas. Os insurgentes, munidos de discursos envolventes,
conquistam a simpatia daqueles que se aproveitam da oportunidade
para, sorrateiramente, minar o campo inimigo. Não faltaram “jornalistas” que
se aproveitaram do recente vácuo jurídico para obter
o registro profissional.
Mais do que nunca é preciso entender que o jornalismo é uma
das formas de defesa dos direitos fundamentais do homem. A sua
existência pressupõe a proteção de direitos
básicos do indivíduo, principalmente daquele que
não tem acesso aos meios. E essa certeza é dada pelo
comprometimento do verdadeiro profissional com a ética.
A defesa da primeira geração dos direitos fundamentais – aqueles
relacionados à liberdade – coloca o jornalista na
linha de frente pela limitação do poder público,
principalmente porque o seu compromisso maior é com o exercício
pleno da cidadania. A existência de uma classe eticamente
organizada e com compromissos formais com essa bandeira garante
que os cidadãos tenham acesso aos meios, independentemente
de cor, raça, religião, nível intelectual,
condição educacional, trabalho e classe social.
A igualdade, que constitui a segunda geração dos
direitos fundamentais, tem no jornalista um instrumento importante
para que ela se consubstancie. A sua ação, que por
dever de ofício prega a audiência dos vários
lados do fato, permite que os direitos sociais dos cidadãos
possam ser protegidos contra a prevalência do poder econômico,
social ou político. A ação jornalística
procura dar a todos os membros da comunidade a possibilidade de
acesso à informação e à opinião.
A defesa da terceira geração dos direitos fundamentais
também é parte integrante das atividades do jornalista.
O preceito fundamental de que “todos são iguais perante
a lei”, portanto com direito ao desenvolvimento, à comunicação,
ao consumo e a própria individualidade, faz parte da cultura
jornalística que, dentro de seus limites de atuação,
oferece à sociedade condições para defender-se
das organizações que venham colocar em risco esses
direitos.
O discurso de que o fim da regulamentação da profissão
de jornalista será a retomada da liberdade de informação
torna-se, pois, uma falácia. A possibilidade de que todos
tenham acesso à comunicação não garante
que todos façam uso dela. Obstáculos de toda ordem
podem afastar o cidadão de seu direito de opinar e informar
e permitir que aqueles que têm habilidades, competências
técnicas e, de certa forma, intimidade com os meios, possam
construir aparelhos ideológicos que destruam esses direitos
fundamentais que fazem parte da organicidade das funções
jornalísticas.
A discussão que se apresenta atualmente para a sociedade,
em grau de maior importância do que a própria regulamentação
profissional, é a que se refere ao conceito de jornalismo
face às novas tecnologias e recentes práticas de
comunicação patrocinadas pelos modernos meios. Construir blog ou site com formato jornalístico não
garante que o conteúdo o seja, assim como nunca foi correto
afirmar que é jornalista quem escreve em um meio com a forma
de jornal. A natureza do jornalismo está consubstanciada
na apuração e na responsabilidade ética. O
jornalista é o valor agregado que dá à informação
o status de notícia por se tratar de um profissional compromissado
com os seus fundamentos.
A regulamentação, com certeza, não garante
que o jornalista cumpra as obrigações idealmente
inerentes à sua função social. Ela, por si
só, não o credencia como defensor dos direitos do
cidadão. Mas, a considerar a nossa história recente, é um
instrumento que institui valores e comportamentos que resultam
em segurança para as instituições que emanam
da sociedade democrática.
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