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A série Direitos Humanos, da Edusp, prevê a publicação de cinco volumes: Construindo a democracia – Direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina, organizado por Elizabeth Jelin e Eric Hershberg, R$ 56,00; Direitos humanos: uma Antologia, de Micheline R. Ishay, R$ 96,00; Direitos humanos – Referências essenciais, organizado por Carol Devine, Carol Rae Hansen e Ralph Wilde; Educação em direitos humanos para o século 21, organizado por George J. Andreopoulos e Richard P. Claude; Direitos humanos e estatística – O arquivo posto a nu, organizado por Thomas B. Jabine e Richard P. Claude.

 

Uma das primeiras notícias da Bíblia é um homicídio. Em família. Caim matou Abel.

Seja como for que se entenda a narrativa – como história, mito ou símbolo –, desde as origens a civilização do homem é uma contínua busca, definição, codificação, defesa e... violação dos direitos humanos. E o primeiro e maior deles é o direito à vida. Violá-lo é o maior crime. Grave, quando contra uma pessoa; gravíssimo, quando contra muitas ao mesmo tempo. “Considero genocídio, escravidão e tortura as mais graves violações de direitos humanos, porque sua prática requer e implica negação radical da humanidade, da dignidade e dos direitos das vítimas.” Palavras de quem entende de direitos e de violações: Paulo de Mesquita Neto, graduado em Comunicação Social pela PUC de São Paulo, em Direito pela USP, com mestrado e doutorado em Ciência Política pela Columbia University, dos Estados Unidos, assessor da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e pesquisador-sênior do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.

O NEV é mais uma vez notícia porque, em parceria com a Edusp e a Presidência da República, acaba de dar início a uma série de cinco publicações sobre direitos humanos, sendo que duas já estão nas livrarias. A primeira e mais alentada, com mais de 800 páginas, chama-se Direitos humanos: uma antologia – Principais escritos políticos, ensaios e documentos desde a Bíblia até o presente. Trata-se de tradução de original em inglês, coordenado por Micheline R. Ishay, diretora do International Human Rights Program da Universidade de Denver, nos Estados Unidos. A outra, Construindo a democracia – Direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina, também é tradução de obra norte-americana organizada pelos pesquisadores Elizabeth Jelin e Eric Hershberg. De acordo com a apresentação, assinada por Paulo Vannuchi, secretário especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, e Eduardo Manoel de Brito, pesquisador do NEV, o livro inclui “um ensaio sobre um novo tipo de violação dos direitos sancionado pelo Estado: a agressão aos direitos dos criminosos comuns como resposta ao aumento dos índices de criminalidade nas áreas urbanas”.

Educação – Também a professora Roseli Fischmann, da Faculdade de Educação da USP, ressalta a importância da publicação dos documentos relativos aos direitos humanos, que “vem lembrar os compromissos inalienáveis do mundo acadêmico com a plena dignidade humana”. Ela lembra que, em 1998, sob sua coordenação, a USP, em colaboração com a Unesco e a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, publicou o Manual de Direitos Humanos no cotidiano, comemorando os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Segundo a educadora, “o fato de os direitos humanos serem complementares e interdependentes, como proclamado na Conferência de Viena de 1993 e seguidamente reiterado, indica como é relevante considerar o conjunto das questões econômicas, sociais e culturais, juntamente com as questões políticas e civis, e a boa divulgação dos documentos internacionais, bem como textos de reflexão e aprofundamento, são indispensáveis para que se possa consolidar no País uma cultura que lute pela plena garantia dos direitos universais”. Como acadêmica, Roseli tem se dedicado à temática das minorias étnicas e religiosas e do anti-racismo, em particular em suas ligações com a educação escolar, em todos os níveis. Identificar a maior infração aos direitos humanos, hoje, é difícil, de acordo com a professora, “tendo em vista tanto o momento dramático que vivemos, como a relevância de ponderar permanentemente acerca da complementaridade desses direitos. Por outro lado, devemos celebrar o espaço que a USP tem sido em debate atento e de relevante colaboração com a sociedade civil e com o Estado brasileiro no tema”.

Tortura – Na defesa do ponto de vista de que genocídio, escravidão e tortura constituem as mais graves violações de direitos humanos, Mesquita Neto diz que parte essencial do processo de desenvolvimento das civilizações contemporâneas foi a limitação e controle da prática desse tipo de violência. “Sua persistência ainda hoje, em larga escala em alguns países e especialmente em situações de guerra, mostra a dificuldade, fragilidade e importância do processo civilizatório e das instituições e políticas internacionais e nacionais de proteção e promoção dos direitos humanos.”

Nas sociedades contemporâneas, continua o pesquisador do NEV, essas três formas de violação de direitos passaram a ser amplamente condenadas, mas continuam a ocorrer, ainda que de forma não institucionalizada, e os responsáveis freqüentemente permanecem impunes. “Quando o governo de uma sociedade democrática como os Estados Unidos não apenas tolera a prática da tortura, mas ainda redefine o conceito de tortura a fim de legalizar e incentivar o uso da violência em interrogatórios de suspeitos, é evidente que, no mundo contemporâneo, as instituições responsáveis pela limitação e controle do genocídio e da escravidão estão mais enraizadas do que as instituições responsáveis pela limitação e controle da tortura. Existem diversos e novos tipos de violações de direitos humanos nas sociedades contemporâneas, mas poucas são tão disseminadas e enraizadas como a tortura.”

Não é diferente no Brasil, onde, de acordo com Mesquita Neto, a tortura continua a ser problema gravíssimo, uma prática rotineira de que são vítimas pessoas sob custódia da polícia e do Estado, principalmente em estabelecimentos prisionais e unidades de internação de adolescentes. Afirma o pesquisador do NEV: “A tolerância em relação à tortura de adolescentes e a impunidade dos responsáveis, que até fazem questão de se exibir na mídia, como se estivessem fazendo justiça, são um dos sinais mais evidentes de déficit de civilização e de democracia que existem no Brasil”.

A propósito da série Direitos Humanos, do NEV e da Edusp, Mesquita Neto observa que, no Brasil, o conhecimento da história dos direitos humanos e das instituições e organizações políticas de proteção e promoção dos direitos humanos ainda é incipiente. Data de 1996 o Primeiro Programa dos Direitos Humanos. Documentos básicos para a compreensão dessa história e da história de construção das sociedades civilizadas e democráticas em que a maioria da humanidade deseja viver não estão disponíveis em língua portuguesa. “Traduzir esses documentos e tornar essas informações acessíveis ao público brasileiro, aos formadores de opinião, aos professores, pesquisadores e estudantes, lideranças civis e políticas é um passo importante para a garantia dos direitos civis, políticos e sociais, para a consolidação da democracia e a promoção do desenvolvimento econômico e social do País.” Assim pensou e fez o NEV.

Antologia – O primeiro volume da série Direitos Humanos se divide em sete partes: Humanismo Religioso e Estoicismo: As Origens dos Direitos Humanos, da Bíblia à Idade Média; Liberalismo e Direitos Humanos: o Iluminismo; Socialismo e Direitos Humanos: a Era Industrial; Perspectivas Contemporâneas do Debate sobre Direitos Humanos: o Final do Século 20; O Direito à Autodeterminação; Como Realizar os Direitos Humanos?; e Apêndice: Documentos Internacionais Contemporâneos.

A literatura universal referente a direitos do homem encerra conceitos e doutrinas polêmicos, embora todos concordem no essencial. O texto bíblico citado (Êxodo 20), que abre a antologia, já contém dois mandamentos que passaram por interpretações diversas: “não matarás” diz respeito implicitamente ao direito de garantir a vida do outro, mas é relativizado por aqueles que entendem haver guerras justas; “não roubarás” implica direito à propriedade, embora não tenha havido outro mais contestado até hoje. Outras vezes, movimentos de cunho político-religioso, como as Cruzadas, embora aparentemente condenáveis pelo seu caráter violento, não deixaram de contribuir indiretamente para vitórias dos direitos humanos. Na Inglaterra, a Terceira Cruzada e as altas taxas cobradas do povo e dos barões para financiá-las e para pagar o resgate de Ricardo I, capturado pelo Sacro Imperador Henrique VI, provocaram a instabilidade financeira do Reino e exigência de direitos, resultando na Magna Carta de 1215. Mais tarde, em 1679, o desdobramento disso deu na Lei de Habeas-Corpus, garantindo que “nenhum homem livre pode ser detido ou mantido em prisão ou privado de sua propriedade a não ser por julgamento legal de seus pares, de acordo com a lei da terra”.

Entendimentos diferentes sobre direitos individuais, civis ou do Estado sempre tiveram tratadistas e filósofos, dependendo de seu tempo, dos regimes em que viviam ou de crenças religiosas. Iluministas pensavam diferente dos socialistas da era industrial, estes ainda nem pensavam nos direitos dos homossexuais, da ecologia, e as mulheres ainda não haviam conseguido a Declaração de Pequim (1995). “A partir do fim da Guerra Fria, a questão do uso da força na defesa dos direitos humanos em todo o mundo ultrapassou a questão das lutas internas contra a opressão, enquanto surgia um debate de âmbito mundial sobre a intervenção humanitária internacional”, observa Micheline Ishay, na introdução do volume, acrescentando que “a questão dos meios apropriados para alcançar fins humanitários reapareceu agora (meados do século 20), de uma nova forma no contexto pós-Guerra Fria: o debate sobre o direito da comunidade internacional de intervir quando os governos não protegem os direitos humanos básicos dos cidadãos”.

O apêndice traz 16 documentos internacionais contemporâneos, um dos quais, a Convenção das Nações Unidas para a prevenção e a repressão do crime de genocídio (1948), foi extraído da Biblioteca Virtual de Direitos Humanos, da Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo.


“Vida feliz segue os ditames da moral”

Qual é, porém, a melhor constituição, e qual o melhor modo de vida para a maior parte das cidades e a maioria dos homens, se não aspiramos a um padrão de excelência acima da capacidade dos cidadãos comuns ou a uma educação para a qual são necessários dotes naturais e meios concedidos pela sorte, nem à constituição ideal, mas a um modo de vida capaz de ser partilhado pela maioria dos homens e uma constituição ao alcance da maior parte das cidades?

As constituições chamadas aristocráticas, das quais falamos há pouco, ficam de certo modo fora do alcance da maior parte das cidades, e em outras se aproximam do chamado governo constitucional, sendo portanto adequado falar destas duas formas como se elas fossem uma só. Realmente, as conclusões a respeito de todas estas questões repousam nos mesmos fundamentos, pois se dissemos com razão na Ética que a vida feliz é a vivida de acordo com os ditames da moralidade e sem impedimentos e que a moralidade é um meio-termo, segue-se necessariamente que a vida segundo este meio-termo é a melhor – um meio termo acessível a cada um dos homens. O mesmo critério deve necessariamente aplicar-se à boa ou má qualidade de uma cidade ou de uma constituição, pois a constituição é um certo modo de vida para uma cidade. Existem em todas as cidades três classes de cidadãos: os muito ricos, os muito pobres e em terceiro lugar os que ficam no meio desses extremos.

Trecho de Política, do filósofo grego Aristóteles (384-322 antes de Cristo), publicado em Direitos humanos:
uma antologia.


O direito à educação

“O Partido Operário Alemão exige, como base espiritual e moral do Estado: Educação popular geral e igual a cargo do Estado. Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução gratuita.”

Educação popular igual? Que se entende por isto? Acredita-se que na sociedade atual (que é a de que se trata), a educação pode ser igual para todas as classes? O que se exige é que também as classes altas sejam obrigadas pela força a conformar-se com a modesta educação dada pela escola pública, a única compatível com a situação econômica, não só do operário assalariado, mas também do camponês?

“Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução gratuita”. A primeira já existe, inclusive na Alemanha; a segunda na Suíça e nos Estados Unidos, no que se refere a escolas públicas. O fato de que em alguns Estados deste último país sejam “gratuitos” também os centros de ensino superior significa tão somente, na realidade, que ali as classes altas pagam suas despesas de educação às custas do fundo dos impostos gerais”.

Trecho de Crítica do programa de Gotha (1875), de Karl Marx, publicado em Direitos humanos: uma antologia.


Todos nascem livres

Artigo 1º
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo 2º
Toda pessoa está capacitada a gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (...)

Artigo 3º
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4º
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 5º
Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Trecho da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, publicado em Direitos humanos: uma antologia.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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